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Uma Vida Sonhada - Um Fernando Pessoa

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1. O fragmento anterior quase que serve de mapa ao porqu da evolu o currente sentimento moral do autor do Livro Se diz amos a princ pio que o autor do Livro poderia defender uma amoralidade parece agora claro que ele n o a defende pois coloca a lado a lado com a incapacidade de pensar e com a hiperexcita o enquanto processos que d o origem ao direito a viver e a triunfar Podemos ver que ele sofre com o desgaste moral da sociedade em que vive e que isso o leva a considerar uma moral especial interior pura Ser que este continua a ser um sentimento moral Teremos agora de dizer que sim Sobretudo em contraste com o que ele considera ser a amoralidade da realidade exterior Que moral esta ent o O autor do Livro vai responder nos num amplo fragmento que reproduzimos de seguida 78 Livro do Desasocego Tomo I p g 366 Livro do Desasocego Tomo I p g 144 Assim como quer o saibamos quer n o temos todos uma metaf sica assim tamb m quer o queiramos quer n o temos todos uma moral Tenho uma moral muito simples n o fazer a ningu m nem mal nem bem N o fazer a ningu m mal porque n o s reconhe o nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe de que n o me incomodem mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo Vivemos todos neste mundo a bordo de um navio sa do de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos devemos ter uns para os outros uma amabili
2. O t dio Quem tem Deuses nunca tem t dio O t dio a falta de uma mitologia A quem n o tem cren as at a d vida imposs vel at o cepticismo n o tem for a para desconfiar Sim o t dio isso a perda pela alma da sua capacidade de se iludir a falta no pensamento da escada inexistente por onde ele sobe s lido verdade 03 Acho o texto anterior not vel porque d a exacta imagem de como dif cil de definir este sentimento de t dio 2 4 Vemos de in cio como o autor do Livro tenta a defini o atrav s de opostos de contraposi es mas n o consegue chegar a uma conclus o Mas depois diz que o t dio pode ser um isolamento de n s em n s mesmos ou uma sensa o de v cuo acabando por concluir que afinal o t dio a perda pela alma da sua capacidade de se iludir Esta esp cie de cansa o de ser ent o relacionado directamente com a capacidade de expressar exteriormente algo interior a falta de correspond ncia entre o desejo de verdade interior e a falta dessa verdade exterior Essa verdade que pode ser para muitos representada na figura de Deus ou porque n o dos deuses Quem tem f n o tem t dio porque n o colocado perante o problema da falta da verdade no mundo interessante esta correspond ncia entre a f e o t dio ou mais amplamente a correspond ncia entre acreditar em alguma coisa e o t dio Sim porque aqui fala se em acreditar e
3. Cada vez que viajo viajo muito O cansa o que trago comigo de uma viagem de comboio at Cascais como se fosse o de ter nesse pouco tempo percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco pa ses Cada casa por que passo cada chal cada casita isolada caiada de branco e de sil ncio em cada uma delas num momento me concebo vivendo primeiro feliz depois tediento cansado depois e sinto que tendo a abandonado trago comigo uma saudade enorme do tempo em que l vivi De modo que todas as minhas viagens s o uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias de t dios enormes de in meras falsas saudades Depois ao passar diante de casas de vilas de chal s vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali est o Vivo todas aquelas vidas dom sticas ao mesmo tempo Sou o pai a m e os filhos os primos a criada e o primo da criada ao mesmo tempo e tudo junto pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo tempo v rias sensa es diversas de viver ao mesmo tempo e ao mesmo tempo por fora vendo as e por dentro sentindo as as vidas de v rias criaturas Criei em mim v rias personalidades Crio personalidades constantemente Cada sonho meu imediatamente logo ao aparecer sonhado encarnado numa outra pessoa que passa a sonh lo e eu n o Para criar destru me tanto me exteriorizei dentro de mim que dentro de mim n o existo sen o exteriormente Sou a cena viva onde passam v rios actores
4. XVIII Vimos que h uma separa o cada vez maior entre o ser para si mesmo e o ser para o mundo Esta separa o reflecte a necess ria distin o entre fora e dentro da forma como a temos vindo a ilustrar ao longo do nosso estudo No entanto h agora a possibilidade de alargarmos a perspectiva do nosso estudo s dimens es da pr pria interioridade do ser que observa o exterior Sim porque segundo o autor do Livro esse ser n o ele pr prio un voco como veremos de seguida Ser este o fragmento em quest o que nos guiar nesta quest o Depois que as ltimas chuvas deixaram o c u e ficaram na terra c u limpo terra h mida e espelhenta a clareza maior da vida que com o azul voltou ao alto e na frescura de ter havido gua se alegrou em baixo deixou um c u pr prio nas almas uma frescura sua nos cora es Somos por pouco que o queiramos servos da hora e das suas cores e formas s bditos do c u e da terra Aquele de n s que mais se embrenhe em si mesmo desprezando o que o cerca esse mesmo se n o embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o c u est bom Obscuras transmuta es sentidas talvez s no ntimo dos sentimentos abstractos se operam porque chove ou deixou de chover se sentem sem que se sintam porque sem sentir o tempo se sentiu Cada um de n s v rios muitos uma prolixidade de si mesmos Por isso aquele que despreza o ambiente n o o mesmo que dele se alegra ou
5. not rio que na parte final do Livro pelo menos no material que dat vel existe cada vez menos a necessidade da descri o do mundo exterior nomeadamente o mundo fora do escrit rio restaurantes ou do pr prio quarto Penso que isto revela algo sobre a maneira como a escrita do autor do Livro evolui e o modo como ele encara a realidade em seu redor Dizer a certo ponto que um estado de alma uma paisagem ter atingindo um particular grau de consci ncia dessa separa o entre int mo e exterior entre o dentro e o fora na medida que a pr pria realidade j definida enquanto constru o da imagina o pelos sentidos O autor do Livro j tem plena consci ncia da sua impossibilidade em impactar o mundo real Ele nunca ter plena influ ncia nele nem sequer influ ncia a uma menor escala Esse facto marca a sua atitude futura ele decidir desistir da realidade um passo nico nunca antes tentado por um homem ele quer efectivamente deixar de viver continuando a estar vivo neste sentido que as suas palavras devem ser entendidas A sua atitude perante a realidade a mesma que Alberto Caeiro demonstra passa a ser de mera contempla o Mas como j dissemos o autor do Livro n o quer como Caeiro ser natural Porqu Porque a natureza tal como a natureza artificial que a cidade movimenta se sem ele a erva cresce sem ele como a cidade cresce sem ele O facto de tudo ser independente dele pode apenas qu
6. verdade Mas vivendo na nossa imagina o de n s pr prios ter amos ao menos uma vantagem habitar amos o nosso mundo a nossa realidade povoada pelos nossos desejos pelos nossos sonhos com a garantia perene de que eles nunca poderiam morrer O abandono da vida exterior uma miss o de enorme e assustadora profundidade Alberto Caeiro tinha j tentado afastar se da realidade sobretudo da realidade ilus ria do pensamento Mas mesmo o Mestre tinha falhado nos ltimos momentos da sua vida tra do pelos seus sentimentos amorosos como demonstram os seus poemas do Pastor Amoroso O amor enquanto sensa o m xima da realidade exterior uma das principais amea as ao autor iy E i AE 3 ido do Livro e n o por isso surpreendente o n mero de p ginas em que ele referido Curiosamente este afastamento poder ter como em Caeiro muito de budismo Trata se tamb m de uma separa o da ess ncia do homem do sofrimento do mundo O autor do Livro quer no entanto mais do que isso quer ser um homem sem no o de que o sofrimento do mundo possa existir Para tal ele tem de fixar em s mbolo a exist ncia exterior Torn la completamente fixa torn la comum rotineira sem significado e por isso mesmo que ele recusa as ambi es o amor os amigos tudo o que o possa ligar aos outros e a possa tornar mais imprevis vel O amor aos outros substitu do por esse amor estranho a essa rotina
7. essas gera es criticaram toda a moral esquadrinharam todas as regras de viver e de tal choque de doutrinas s ficou a certeza de nenhuma e a dor de n o haver essa certeza Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais n o podia evidentemente ser sen o v tima na pol tica dessa indisciplina e assim foi que acord mos para um mundo vido de novidades sociais e com alegria ia conquista de uma liberdade que n o sabia o que era de um progresso que nunca definira Mas o criticismo frustre dos nossos pais se nos legou a impossibilidade de ser crist o n o nos legou o contentamento com que a tiv ssemos se nos legou a descren a nas f rmulas morais estabelecidas n o nos legou a indiferen a moral e s regras de viver humanamente se deixou incerto o problema pol tico n o deixou indiferente o nosso esp rito a como esse problema se resolvesse Nossos pais destru ram contentemente porque viviam numa poca que tinha ainda reflexos da solidez do passado Era aquilo mesmo que eles destru am que dava for a sociedade para que pudessem destruir sem sentir o edif cio rachar se N s herd mos a destrui o e os seus resultados Na vida de hoje o mundo s pertence aos est pidos aos insens veis e aos agitados O direito a viver e a triunfar conquista se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manic mio a incapacidade de pensar a amoralidade e a hiperexcita o
8. janela que d para a vida dizer isto ou o que seja irm o disto pode colorir o t dio como uma crian a ao desenho cujos contornos transborde e apague mas n o me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento O t dio Pensar sem que se pense com o cansa o de pensar sentir sem que se sinta com a ang stia de sentir n o querer sem que se n o queira com a n usea de n o querer tudo isto est no t dio sem ser o t dio nem dele mais que uma par frase ou uma transla o E na sensa o directa como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadi a nem restasse entre o castelo e as terras mais que o poder olh las sem as poder percorrer H um isolamento de n s em n s mesmos mas um isolamento onde o que separa est estagnado como n s gua suja cercando o nosso desentendimento O t dio Sofrer sem sofrimento querer sem vontade pensar sem racioc nio como a possess o por um dem nio negativo um embruxamento por coisa nenhuma Dizem que os bruxos ou os pequenos magos conseguem fazendo de n s imagens e a elas infligindo maus tratos que esses maus tratos por uma transfer ncia astral se reflictam em n s O t dio surge me na sensa o transposta desta imagem como o reflexo maligno de bruxedos de um dem nio das fadas exercidas n o sobre uma imagem minha sen o sobre a sua sombra E na sombra ntima de mim no exterior do interior da minha alma que se
9. o do sentimento e na verdade isso que nos distingue em forma de pensamento Ora ao comunicar a realidade podemos compreender essa comunica o como sendo uma comunica o de certa forma sentimental afectada pela emo o Quando descrevemos um objecto n o estamos a descrev lo apenas formalmente nem apenas seguindo as regras de linguagem convencionadas para o descrever mas antes da forma como esse objecto interpretado pelo nosso sentimento pela nossa emo o Nada impede que a descri o de um objecto seja plenamente simb lica ou metaf rica se for assim que o sintamos Um gr o de p pode ser descrito atrav s de uma longa p gina de prosa po tica se o gr o de p nos disser o suficiente para que escrevamos sobre ele uma longa p gina de prosa po tica Estaremos ent o a falar sobre os objectos mas n o directamente Trata se isso sim de falar sobre a nossa impress o dos objectos da nossa impress o profunda deles Isto permite ao pensador falar de todos os objectos da forma que bem desejar E permite lhe al m disso falar no mundo metaf sico para al m dos objectos mas mantendo se simultaneamente no mundo emp rico Como Quando fala de um objecto ele pode sentir tudo de todas as maneiras at sentimentos metaf sicos Vemos isso no Livro Eis apenas um dos muitos exemplos A mim quando vejo um morto a morte parece me uma partida O cad ver d me a impress o de um trajo que se deixou Algu
10. o que custa porque exige aquele esfor o interior que imensamente mais dif cil que o esfor o na vida mas que traz compensa es pela alma fora que a vida nunca poder dar Esse passo tudo isso sucedido tudo isso totalmente e conjuntamente feito sim empregados os tr s m todos subtis e empregados at gastos passar a sensa o imediatamente atrav s da intelig ncia pura co La pela an lise superior para que ela se esculpa em forma liter ria e tome vulto e relevo pr prio Ent o eu fixei a de todo Ent o eu tornei o irreal real e dei ao inating vel um pedestal eterno Ent o fui eu dentro de mim coroado o Imperador O terceiro passo dado como sendo um passo de reuni o dos passos e caminhos anteriores para que a sensa o se dilua de significado e se esculpa em forma liter ria e tome vulto e relevo pr prio N o demais real ar aqui a import ncia final da pr pria literatura a literatura mais propriamente embora n o s a prosa po tica a permitir a resolu o deste intrincado processo Sem a literatura n o haveria forma de fixar as sensa es exteriores em sonho porque esse passo final o que permite a sua cristaliza o por ser tamb m a linguagem po tica a adequada ao seu estudo e desconstru o filos fica A sensa o depurada pela intelig ncia ou seja diminu da pois o pensamento mata nela o que h de ac o exterior Depois ainda mais filtrada pelo que ele cham
11. o que ele busca subtil Sentir subtilmente as coisas um maneira de as n o sentir porque se assume que pode haver uma forma menor de abordar os objectos exteriores sem os 154 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 210 captar totalmente Sentir subtilmente era ignorar a realidade humana em favor de uma realidade exterior sem homens Esta realidade ass ptica sem presen a humana v se noutro fragmento posterior Depois que os ltimos pingos da chuva come aram a tardar na queda dos telhados e pelo centro pedrado da rua o azul do c u come ou a espelhar se lentamente o som dos ve culos tomou outro canto mais alto e alegre e ouviu se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol Ent o pela rua estreita do fundo da esquina pr xima rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espa o claro Era um feriado incerto legal e que se n o mantinha Havia sossego e trabalho conjuntos e eu n o tinha que fazer Tinha me levantado cedo e tardava em preparar me para existir Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade gestos que me esquecera de fazer ambi es imposs veis realizadas sem rumo conversas firmes e cont nuas que se fossem teriam sido E neste devaneio sem grandeza nem calma neste atardar sem esperan a nem fim gastavam meus passos a manh livre e as minhas palavras altas ditas baixo so
12. v lido perante um motivo interior o fim civilizacional Faz parte ent o do pr prio Livro uma certa ambiguidade moral sobretudo porque o Livro escrito na perspectiva individual e nesse aspecto consegue ser muito redutor Mais uma vez pensamos que acertado avisar precisamente para esse ponto do Livro ser o eu pr prio autor e n o um manual de regras ou de conselhos para os outros Enquanto discuss o interna plenamente aceit vel ent o que se encontrem este tipo de ambiguidades de discuss es em prol e contra determinados princ pios universais Embora n o estejamos perante um livro evolutivo como por exemplo o Guardador de Rebanhos o Livro do Desassossego evolui em conflito consigo mesmo medida que s o observadas as coisas exteriores que despoletam interiormente os seus contrapontos E assim que deveremos ler na nossa opini o passagens como aquela que escolhemos como t tulo deste cap tulo Deus bom mas o diabo tamb m n o mau 82 Livro do Desasocego Tomo I p g 344 5 3 Livro do Desasocego Tomo I p g 213 3 Livro do Desasocego Tomo I p g 482 85 Esta passagem n o do Livro do Desasssossego mas vinha sendo inclu da nele at pelo menos 2001 S recentemente passou a ser mais claro que se trata de um dos prov rbios em que Pessoa trabalhou para edi o num livro pr prio uma edi o de Prov rbios Portugueses encomendada por um editor Ingl s que n o chegou a ser completada M
13. 3 O texto admir vel e entre os mais belos alguma vez escritos por Fernando Pessoa Mas preciso que nos detenhamos na sua an lise n o liter ria E preciso compreender num primeiro grau o que significa a vis o da noite e do dia neste texto E palp vel o medo do dia face ao apaziguamento que vem com a noite O autor do Livro claro na medida que nos diz que de dia que nasce a vida a utilidade fict cia a actividade sem rem dio E de dia que ele se transforma na sua personalidade vis vel social transmiss vel por palavras que n o dizem nada us vel pelos gestos dos outros e pela consci ncia alheia Sou eu outra vez Z u u diz i vi i viv tal al n o sou diz ele referindo se bvia condi o de deslocado entre os vivos e 153 Livro do Desasocego Tomo I p g 206 7 inconscientes que o rodeiam que povoam toda a cidade todas as ruas todos os escrit rios e todas as lojas A noite identificada com o sonho enquanto o dia o acordar do sonho para a realidade Ora o sonho quando acorda desfaz se desaparece Tudo o que ideal n o se pode concretizar na realidade mas apenas existe coerente no mundo da imagina o de que feito o sonho O pr prio acordar descrito enquanto processo doloroso com intensa dramatiza o Vou sentindo fugir me a inconsci ncia feliz com que estou gozando da minha consci ncia o modorrar de animal com que espreito entre p l
14. Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana pelo banal quotidiano do chefe de fam lia que vai para o trabalho pelo lar humilde e alegre dele pelos prazeres alegres e tristes de que for osamente se comp e a sua vida pela inoc ncia de viver sem analisar pela naturalidade animal daquelas costas vestidas Volvi os olhos para as costas do homem janela por onde vi estes pensamentos A sensa o era exactamente id ntica quela que nos assalta perante algu m que dorme Tudo o que dorme crian a de novo Talvez porque no sono n o se possa fazer mal e se n o d conta da vida o maior criminoso o mais fechado ego sta sagrado por uma magia natural enquanto dorme Entre matar quem dorme e matar uma crian a n o conhe o diferen a que se sinta Ora as costas deste homem dormem Todo ele que caminha adiante de mim com passada igual minha dorme Vai inconsciente Vive inconsciente Dorme porque todos dormimos Toda a vida um sonho Ningu m sabe o que faz ningu m sabe o que quer ningu m sabe o que sabe Dormimos a vida eternas crian as do Destino Por isso sinto se penso com esta sensa o uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil por toda a vida social dormente por todos por tudo um humanitarismo directo sem conclus es nem prop sitos o que me assalta neste momento Sofro uma ternura como se um deus visse
15. n o digo um macaco mas um gato ou um c o Nenhum de n s desde o gato at mim conduz de facto a vida que lhe imposta ou o destino que lhe dado todos somos igualmente derivados de n o sei qu sombras de gestos feitos por outrem efeitos encarnados consequ ncias que sentem Mas entre mim e o campon s h uma diferen a de qualidade proveniente da exist ncia em mim do pensamento abstracto e da emo o desinteressada e entre ele e o gato n o h no esp rito mais que uma diferen a de grau O homem superior difere do homem inferior e dos animais irm os deste pela simples qualidade da ironia A ironia o primeiro ind cio de que a consci ncia se tornou consciente E a ironia atravessa dois est dios o est dio marcado por S crates quando disse sei s que nada sei e o est dio marcado por Sanches quando disse nem sei se nada sei O primeiro passo chega quele ponto em que duvidamos de n s dogmaticamente e todo o homem superior o d e atinge O segundo passo chega quele ponto em que duvidamos de n s e da nossa d vida e poucos homens o t m atingido na curta extens o j t o longa do tempo que humanidade temos visto o sol e a noite sobre a v ria superf cie da terra 230 H v rios pontos a tocar no texto em cima Come ando pela pr pria no o do homem superior parece claro que o autor do Livro se considera a si mesmo como um homem superior Vemos isso na sua maneira de falar quando fala
16. o involunt ria e baixa nos seus atravessamentos sujos N o ouso porque quando se provoca o v mito preciso provocar s um O gajo estava t o grosso que nem via a escada Ergo a cabe a Este rapazote ao menos descreve E esta gente quando descreve melhor do que quando sente porque por descrever esquece se de si Passa me a n usea Vejo o gajo Vejo o fotograficamente At o cal o inocente me anima Bendito ar que me d na fronte o gajo t o grosso que nem via que era de degraus a escada talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos apalpando se e atropelando se na falsidade regrada do declive aqu m do sagu o A intriga a maledic ncia a pros pia falada do que se n o ousou fazer o contentamento de cada pobre bicho vestido com a consci ncia inconsciente da pr pria alma a sexualidade sem lavagem as piadas como c cegas de macaco a horrorosa ignor ncia da inimport ncia do que s o Tudo isto me produz a impress o de um animal monstruoso e reles feito no involunt rio dos sonhos das c deas h midas dos desejos dos restos trincados das sensa es 2 A estranheza continua no fragmento que reproduzimos agora Tal como vimos que o autor do Livro se distanciava da exist ncia exterior dos outros ele tamb m insistir por vezes levado por influ ncia directa do seu demiurgo Fernando Pessoa em se diferenciar deles O fragmento anterior demasiado Fernando Pessoa mas serve igualmente para ilustr
17. pelo menos na vis o que eles nos oferece e que uma vis o definitivamente radical No mundo do fim do Livro as coisas deixaram de fazer sentido e o homem est abandonado num mundo em que nada faz sentido Mas e esta ressalva essencial ele n o est perdido sem alternativas O mundo exterior o mundo do vazio e do nada pode ser substitu do pelo mundo interior onde o sonho impera e onde tudo faz novamente sentido embora de forma solit ria essa a viagem que come a agora a viagem da busca e constru o desse mundo interior PARTE III Eu nunca fiz sen o sonhar Tem sido esse e esse apenas o sentido da minha vida Nunca tive outra preocupa o verdadeira sen o a minha vida interior As maiores dores da minha vida esbatem se me quando abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer me na vis o do seu movimento in Livro do Desasocego Tomo I p g 96 O que sonhar para o autor do Livro O que o sonho no Livro do Desassossego A pergunta n o simples de responder mas inevit vel coloc la Psicologicamente o sonho resulta de um afastamento radical da vida como vimos na Parte II deste estudo ser o resultado sobretudo da dualidade dos conceitos dentro fora Ent o o sonho a s ntese poss vel entre a dualidade dentro fora N o N o penso que haja uma solu o para a oposi o dentro fora O sonho aparece como forma de reunir as duas realidades sim
18. talvez me seja dado pelos mesmos Deuses o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena ou reformado numa casa dos arredores Qualquer dos sonhos o mesmo sonho porque s o todos sonhos Mudem me os deuses os sonhos mas n o o dom de sonhar No intervalo de pensar isto o velho saiu me da aten o J o n o vejo Abro a janela para o ver N o o vejo ainda Saiu Teve para comigo o dever visual de s mbolo acabou e virou a esquina Se me disserem que virou a esquina absoluta e nunca esteve aqui aceitarei com o mesmo gesto com que fecho a janela agora 4 O sonho desempenha um papel fundamental no Livro do Desassossego Todo o Livro pode ser considerado um sonho ou pelo menos uma obra escrita em estado de sonho e como tal o sonho encarado de modo efectivamente operativo n o se trata apenas de mais uma observa o mas sim de uma ferramenta que o autor do Livro vai usar positivamente no seu quotidiano Sonhar para ele algo t o b sico e necess rio como respirar Porqu Porque de algum modo a realidade exterior sem o sonho insuport vel O sonho quer seja o sonho imposs vel com ilhas do Sul ou o sonho menor com a propriedade uma tabacaria pequena o que mant m o homem fora da ang stia do momento presente e o projecta para o fora do pr prio tempo O sonho liberta o Por isso os sonhos podem mudar mas nunca devem cessar acompanhando sempre o sonhador ao longo da sua vida Mudem me os deuses os s
19. til sendo que ele nunca til Devemos pegar em todos estes peda os e tentar come ar a reconstruir a moral do Livro Diremos maneira de in cio que nos parece que h uma marcada amoralidade no Livro N o imoralidade ou moralidade mas amoralidade No sentido em que a moralidade vai de m o em m o com a indiferen a Algu m que n o quer agir que n o quer ser til n o pode ser imoral A imoralidade continua a exigir uma ac o concreta no mundo tal como a moralidade Ter uma atitude moral ter uma atitude activa certo que o autor do Livro falando s mal casadas lhes aconselha serem imorais dentro de si Mas nesse caso vemos que elas agem fora de si n o s dentro Nesse casos a imoralidade existiria em confronto com uma ac o moral o serem respeitadas exteriormente A imoralidade seria sonhada mas a moralidade seria praticada O autor do Livro est num patamar superior ac o Pleno de sonho Para Vicente Guedes ter consci ncia de si foi uma arte e uma moral sonhar foi uma religi o Devemos esclarecer aqui a divis o dentro da pr pria palavra moral que muito nos pode servir para o esclarecimento da pr pria moral do Livro Moral tem a sua raiz na palavra latina mores mas uma origem Grega na palavra thica que por sua vez tinha dois sentidos comunit rio thica e pessoal ethos Parece nos que no Livro far mais sentido falar de tica do que de moral porque a moral n
20. 500 esse mundo nunca se chegasse a concretizar materialmente Mas esse mundo n o existiu mesmo assim Sinal disso este pr prio livro que agora escrevemos O autor do Livro for ado ao reduto do pensamento Ele pr prio n o saber porque foi for ado a isso em muitas passagens ele pensa que isso acontece por determina o de um destino que mais forte do que ele O facto que foi Fernando Pessoa que o colocou nessa posi o imaginando o assim Sim porque o autor do Livro imaginado por Pessoa tornando se ele pr prio uma pr tica da teoria que nos explica circularmente isto far cada vez mais sentido medida que analisamos toda a obra de Fernando Pessoa lado a lado Lembremos que o Livro era ele este livro suave quanto resta e restar duma das almas mais subtis na in rcia mais debochadas no puro sonho que tem visto este mundo Nunca eu o creio houve criatura por fora humana que mais complexamente vivesse a sua consci ncia de si pr pria Dandy no esp rito passeou a arte de sonhar atrav s do acaso de existir Este livro a biografia de algu m que nunca teve vida De Vicente Guedes n o se sabe nem quem era nem o que fazia nem Este livro n o dele ele Mas lembremo nos sempre de que por detr s de tudo quanto aqui est dito coleia na sombra misterioso Para Vicente Guedes ter consci ncia de si foi uma arte e uma moral sonhar foi uma religi o Ele criou definitivamen
21. A sua consola o foi uma obra imensa magn fica tamb m na sua tristeza Ele constr i se em solid o e a sua est tica ser plena neste objectivo Vivo me esteticamente em outro Esculpi a minha vida como a uma est tua de mat ria alheia a meu ser As vezes n o me reconhe o t o exterior me pus a mim e t o de modo puramente art stico empreguei a minha consci ncia de mim pr prio Quem sou por detr s desta irrealidade N o sei Devo ser algu m E se n o busco viver agir sentir crede me bem para n o perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta Quero ser tal qual quis ser e n o sou Se eu cedesse destruir me ia Quero ser uma obra de arte da alma pelo menos j que do corpo n o posso ser Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa longe dos ares frescos e das luzes francas onde a minha artificialidade flor absurda flores a em afastada beleza Penso s vezes no belo que seria poder unificando os meus sonhos criar me uma vida cont nua sucedendo se dentro do decorrer de dias inteiros com convivas imagin rios com gente criada e ir vivendo sofrendo gozando essa vida falsa Ali me aconteceriam desgra as grandes alegrias ali cairiam sobre mim E nada de mim seria real Mas teria tudo uma l gica soberba sua seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade passando tudo numa cidade feita da minha alma perdida at ao cais beira de um comboio calmo muito longe dentr
22. Ele cristaliza os e com o amor isso tamb m acaba por acontecer O amor pela imagina o torna se um s mbolo de si mesmo As amantes passam de reais a imagin rias de poss veis a imposs veis O fragmento anterior por isso entendido como um fragmento que protege o indiv duo da ac o de amar transformando o amor num acto puro da imagina o Ou seja podemos ver aqui a fixa o do amor em s mbolo como uma opera o filos fica porque uma ac o torna se numa inac o Z E se a primeira dimens o do amor enquanto amea a essa dimens o da ac o a segunda dimens o tem de ser a de afirma o de uma certa exterioridade mental Sempre me tem preocupado naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consci ncia de n s mesmos como indiv duos que somos outros para os outros a imagina o da figura que farei fisicamente e at moralmente para aqueles que me contemplam e me falam ou todos os dias ou por acaso Estamos todos habituados a considerar nos como primordialmente realidades mentais e aos outros como directamente realidades f sicas vagamente nos consideramos como gente f sica para efeitos nos olhos dos outros vagamente consideramos os outros como realidades mentais mas s no amor ou no conflito tomamos verdadeira consci ncia de que os outros t m sobretudo alma como n s para n s Perco me por isso s vezes numa imagina o f til de que esp cie de gente serei para
23. O amor um dos fen menos presentes nessa dist ncia e o autor do Livro chega ao extremo de sonhar tamb m o amor dando lhe o toque de morte que o sonho pois o sonho mata toda a ac o Ao sonhar o amor torna o distante e tornando o distante mant m o inacess vel Outra forma de manter essa dist ncia dissecar o amor Ele f lo muitas vezes por exemplo aqui Nunca amamos algu m Amamos t o somente a ideia que fazemos de algu m um conceito nosso em suma a n s mesmos que amamos Isto verdade em toda a escala do amor No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por interm dio de um corpo estranho No amor diferente do sexual buscamos um prazer nosso dado por interm dio de uma ideia nossa O onanista abjecto mas em exacta verdade o onanista a perfeita express o l gica do amoroso o nico que n o disfar a nem se engana Repare se ao extremo a que ele chega ao enumerar o onanista enquanto a perfeita express o l gica do amoroso O amor masturbat rio ou seja o amor a si pr prio seria segundo o autor do Livro o nico amor sincero que n o disfar a nem se engana Em certa medida qualquer amor uma projec o de n s pr prios no outro mas a maneira como no Livro o amor nos apresentado claro que ele apresenta uma amea a ao sonho ao mundo imaginado Tal como as viagens o amor parece um perigo real para a subsist ncia do sonho O amor tamb m ele essencialment
24. O escrit rio torna se me uma p gina com palavras de gente a rua um livro as palavras trocadas com os usuais os desabituais que encontro s o dizeres para que me falta o dicion rio mas n o de todo o entendimento Falam exprimem por m n o de si que falam nem a si que exprimem s o palavras disse e n o mostram deixam transparecer Mas na minha vis o crepuscular s vagamente distingo o que essas vidra as s bitas reveladas na superf cie das coisas admitem do interior que velam e revelam Entendo sem conhecimento como um cego a quem falem de cores 52 medida que o Livro avan a cada vez mais vis vel a simboliza o da realidade exterior para a realidade interior O fragmento que reproduzimos em cima sinal disso mesmo Veja se como as presen as quotidianas passam a s mbolos que ligados formam uma escrita po tica A descri o n o podia ser mais clara no sentido em que a pr pria literatura equiparada a ferramenta ideal n o s de descri o mas tamb m de simula o da vida A compreens o da realidade exterior por outro lado meramente superficial O autor do Livro olha mas n o compreende Entendo sem conhecimento como um cego a quem falem de cores assim que ele se refere inten o de conhecer realmente as outras almas aqueles que falam e que para ele apenas debitam palavras soltas que se formam frases e mesmo livros em si mesmas n o t m um significado imane
25. Quando se ouviam acabavam de repente como que cortados O calor que parecia ter aumentado parecia estar ele calor frio Pela leve frincha das portas encostadas da janela via se a atitude de exagerada expectativa da nica rvore vis vel O seu verde era outro O sil ncio entrara lhe com a cor Na atmosfera haviam se fechado p talas E na pr pria composi o do espa o uma interrela o diferente de qualquer coisa como planos havia alterado e quebrado o modo dos sons das luzes e das cores usarem a extens o 3 No fragmento anterior notoriamente sinest sico poss vel distrin ar j o que ser um sonho da realidade exterior sem uma grande continuidade expressa entre o eu e o fora Mas ela continua l somente disfar ada pelo sonho operativo ele sonha todas as sensa es exteriores tornando vis o em som e vice versa A sinestesia aqui um sinal evidente do sonho Podemos dizer que todos os autores pelo menos os mais imaginativos tendem a retratar a realidade de acordo com a sua imagina o ligando a tamb m aos seus sentimentos verdade mas a originalidade do autor do Livro sobretudo a forma como existe um objectivo por detr s dessa mesma opera o Ele imagina a realidade como claro objectivo de a sintetizar de a tornar num s mbolo de si mesma de modo a incorpor la no seu mundo interior N o lhe basta imagin la de modo redutor de modo simples Toda a sua imagina o direccionada d
26. Vejo os a todos atrav s de uma compaix o de nico consciente os pobres diabos homens o pobre diabo humanidade O que est tudo isto a fazer aqui Todos os movimentos e inten es da vida desde a simples vida dos pulm es at constru o de cidades e a fronteira o de imp rios considero os como uma sonol ncia coisas como sonhos ou repousos passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade entre um dia e outro dia do Absoluto E como algu m abstractamente materno debru o me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons comuns no sono em que s o meus Enterne o me com uma largueza de coisa infinita 150 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 181 Desvio os olhos das costas do meu adiantado e passando os a todos mais quantos v o andando nesta rua a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo Tudo isto o mesmo que ele todas estas raparigas que falam para o atelier estes empregados jovens que riem para o escrit rio estas criadas de seios que regressam das compras pesadas estes mo os dos primeiros fretes tudo isto uma mesma inconsci ncia diversificada por caras e corpos que se distinguem como fantoches movidos pelas cordas que v o dar aos mesmos dedos da m o de quem invis vel Passam com todas as atitudes com que se define a consci ncia e n o t m consci ncia de nada porque n o t m consci ncia de ter consci nc
27. ao contr rio ir buscar dor o prazer e passar em seguida a educar se a sentir a dor falsamente isto a ter ao sentir a dor um prazer qualquer Z O segundo passo evitar o sofrimento N o claro porque o sofrimento aumenta com o gozo proporcionado pelas sensa es m nimas mas podemos partir do princ pio que se o gozo aumentado tamb m s o aumentadas todas as outras sensa es e a mais desesperante poder ser o sofrimento O autor do Livro recomenda v rios caminhos para evitar o sofrimento que descreve pormenorizadamente H v rios caminhos para esta atitude Um aplicar se exageradamente a analisar a dor tendo preliminarmente disposto o esp rito a perante o prazer n o analisar mas sentir apenas uma atitude mais f cil aos superiores claro do que dita parece Analisar a dor e habituar se a entregar a dor sempre que aparece e at que isso aconte a por instinto e sem pensar nisso an lise acrescenta a toda a dor o prazer de analisar Exagerado o poder e o instinto de analisar breve o seu exerc cio absorve tudo e da dor fica apenas uma mat ria indefinida para a an lise Outro m todo mais subtil esse e mais dif cil habituar se a encarnar a dor numa determinada figura ideal Criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em n s de sofrer o que sofremos Criar depois um sadismo interior masoquista todo que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem Este m todo cujo as
28. cargo 3 H dois pensamentos a reter do fragmento anterior Primeiro que a banalidade uma intelig ncia Segundo que se deve ao ser guarda livros grande parte do que posso sentir e pensar como a nega o e a fuga do cargo a banalidade que lhe permite o acesso inteligente realidade superior Parece um contrasenso mas n o pois apenas o desprendimento em rela o ao exterior lhe permitir um pensamento interior mais profundo e realizado Depois a assun o dessa mesma banalidade na forma do emprego med ocre de ajudante de guarda livros leva o um passo mais al m ser ajudante de guarda livros que lhe permite pensar a nega o disso mesmo Ou seja ser med ocre que lhe permite escapar pelo sonho dessa mesma mediocridade como se toda a sua esperan a fosse a pot ncia de n o ter nada com que come ar o vazio o come o real de todas as suas aventuras no pensamento Usamos um ltimo fragmento para ilustrarmos este princ pio magn fico Monotonizar a exist ncia para que ela n o seja mon tona Tornar an dino o quotidiano para que a mais pequena coisa seja uma distrac o No meio do meu trabalho de todos os dias ba o igual e in til surgem me vis es de fuga vest gios sonhados de ilhas long nquas festas em leas de parques de outras eras outras paisagens outros sentimentos outro eu Mas reconhe o entre dois lan amentos que se tivesse tudo isso nada disso seria meu Mai
29. encher se dela para dentro de si pr prio assim criando um outro mundo interior igual ao de fora mas povoado apenas por si O reparar tem de ser operativo Ele repara porque quer compreender por raz es ego stas Quer incorporar aquilo que olha porque o simples olhar lhe permite aceder a um n vel de conhecimento til Nem que seja saber que n o quer ser como a mole humana indistinta que observa da janela Olhar tamb m uma maneira excelente de nos removermos de aquilo a que pertencemos por defeito quem olha deixa de pertencer ao ambiente que observa passando a ser apenas observador e n o mais participante activo ou passivo daquilo que acontece A observa o da cidade serve ao poeta o prop sito alto de transformar em s mbolo a realidade exterior Este processo de que j fal mos v rias vezes ilustrado magnificamente num fragmento em que ele v da janela um velho que passa na rua em frente ao escrit rio Agora mesmo que estou inerte no escrit rio e foram todos almo ar salvo eu fito atrav s da janela ba a o velho oscilante que percorre lentamente o passeio do outro lado da rua N o vai b bado vai sonhador Est atento ao inexistente talvez ainda espere Os Deuses se s o justos em sua injusti a nos conservem os sonhos ainda quando sejam imposs veis e nos d em bons sonhos ainda que sejam baixos Hoje que n o sou velho ainda posso sonhar com ilhas do Sul e com ndias imposs veis amanh
30. ideia O que acontece que atrav s do sonho da cidade a cidade se transforma no sonho de si pr pria O exterior nadifica se para um interior imaginado atrav s do processo do sonho E o processo do sonho nada mais do que este enredado entre ac o e pensamento e entre pensamento e ac o que tent mos descrever anteriormente f cil de ver que cada vez que o autor do Livro olha para a cidade e a descreve a consegue nadificar um pouco mais consegue transform la um pouco mais em algo que ela n o era anteriormente e que passa a ser para ele interiormente para depois ser exteriormente Ele constr i a sua realidade em sobreposi o realidade exterior pr existente mas a sua realidade passa a ser n o s exterior mas sim exterior interior Este conceito poder parecer complexo mas na verdade o mais simples poss vel trata se apenas de imaginar a realidade exterior de apreender a realidade n o s pelos sentidos mas pela imagina o XV Todo o processo a que temos vindo assistido em que o autor do Livro constr i a sua pr pria realidade por super imposi o de uma realidade imaginada realidade imanente tem consequ ncias graves no seu pr prio comportamento individual Comportamento e personalidade pois este processo um processo de puro afastamento da realidade exterior Sendo assim devemos fazer uma pequena pausa na nossa an lise das descri es da cidade de Lisboa para abordarmos
31. mas n o com o objectivo maior de elas pr prias poderem resultar numa terceira realidade sint tica Em primeira inst ncia o sonho apenas a reac o natural ao afastamento da vida como podemos ver num dos fragmentos mais pungentes do Livro Em todos os lugares da vida em todas as situa es e conviv ncias eu fui sempre para todos um intruso Pelo menos fui sempre um estranho No meio de parentes como no de conhecidos fui sempre sentido como algu m de fora N o digo que o fui uma s vez sequer de caso pensado Mas fui o sempre por uma atitude espont nea da m dia dos temperamentos alheios Fui sempre em toda a parte e por todos tratado com simpatia A pouqu ssimos creio ter t o pouca gente erguido a voz ou franzido a testa ou falado alto ou de ter a Mas a simpatia com que sempre me trataram foi sempre isenta de afei o Para os mais naturalmente ntimos fui sempre um h spede que por h spede bem tratado mas sempre com a aten o devida ao estranho e a falta de afei o merecida pelo intruso N o duvido que tudo isto da atitude dos outros derive principalmente de qualquer obscura causa intr nseca ao meu pr prio temperamento Sou porventura de uma frieza comunicativa que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir Travo por ndole rapidamente conhecimentos Tardam me pouco as simpatias dos outros Mas as afei es nunca chegam Dedica es nunca as conhe
32. mos que essa outra coisa como j o dissemos um outro mundo paralelo alternativo o 187 Livro do Desasocego Tomo p g 398 nosso mundo interior constru do por cada um de n s enquanto reflexo da nossa verdade interior enquanto continuidade perene dessa mesma verdade Isto porque apenas num mundo interior verdadeiro todos os nossos sonhos se podem tornar realidade face a um mundo exterior que renega qualquer tentativa de verdade de verdadeiro significado bom de ver que este t dio um passo na progress o da aliena o inicial Esta aliena o vai aparecer tamb m de diversas formas nomeadamente na maneira como Fernando Pessoa nos revela o outro seja ele homem ou mulher A presen a do outro equiparada vis o da realidade exterior porque o outro constitui se inteiramente de exterioridade Como tal o outro negado em conjunto com a realidade exterior embora se deseje sempre o outro como se deseja sempre uma outra realidade exterior Penso que s o mais f ceis de ler e analisar os textos em que o autor do Livro nos fala de uma outra figura de quem inevitavelmente est separado se soubermos que essa separa o ela pr pria uma inevitabilidade da sua vis o do mundo J o t dio vai revelar se como uma forte ferramenta de nega o do mundo na medida em que dilui ainda mais a vontade de ac o Se o mundo exterior n o faz sentido porque falso faz ainda menos
33. ncia suprema algum elemento de imperfei o Isso compreendo se bem que o n o aceite Compreendo ainda que atendendo ao mal que h no mundo se n o possa aceitar a bondade infinita dessa intelig ncia criadora Isso compreendo se bem que o n o aceite tamb m Mas que se negue a exist ncia dessa intelig ncia ou seja de Deus coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem num ponto da intelig ncia homens que em todos os outros pontos dela podem ser superiores como os que erram sempre as somas ou ainda e pondo j no jogo a intelig ncia da sensibilidade os que n o sentem a m sica ou a pintura ou a poesia 25 O fragmento anterior bastante esclarecedor O autor do Livro acredita numa inconsci ncia que rege a organiza o exterior em sociedade Considera os homens inconscientes no sentido em que n o sabem nem pensam no que s o em sociedade no que s o em si mesmos esta aus ncia de pensamento reflexivo que marca a distin o entre o eu e os outros que tantas vezes vemos na obra de Fernando Pessoa sobretudo em Ricardo Reis e no Pessoa ort nimo Aqui essa distin o serve essencialmente para ilustrar a inutilidade de insistir na sociedade enquanto raiz de todas as solu es para o homem deixando o de certa forma deslocado mas com necessidade absoluta de outra ordem de solu o uma ordem interior O autor do Livro acredita por outro lado num Deus com um plano s
34. nimo leve conceitos como sonho ou t dio porque eles s o conceitos que devem ser levados a s rio dentro de um contexto filos fico Pessoano N o se trata apenas de express es de descontentamento ou de desorienta o Podem ser tamb m isso mas n o s o essencialmente isso Acabam por se constituir em conceitos muito profundos e elaborados que faz todo o sentido abordar numa an lise s ria e de conjunto Se os ignorarmos por medo do rid culo correremos o risco de ignorar todo o sistema filos fico Pessoano como at agora tem acontecido por todos os estudiosos do esp lio sobretudo importante considerar que a vis o Pessoana embora sonhadora tamb m extremamente realista Sen o veja se o seguinte fragmento A vida da mat ria ou puro sonho ou mero jogo at mico que desconhece as conclus es da nossa intelig ncia e os motivos da nossa emo o Assim a ess ncia da vida um olhar uma apar ncia e ou s ser ou n o ser e a ilus o e apar ncia de nada ser tem que ser n o ser a vida a morte V o o esfor o que constr i com os olhos na ilus o de n o morrer Poema eterno dizemos n s palavras que nunca morrer o Mas o esfriamento material da terra levar n o s os vivos que a cobrem como o um Homero ou um Milton n o podem mais que um cometa qu bata na terra Nada sobrevive morte Esta poderia muito bem ser uma m xima existencialista porque na verdade o que os exist
35. o sempre inferior e que a obra feita sempre a sombra grotesca da obra sonhada Poder escrever em palavras sobre papel que se possam depois ler alto e ouvir os di logos das personagens dos meus dramas imaginados Esses dramas t m uma ac o perfeita e sem quebra di logos sem falha mas nem a ac o se esbo a em mim em comprimento para que eu a possa projectar em realiza o nem s o propriamente palavras o que forma a subst ncia desses di logos ntimos para que ouvidas com aten o eu as possa traduzir para escritas Amo alguns poetas l ricos porque n o foram poetas picos ou dram ticos porque tiveram a justa intui o de nunca querer mais realiza o do que a de um momento de sentimento ou de sonho O que se pode escrever inconscientemente tanto mede o poss vel perfeito Nenhum drama de Shakespeare satisfaz como uma l rica de Heine perfeita a l rica de Heine e todo o drama de um Shakespeare ou de outro imperfeito sempre Poder construir erguer um Todo compor uma coisa que seja como um corpo humano com perfeita correspond ncia nas suas partes e com uma vida uma vida de unidade e congru ncia unificando a dispers o de feitios das duas partes Tu que me ouves e mal me escutas n o sabes o que esta trag dia Perder pai e m e n o atingir a gl ria nem a felicidade n o ter um amigo nem um amor tudo isso se pode suportar o que se n o pode suportar sonhar uma coisa bela que n o seja p
36. o da realidade em si mesma em objectos transfer veis Ele acredita que poss vel pegar em sensa es exteriores os objectos e transform las em sensa es interiores a literatura H uma convers o verdadeira de sensa es em outras sensa es no sentido em que as coisas s o transformadas ou melhor deslocadas de um plano exterior para um plano interior atrav s da arte Trata se de um processo criador bem como transformador pois a arte opera um acto criativo sobre a sensa o original quando a transp e para o mundo do sonho A sensa o a mesma Poder dizer se que sim mas talvez seja a diferente continuando a ser a mesma pois a sensa o passou pelo acto operativo e subjectivo do sujeito que a processou interiormente aqui que reside a resposta pergunta dif cil que coloc vamos As sensa es podem ser inf mas e nunca chegarem a ser todas as sensa es do mundo mas para o indiv duo isso pouco interessa Todos n s temos acesso a um reduzid ssimo n mero de sensa es ou objectos quando comparamos as sensa es que temos com as poss veis sensa es existentes no mundo Mas com estas sensa es que constru mos a nossa realidade individual S o as nossas sensa es e com as nossas sensa es que constru mos o nosso mundo N o por acaso que Fernando Pessoa experimenta com lvaro de Campos o sentir tudo de todas as maneiras para extremar este mesmo processo de son
37. o que caminha para o seu emprego porque ele como todos os outros ao seu redor pretendeu apenas ser em toda a vida exteriormente comum N o desejava ou sequer tinha ambi es maiores do que ser empregado de com rcio porque isso lhe permitia ter todos os sonhos a partir do vazio de o ser Fez do seu emprego da sua rotina a ess ncia da sua vida em s mbolo e isso permitiu lhe fixar exteriormente a ideia de quem era para os outros sem se prender necessidade de mostrar aos outros o que realmente sentia Sem fam lia pr xima e sem amigos a sua vida resumia se rotina fixa do seu emprego da sua deambula o di ria pelas ruas e pelos caf s e restaurantes onde fazia as refei es Em todos esses s tios a sua natureza o seu afastamento profundo permitia lhe reparar nos outros de maneira particular Interessava se por eles mas n o por quem eles eram como se cada presen a lhe servisse apenas para urdir o pensamento seguinte como se todas as cenas exteriores a si fossem encadeamentos que ele tivesse de seguir com a sua intui o Como a vida exterior de nada lhe servia sen o como fonte inesgot vel de reparos e interroga es sucessivas ele usava a meramente como sentido inverso de uma outra realidade que ele a esfor o ia construindo para si pr prio A ferramenta para essa constru o era a sua prosa solta em reparos perdidos muitas das vezes desligados uns dos outros mas intimamente construindo entre si uma rede de
38. os outros n o est no 165 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 244 meio dos outros n o pertence ao mundo que eles ocupam est verdadeiramente completamente s A realidade aparece como algo iminentemente falso ao observador simplesmente porque ele n o v nenhuma raz o para pertencer a ela Ali s na sua posi o de observador torna se cada vez mais claro e evidente que o que faz sentido n o querer pertencer realidade imanente H certamente o perigo do autor do Livro se considerar um iluminado com acesso imposs vel a uma verdade que escapa a todos os outros mas n o parece ser esse o caso simplesmente porque ele continua a sofrer com a sua posi o Ser observador puro da realidade n o neste caso ter acesso a um posto de poder absoluto a partir do qual se podem julgar todos os homens perante uma balan a de justi a particular O autor do Livro sente profundamente a dor de estar na posi o onde est e sofre com a sua solid o Isso basta para que o levemos a s rio Mais que uma vez ao passear lentamente pelas ruas da tarde me tem batido na alma com uma viol ncia s bita e estonteante a estranh ssima presen a da organiza o das coisas N o s o bem as coisas naturais que tanto me afectam que t o poderosamente me trazem esta sensa o s o antes os arruamentos os letreiros as pessoas vestidas e falando os empregos os jornais a intelig ncia de tudo Ou antes o facto de que existem arru
39. pois hoje que passaram dez anos ou mais sobre o breve tempo em que o conheci deve ser homem est pido cumpridor dos seus deveres casado talvez sustent culo social de qualquer morto enfim em sua mesma vida at capaz de ter viajado com o corpo ele que t o bem viajava com a alma Recordo me de repente ele sabia exactamente por que vias f rreas se ia de Paris a Bucareste por que vias f rreas se percorria a Inglaterra e atrav s das pron ncias erradas dos nomes estranhos havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma Hoje sim deve ter existido para morto mas talvez um dia em velho se 133 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 297 174 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 304 5 lembre como n o s melhor sen o mais verdadeiro o sonhar com Bord us do que desembarcar em Bord us E da talvez isto tudo tivesse outra explica o qualquer e ele estivesse somente imitando algu m Ou sim julgo s vezes considerando a diferen a hedionda entre a intelig ncia das crian as e a estupidez dos adultos que somos acompanhados na inf ncia por um esp rito da guarda que nos empresta a pr pria intelig ncia astral e que depois talvez com pena mas por uma lei alta nos abandona como as m es animais s crias crescidas ao cevado que o nosso destino Come ando pelo fim podemos desde logo destacar o modo como o autor do Livro identifica a singular inoc ncia do garoto de escrit rio que coleccionava m
40. por em ess ncia todo o conte do n o tem forma no sonho somos n s que lhe damos forma pela imagina o Isto em resumo sonharmos tudo e sonharmo nos a n s pr prios dentro do nosso sonho de n s a morte da vida E assim n s morremos a nossa vida t o atentos separadamente a morr la que n o repar mos que ramos um s que cada um de n s era uma ilus o do outro e cada um dentro de si o mero eco do seu pr prio ser E o acordar do sonho o reavivar doloroso de que a vida mesmo morta pr existe sempre ao sonho Zumbe uma mosca incerta e m nima Raiam na minha aten o vagos ru dos n tidos e dispersos que enchem de ser j dia a minha consci ncia do nosso quarto Nosso quarto Nosso de que dois se eu estou sozinho N o sei Tudo se funde e s fica fugindo uma realidade bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender me embalado de pios adormece A manh rompeu como uma queda do cimo p lido da Hora Acabaram de arder meu amor na lareira da nossa vida as achas dos nossos sonhos Desenganemo nos da esperan a porque trai do amor porque cansa da vida porque farta e n o sacia e at da morte porque traz mais do que se quer e menos do que se espera Desenganemo nos Velada do nosso pr prio t dio porque se envelhece de si pr prio e n o ousa ser toda a ang stia que N o choremos n o odiemos n o desejemos Cubramos Silenciosa com um
41. prio que o autor do Livro vai revelar N o ent o apenas no seu dia a dia que o autor do Livro se destaca por ser menor do que todos os outros apesar de se assemelhar apenas a mais uma pessoa como tantas outras Tudo contribui para que ele seja na verdade muito diferente Ele tem uma rotina um quotidiano mas apenas porque isso forma o seu corpo est tico Tudo o resto estar ausente Trata se assustadoramente de uma vida real totalmente vazia e desprovida de qualquer conte do til O que o corpo est tico Trata se de um conceito original em Fernando Pessoa O escritor imaginou uma realidade em que o homem que a habita n o vive realmente nela Explicando melhor poderemos dizer que o autor do Livro vive sempre e apenas na sua pr pria imagina o da realidade e nunca verdadeiramente na realidade propriamente dita N o se trata de uma ilus o ou de uma nega o da realidade mas de uma simples invers o de prioridades 56 A est tica ter sido apresentada enquanto conceito por Baumgarten circa 1750 Cf Nicola Abbagnano Dicion rio de Filosofia p g 367 e segs Editora Martins Fontes 2000 Livro do Desasocego Tomo I p g 20 Se a vida absurda podemos perguntar porque n o negamos a import ncia da vida em favor da import ncia da nossa imagina o da vida t o absurdo viver deste modo como no modo tradicional porque em ambos os casos continuar amos com o mesmo conhecimento da
42. prio universo e nele descubramos enfim a verdade que nos sempre foi ocultada A realidade afinal s uma todos os heter nimos e mesmo Pessoa foram sonhados E o homem que os sonhava era quem escrevia e sonhava escrevendo o Livro do Desassossego An lise Geral e Estil stica Haver quem indique duas pocas do Livro em que a poesia nele contida muda substancialmente de um teor mais simb lico de juventude para um teor mais pesado e reflexivo da idade adulta N o nos caber pretender concluir o que foi o Livro ou sequer quem realmente o escreveu e com que inten es Julgo que primeiro que tudo cabe dar a palavra ao pr prio Fernando Pessoa Sobre o nome Livro do Desassossego Aquele trecho pertence a um livro meu de que h muitos trechos escritos mas in ditos mas que falta ainda muito para acabar esse livro chama se Livro do Desassossego por causa da inquieta o e incerteza que a sua nota predominante No trecho publicado isso nota se O que em apar ncia um mero sonho ou entresonho narrado e sente se logo que se l e deve se realizei bem sentir se atrav s de toda a leitura uma confiss o sonhada da inutilidade e dolorosa f ria est ril de sonhar in Carta a Jo o Lebre Lima datada de 3 5 1914 Sobre o estado de esp rito que o levava a escrever no Livro O meu estado de esp rito obriga me agora a trabalhar bastante sem querer no Livro do Desassossego Mas tudo
43. que nunca estamos s s para que possamos estar vontade E assim dominaremos o ter paix es e ambi es porque paix es e ambi es s o desescudarmo nos n o teremos desejos nem esperan as porque desejos e esperan as s o gestos baixos e deselegantes nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipita o uma indelicadeza para com os olhos dos outros e a impaci ncia sempre uma grosseria O aristocrata aquele que nunca esquece que nunca est s por isso as praxes e os protocolos s o apan gio das aristocracias Interiorizemos o aristocrata Arranquemo lo aos sal es e aos jardins passando o para a nossa alma e para a nossa consci ncia de existirmos Estejamos sempre diante de n s em protocolos e praxes em gestos estudados e para os outros Cada um de n s uma sociedade inteira um bairro todos do Mist rio conv m que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro que nas festas das nossas sensa es haja requinte e recato e porque s bria a cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos Em torno a n s poder o as outras almas erguerem se os seus bairros sujos e pobres marquemos nitidamente onde o nosso acaba e come a e que desde a frontaria dos nossos pr dios at s alcovas das nossas timidezes tudo seja fidalgo e sereno esculpido numa sobriedade ou surdina de exibi o Saber encontrar a cada sensa o o modo sereno de ela se realizar Fazer o amor resumir se apenas a uma sombra de ser s
44. sensivelmente as ruas desdesertam se Vogo aten o s dos sentidos sem pensamento nem emo o Despertei cedo vim para a rua sem preconceitos Examino como quem cisma Vejo como quem pensa E uma leve n voa de emo o se ergue absurdamente em mim a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente Sem querer sinto que tenho estado a pensar na minha vida N o dei por isso mas assim foi Julguei que somente via e ouvia que n o era mais em todo este meu percurso ocioso que um reflexor de imagens dadas um biombo branco onde a realidade projecta cores e luz em vez de sombras Mas era mais sem que o soubesse Era ainda a alma que se nega e o meu pr prio abstracto observar era uma nega o ainda Quem me dera neste momento o sinto ser algu m que pudesse ver isto como se n o tivesse com ele mais rela o que o v lo contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje superf cie da vida N o ter aprendido da nascen a em diante a dar sentidos dados a estas coisas todas poder v las na express o que t m separadamente da express o que lhes foi imposta Poder conhecer na varina a sua realidade humana independentemente de se lhe chamar varina e de saber que existe e que vende Ver o pol cia como Deus o v Reparar em tudo pela primeira vez n o apocalipticamente como revela es do Mist rio mas directamente como flora es da Realidade J claro o afastamento de Pessoa re
45. suas leituras apenas eram aproveitadas para o sonho ou seja para a constru o do seu mundo interior que se baseia no mundo exterior real Depois a passagem chave Esforcei me porque todos os meus pensamentos todos os cap tulos quotidianos da minha experi ncia me fornecessem apenas sensa es Criei minha vida uma orienta o est tica E orientei essa est tica para puramente individual Fi la minha apenas Dizer que todos os pensamentos e toda a experi ncia do mundo se reduz a sensa es o mesmo que dizer que nada apreendido racionalmente apenas emocionalmente olhar para o mundo e pens lo com os olhos da emo o O autor vai um passo mais longe que Caeiro porque uma filosofia como esta precisa de uma base de comunica o uma coisa perceber a realidade outra comunic la e as sensa es s o a base dessa comunica o porque podem ser transmitidas atrav s do processo art stico neste caso essencialmente mas n o s liter rio N o existe comunica o sem sintetiza o do que apreendido pela linguagem e neste caso h ainda o precioso pormenor de que tudo o que apreendido poder ser transmitido integralmente pela linguagem sem quaisquer limita es A constru o desta vida est tica leva desintegra o da vida anterior Ele pr prio nos diz que se abandonou afastando se do contacto com os outros considerando se apenas um asc tico na religi o de mim N o h d vida q
46. ultrapassar Shakespear A esta lista podemos com alguma certeza acrescentar Ant nio Nobre e o Livro do Desassossego 272 Texto publicado originalmente em A Galera n 5 6 Coimbra Fevereiro de 1915 Por curiosidade n o constava nenhum livro de Ant nio Nobre na biblioteca pessoal de Fernando Pessoa na altura da sua morte apenas uma colect nea de cartas de Nobre mas subentende se que Pessoa o ter lido e que muito prov vel que conhecesse bem o livro S sobretudo pela compara o que fez relativamente a ele no Livro do Desassossego cf Biblioteca Digital de Fernando Pessoa entrada Ant nio Nobre 273 Vejamos agora se sob este ponto de vista exterior a actual corrente liter ria portuguesa alguma analogia oferece com as outras correntes que estud mos Note se primeiro quando a nossa corrente principia O seu tom especial e distintivo quando come a a aparecer f cil constat lo com o S de Ant nio Nobre com aquela parte da obra de Eug nio de Castro que toma aspectos quinhentistas e comOs Simples de Guerra Junqueiro Come a portanto pouco mais ou menos coincidentemente com o come o da ltima d cada do s culo XIX Fixado o in cio do per odo procuremos o precursor Continua a n o haver dificuldade o precursor Antero de Quental exactamente an logo a Chaucer e a Rousseau poeta em a par de n o ter ainda nacionalidade compare se o seu tom com o de Ant nio Nobre inferior como poeta mas superio
47. A estranheza de que fal vamos na sec o anterior novamente refor ada no fragmento que reproduzimos em cima Ali s n o erramos se dissermos que esta tem tica se torna transversal a todo o livro a vis o do autor do Livro enquanto um estranho no mundo exterior que familiar a todos os outros curioso tamb m abordar o que ele chama de n usea da quotidianidade enxovalhante da vida A palavra n usea ganha uma conota o de enorme import ncia na escrita existencialista de fins do S culo XX e preciso precisar em que termos a vamos encontrar no Livro do Desassossego Em Sartre como em Camus ou Nietzsche a n usea aparece perante a consci ncia do absurdo Em termos gen ricos a n usea existencialista pode ser resumida como uma sensa o f sica perante uma realiza o metaf sica por exemplo a n usea como sensa o perante o absurdo da exist ncia Mas enquanto nos existencialistas a n usea uma esp cie de desprendimento das coisas do mundo em favor da liberdade humana lembremos que Antoine Roquentin precisamente no livro N usea de Sartre 8 passa por um verdadeiro processo de desprendimento das coisas que o apaixonavam por causa dessa sensa o fis ca avassaladora sendo que o homem se define a si mesmo escolhe para si mesmo o seu destino em Pessoa o existencialismo n o um processo e talvez nem seja mesmo um existencialismo Na verdade o existencialismo preocupa se com o mundo e
48. Est tica da indiferen a Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir a n tida indiferen a que ela no que coisa lhe causa Saber com um imediato instinto abstrair de cada objecto ou acontecimento o que ele pode ter de sonh vel deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real eis o que o s bio deve procurar realizar em si pr prio Nunca sentir sinceramente os seus pr prios sentimentos e elevar o seu p lido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas pr prias ambi es nsias e desejos passar pelas suas alegrias e ang stias como quem passa por quem n o lhe interessa O maior dom nio de si pr prio a indiferen a por si pr prio tendo se alma e corpo por a casa e a quinta onde o Destino quis que pass ssemos a nossa vida Tratar os seus pr prios sonhos e ntimos desejos altivamente en grand seigneue pondo uma ntima delicadeza em n o reparar neles Ter o pudor de si pr prio perceber que na nossa presen a n o estamos s s que somos testemunhas de n s mesmos e que por isso importa agir perante n s mesmos como perante um estranho com uma estudada e serena linha exterior indiferente porque fidalga e fria porque indiferente Para n o descermos aos nossos pr prios olhos basta que nos habituemos a n o ter nem ambi es nem paix es nem desejos nem esperan as nem impulsos nem desassossegos Para conseguir isto lembremo nos sempre que estamos sempre em presen a nossa
49. M dias de diversas pocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos Deslumbra me o excesso de imagina o que desconhecia em mim e vou vendo Deixo os sonhos ir Tenho os t o puros que eles excedem sempre o que eu espero deles S o sempre mais belos do que eu quero Mas isto s o sonhador aperfei oado pode esperar obter Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto Hoje consigo o sem esfor o A melhor maneira de come ar a sonhar mediante livros Os romances servem de muito para o principiante Aprender a entregar se totalmente leitura a viver absolutamente com as personagens de um romance eis o primeiro passo Que a nossa fam lia e as suas m goas nos pare am chilras e nojentas ao lado dessas eis o sinal do progresso preciso evitar o ler romances liter rios onde a aten o seja desviada para a forma do romance N o tenho vergonha em confessar que assim comecei curioso mas os romances policiais os que por uma intui o eu lia Nunca pude ler romances amorosos detidamente Mas isso uma questao pessoal por n o ter feitio de amoroso nem mesmo em sonhos Cada qual cultive por m o feitio que tiver Recordemo nos sempre de que sonhar procurarmo nos O sensual dever para suas leituras escolher as opostas s que foram as minhas Quando a sensa o fisica chega pode dizer se que o sonhador passou al m do primeiro grau do sonho Isto quando um romance sobre combates fugas batalhas nos deix
50. Moreira O meu chefe Moreira ess ncia da monotonia e da continuidade est muito mais gente do que eu At o mo o reparo sem poder reprimir um sentimento que busco supor que n o inveja tem uma certeza de cara uma express o directa que dista sorrisos do meu apagamento nulo de esfinge de papelaria O que quer isto dizer Que verdade esta que uma pel cula n o erra Que certeza esta que uma lente fria documenta Quem sou para que seja assim Contudo E o insulto do conjunto Voc ficou muito bem diz de repente o Moreira E depois virando se para o caixeiro de pra a mesmo a carinha dele hein E o caixeiro de pra a concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo 2 Depois da obriga o de tirar a fotografia de grupo que ele j tinha em verdade esquecido de repente h o confronto com a representa o vis vel de si pr prio 3 Ele diz nos nunca ter tido uma ideia nobre da sua presen a f sica e sentiu se ainda mais anulado em confronto com todos os outros colegas do escrit rios Esta observa o denota algu m que leva em muito pouca conta o seu aspecto exterior Ao ponto de n o se reconhecer num reflexo de si pr prio a este n vel que a sua vida se encontra anulada exteriormente Claro que existem muitas raz es que competem para este sentimento mas por agora o mais importante compreender como o autor do Livro leva uma vida ausente de si pr prio da sua pr pria exist ncia exterior
51. Na Floresta do Alheamento mas recomendamos vivamente a sua leitura completa pois d ao leitor essa ideia primordial da fuga da realidade exterior para um mundo de sonho mas trazendo da realidade exterior elementos preciosos como a presen a feminina que depois povoam e alimentam os sonhos por isso que a 111 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 43 45 presen a feminina se esvazia de conte do f sico tornando se ela mesma pouco mais do que um sonho indefinido mas ainda concreto o suficiente para a realidade interior do sonhador Esse sonho n o assim a tradu o fiel do exterior para o interior O sonhador n o pode ou n o deve sonhar possuir em sonho o que poderia possuir na vida real Eu n o sonho possuir te Para qu Era traduzir para plebeu o meu sonho Possuir um corpo ser banal Sonhar possuir um corpo talvez pior ainda que seja dif cil s lo sonhar se banal horror supremo E j que queremos ser est reis sejamos tamb m castos porque nada pode haver de mais ign bil e baixo do que renegando da Natureza o que nela fecundado guardar vil mente dela o que nos praz no que reneg mos N o h nobrezas aos bocados Sejamos castos como eremitas puros como corpos sonhados resignados a ser tudo isto como freirinhas doidas Que o nosso amor seja uma ora o Unge me de ver te que eu farei dos meus momentos de te sonhar um ros rio onde os meus t dios ser o padre nossos e as minhas ang stias
52. Nuno Hip lito Regresso Terra p g 23 e segs 39 A distin o entre viagem horizontal e viagem vertical outra distin o poss vel feita recentemente por Teresa Rita Lopes e distinguindo a viagem f sica da viagem interpersonalit ria 40 Livro do Desasocego Tomo I p g 393 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 370 Se a viagem sin nimo de ac o ele come a a redigir viagens que s o anti ac o onde o viajante n o se movimenta mas onde ele tamb m n o deixa de se imaginar em movimento A isto ele chama viagens na cabe a A viagem na cabe a Do meu quarto andar sobre o infinito no plaus vel ntimo da tarde que acontece janela para o come o das estrelas meus sonhos v o por acordo de ritmo com a dist ncia exposta para as viagens aos pa ses inc gnitos ou supostos ou somente imposs veis Pouco a pouco o sonho estrutura todas as viagens o pincel que pinta todas as paisagens a ferramenta que permite o desenho de toda a realidade interior em redor dessas mesmas paisagens dentro e fora delas Sim porque vai existir um dentro do dentro e um fora do dentro Na verdade a realidade imaginada muito profunda multi dimensional e estruturada semelhan a da realidade exterior Podemos no entanto questionar a utilidade destas viagens pela imagina o Decerto que s o limitadas sem grande escopo Qual a verdadeira utilidade de usar apenas a imagina o e
53. Quem sabe escrever o que sabe ver os seus sonhos nitidamente e assim ou ver em sonho a vida ver a vida imaterialmente tirando lhe fotografias com a m quina do devaneio sobre a qual os raios do pesado do til e do circunscrito n o t m ac o dando negro na chapa espiritual Em mim esta atitude que o muito sonhar me enquistou faz me ver sempre da realidade a parte que sonho A minha vis o das coisas suprime sempre nelas o que o meu sonho n o pode utilizar E assim vivo sempre em sonhos mesmo quando vivo na vida Olhar para um poente em mim ou para um poente no Exterior para mim a mesma coisa porque vejo da mesma maneira pois que a minha vis o talhada mesmamente A influ ncia do Bardo parece aqui essencial Mas como em outras ocasi es Fernando Pessoa n o somente influenciado por Shakespear mas impulsionado a ir mais al m nas suas interpreta es Neste caso a passagem n s somos feitos da mesma mat ria dos sonhos de certa forma transformada num princ pio filos fico fundador a mat ria pode ser transmutada em sonho atrav s da vontade humana Para tal basta que vejamos da realidade apenas a parte que sonho Veja se como isso interpretado pelo autor do Livro numa express o assombrosa j citada em cima A realidade verdadeira dum objecto apenas parte dele o resto o pesado tributo que ele paga mat ria em troca de existir no espa o O mesmo dizer que todos os obj
54. Sim a Arte que mora na mesma rua que a Vida por m num lugar diferente a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver que t o mon tona como a mesma vida mas s em lugar diferente Sim esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas a solu o de todos os enigmas salvo o existirem enigmas que o que n o pode ter solu o 38 Z Veja se como a vida o oposto da arte 237 Livro do Desasocego Tomo p g 343 238 V depois a ref Na verdade a vida o mundo exterior o escrit rio para onde o autor do Livro caminha diariamente no seu quotiano vazio e sem objectivos A arte no entanto o seu mundo interior ele estar sozinho e sonhar no seu quarto o mesmo quarto que incorpora todos os significados poss veis desse mesmo mundo individual e desconhecido dos outros A Arte mora na mesma rua que a Vida por m num lugar diferente quer isto dizer que s o duas realidades simult neas mas deslocadas uma da outra a arte uma forma de interpretar e comunicar a vida a um grau profundo significativo N o por acaso que Fernando Pessoa sempre foi t o influenciado pela filosofia mas no final acaba por se considerar um poeta e n o um fil sofo Outro grande fil sofo Friedrich Nietszche era um poeta mais do que um fil sofo Ambos nos sugerem uma via de ultrapassarmos as limita es da l gica porque ambos intuiram o papel futuro da poesia na comunica o da reali
55. a conviv ncia com os outros o falar com eles ser amigo pr ximo de algu m compartilhar pensamentos e opini es com quem os possa ouvir e compreender Ser consciente pagar tamb m o pre o dessa falta de normalidade Pelo menos isso que pensa o autor do Livro que o simples acto que o aproxime dos outros o tornar um dos outros E se por um lado ele deseja isso intimamente ele tamb m reconhece de alguma forma que foi talhado para se afastar deles por uma raz o obscura qualquer que ele na sua solid o acha que tem a ver com o acesso a uma verdade superior afinal o significado da pr pria vida de toda a humanidade Ele ver sempre a sua vida com um misto de desespero e felicidade Por um lado ele infeliz por estar sozinho por n o ter a conviv ncia de ningu m o amor de ningu m por outro feliz pela mesma exacta raz o Esta ambival ncia torna o distante de todas as realidades f sicas e igualmente distantes de todas as realidades imaginadas Se por um lado ele n o pode viver ele tamb m n o pode s sonhar Mas afinal n o mesmo isso o tal Desassossego O torpor leve breve ang stia e t dio que fica aqu m da ac o mas tamb m aqu m do sonho VI H dias em que cada pessoa que encontro e ainda mais as pessoas habituais do meu conv vio for ado e quotidiano assumem aspectos de s mbolos e ou isolados ou ligando se formam uma escrita po tica ou oculta descritiva em sombras da minha vida
56. a cidade n o s o textos de mera observa o mas textos de an lise da cidade enquanto constru o intelectual do homem Esta no o da cidade enquanto constru o intelectual bem vis vel na ltima passagem do texto que cit mos em cima A manh do campo existe a manh da cidade promete Uma faz viver a outra faz pensar E eu hei de sempre sentir como os grandes malditos que mais vale pensar que viver Al m disso ele tamb m nos diz o seguinte Uma aurora no campo faz me bem a aurora na cidade bem e mal e por isso me faz mais que bem Sim porque a esperan a maior que me traz tem como todas as esperan as aquele travo long nquo e saudoso de n o ser realidade O facto da cidade prometer na sua autora mais do que apenas a realidade imanente de si mesma o facto decisivo para que a cidade n o seja considerada apenas realidade O travo long nquo e saudoso de n o ser realidade uma caracter stica essencial da cidade para o observador consciente pois ele v para al m das constru es dos edif cios a raz o da sua pr pria exist ncia e nessa raz o consegue desvendar os objectivos subjacentes Por isso que a cidade faz pensar e a natureza apenas faz viver Sobrevive se na natureza pensa se na cidade pelo que a vida citadina se assume enquanto uma decis o intelectual Esta linha de pensamento vai de encontro com o que dito por Alberto Caeiro que distanciando se da cidade se
57. a de clamor Mas a reac o contra mim desce me da intelig ncia Vejo me no quarto andar alto da Rua dos Douradores assisto me com sono olho sobre o papel meio escrito a vida v sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata borr o velho Aqui eu neste quarto andar a interpelar a vida a dizer o que as almas sentem a fazer prosa como os g nios e os c lebres Aqui eu assim 63 A identifica o do autor do Livro com a sua pr pria escrita total A verdade que quando Fernando Pessoa dizia que o Livro era ele n o estava a mentir pelo acto da escrita que a sua pr pria exist ncia se afirma nem que seja por vezes marginalmente em irmandade com muitos outros que ele pressente existirem como ele fechados a escrever e nada mais do que isso Ele vive atrav s da escrita de tal forma que ela se constitui numa escrita muito particular como ele pr prio nos indica Meditei hoje num intervalo de sentir na forma de prosa de que uso Em verdade como escrevo Tive como muitos t m tido a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma E certo que escrevi antes da norma e do sistema nisso por m n o sou diferente dos outros Analisando me tarde descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princ pios e imediatamente e boa maneira dos bons cl ssicos erijo esses dois princ pios em fundamentos gerais de todo estilo dizer o que se sente exactamente como se sente clarament
58. a educa o sentimental assim um processo de reeduca o sentimental na medida em que teremos de aprender a fazer do m nimo um m ximo E se o fizermos n o teremos necessidade de desejar nada al m do m nimo O chegar por m a este grau de sensa o acarreta ao amador de sensa es o correspondente peso ou gravame f sico de que correspondentemente sente com id ntico exaspero consciente o que de doloroso impinge do exterior e por vezes do interior tamb m sobre o seu momento de aten o quando assim constata que sentir excessivamente se por vezes gozar em excesso outras sofrer com prolixidade e porque o constata que o sonhador levado a dar o segundo passo na sua ascens o para si pr prio Ponho de parte o passo que ele poder ou n o dar e que consoante ele o possa ou n o dar determinar tal ou tal outra atitude jeito de marcha nos passos que vai dando segundo possa ou n o isolar se por completo da vida real se rico ou n o redunda nisso Porque suponho compreendido nas entrelinhas do que narro que consoante e ou n o poss vel ao sonhador isolar se e dar se a si com menor ou maior intensidade ele deve concentrar se sobre a sua obra de despertar doentiamente o funcionamento das suas sensa es das coisas e dos sonhos Quem tem de viver entre os homens activamente e encontrando os e realmente poss vel 19 Cf Livro do Desasocego Tomo II p g 699 reduzir ao m nimo a intimidade que se tem
59. a essa vida parada quase de frame de filme tirado do contexto de todo o resto das cenas anteriores e posteriores A fixa o da vida o passo essencial para que a vida deixa de fazer sentido n o enquanto absurdo mas enquanto fonte de sofrimento Temos de compreender agora onde habita esse tal corpo est tico precisamente nesta realidade fixa O autor do Livro n o deixa de existir Ele apenas deixa de existir para a vida Ele morre sim mas uma morte encenada ritual inici tica O seu objectivo passando pela morte em vida atingir um mundo superior onde tudo passe a fazer sentido onde seja poss vel alcan ar a felicidade Esse mundo apenas pode ser um mundo imaginado onde a sua ess ncia reside enquanto ele continua a existir num outro mundo mas meramente enquanto m scara de si pr prio s mbolo de si pr prio A est tica do Livro do Desassossego por tudo isto uma est tica muito pr pria Falaremos no ponto a seguir da po tica mas agora desvendemos as m ltiplas dimens es da pr pria est tica no Livro Ela desenrola se em tr s dimens es 1 Est tica da indiferen a 2 Est tica do artif cio 3 Est tica do desalento Existem tr s pequenos fragmentos que reproduziremos de seguida cada um deles precisamente com os t tulos propostos anteriormente S o textos escritos num formato de ensinamento mas n o devem ser entendidos enquanto tal visto que o autor do Livro escreve para si pr prio
60. agir sentir crede me bem para n o perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta Quero ser tal qual quis ser e n o sou Se eu cedesse destruir me ia Quero ser uma obra de arte da alma pelo menos j que do corpo n o posso ser Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa longe dos ares frescos e das luzes francas onde a minha artificialidade flor absurda flores a em afastada beleza Penso s vezes no belo que seria poder unificando os meus sonhos criar me uma vida cont nua sucedendo se dentro do decorrer de dias inteiros com convivas imagin rios com gente criada e ir vivendo sofrendo gozando essa vida falsa Ali me aconteceriam desgra as grandes alegrias ali cairiam sobre mim E nada de mim seria real Mas teria tudo uma l gica soberba sua seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade passando tudo numa cidade feita da minha alma perdida at ao cais beira de um comboio calmo muito longe dentro de mim muito longe E tudo n tido inevit vel como na vida exterior mas est tica de Morte do Sol 59 Livro do Desasocego Tomo I p g 34 Livro do Desasocego Tomo I p g 35 Se o sonhador tem de continuar a viver no mundo exterior mesmo que seja essencialmente indiferente a ele h que reconhecer a necessidade do artif cio da representa o s vezes n o me reconhe o t o exterior me pus a mim diz o autor do Livro Na verdade ele existe exteri
61. ainda E assim contempladores iguais das montanhas e das est tuas gozando os dias como os livros sonhando tudo sobretudo para o converter na nossa ntima subst ncia faremos tamb m descri es e an lises que uma vez feitas passar o a ser coisas alheias que podemos gozar como se viessem na tarde N o este o conceito dos pessimistas como aquele de Vigny para quem a vida uma cadeia onde ele tecia palha para se distrair Ser pessimista tomar qualquer coisa como tr gico e essa atitude um exagero e um inc modo N o temos certo um conceito de valia que apliquemos obra que produzimos Produzimo la certo para nos distrair por m n o como o preso que tece a palha para se distrair do Destino sen o da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Livro do Desasocego Tomo I p g 246 7 amp Livro do Desasocego Tomo I p g 313 Livro do Desasocego Tomo I p g 231 Vale bem a pena comparar o sentimento que permeia o fragmento anterior com a obra de Ricardo Reis Vemos que a aceita o da realidade n o no Livro necessariamente uma imposi o do destino que deve ser seguida sem hesita o na escolha do caminho com menos atrito N o O autor do Livro goza os dias como os livros sonhando tudo Isso quer dizer que ele embora n o actue procura modificar a realidade pela percep o que tem dela Os seus sentidos capturam a realidade exterior que depois sonhada e trans
62. algo ironicamente O que ele quer dizer que a experi ncia directa das coisas n o nos d o conhecimento da verdade porque essa verdade apenas est acess vel interpreta o delas pela imagina o Por isso a ac o in til Viver apenas na ilus o dessa ac o n o verdadeiramente viver mas antes ser vivido pela vida Veremos mais tarde quando falarmos da inac o como isto significa por parte do homem que sonha uma total abdica o da sua vida exterior e a aceita o de um destino superior interno Mas por agora interessa considerar ainda mais um fragmento relativo a esse ser vivido pela vida 7l Livro do Desasocego Tomo I p g 164 7 Livro do Desasocego Tomo I p g 356 Vive a tua vida N o sejas vivido por ela Na verdade e no erro no gozo e no mal estar 2 s o teu pr prio ser S poder s fazer isso sonhando porque a tua vida real a tua vida humana aquela que n o tua mas dos outros Assim substituir s o sonho vida e cuidar s apenas em que sonhes com perfei o Em todos os teus actos da vida real desde o de nascer at ao de morrer tu n o ages s agido tu n o vives s vivido apenas O fragmento anterior faz parte do que consideramos serem os fragmentos mais importantes do Livro do Desassossego que formam um grupo intitulado Maneira de bem sonhar Focaremos a nossa aten o plenamente neles quando analisarmos a import ncia do sonho no Livro Por agora o fr
63. antes e melhor as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os m sticos Essa n usea quase f sica quando esses misticismos s o activos quando pretendem convencer a intelig ncia alheia ou mover a vontade alheia encontrar a verdade ou reformar o mundo Considero me feliz por n o ter j parentes N o me vejo assim na obriga o que inevitavelmente me pesaria de ter que amar algu m N o tenho saudades sen o literariamente Lembro a minha inf ncia com l grimas mas s o l grimas r tmicas onde j se prepara a prosa Lembro a como uma coisa externa e atrav s de coisas externas lembro s as coisas externas N o sossego dos ser es de prov ncia que me enternece da inf ncia que vivi neles a disposi o da mesa para o ch s o os vultos dos m veis em torno da casa s o as caras e os gestos f sicos das pessoas de quadros que tenho saudades Por isso tanto me enternece a minha inf ncia como a de outrem s o ambas no passado que n o sei o que fen menos puramente visuais que sinto com a aten o liter ria Enterne o me sim mas n o porque lembro mas porque vejo Nunca amei ningu m O mais que tenho amado s o sensa es minhas estados da visualidade consciente impress es da audi o desperta perfumes que s o uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo dizer me coisas do passado t o f cil de lembrar pelos cheiros isto de me darem mais realidade mais em
64. ao pensamento absoluto das coisas e por consequ ncia a considerar o sonho como a op o desej vel para anular o sofrimento que adv m desse pensamento Por outro lado a ac o continua a ser necess ria visto que continuamos a estar no mbito de uma exist ncia Por muito que os textos do Livro sejam textos te ricos de reparos de observa es a realidade que o observador reside no mundo que observa e tem de continuar a intervir nele Na verdade este aparente paradoxo ac o sonho algo que atormenta desde muito cedo o autor do Livro ao ponto de ele colocar este quest o num texto pensado novamente para o pref cio Tenho que escolher o que detesto ou o sonho que a minha intelig ncia odeia ou a ac o que a minha sensibilidade repugna ou a ac o para que n o nasci ou o sonho para que ningu m nasceu Resulta que como detesto ambos n o escolho nenhum mas como hei de em certa ocasi o ou sonhar ou agir misturo uma coisa com outra evidente a dificuldade da miss o do autor do Livro Escolher entre a ac o e o sonho n o na realidade uma op o porque ambos s o insepar veis um do outro N o h ac o sem sonho pensamento nem sonho sem ac o realidade De que forma consegue ent o Fernando Pessoa propor se a si pr prio a escrita de um livro que renega a esta mesma dificuldade Pensamos que o faz principalmente estabelecendo a necessidade de imaginar algu m que s
65. ao corpo outra direc o a porta onde se deve entrar Passa se tudo Que do pandeiro urso parado A progress o dos textos do Livro que cont m descri es da cidade mostra habilmente que o autor do Livro j n o sente pertencer s paisagens que emocionalmente descreve A tal estranheza de que fal vamos anteriormente agora uma separa o quase total entre si e os outros entre aquele que v e percebe e os outros que vivem e n o percebem O sono que ele sente ao ver a rua pejada de gente quase indistinta uma mole de vestidos nada mais representa do que a sua atitude perante o mundo exterior uma atitude sonolenta de inac o Olha se mas n o se v porque nada faz sentido naquilo que dado vis o O afastamento da realidade total na medida em que o pr prio movimento natural visto como um automatismo O afastamento tamb m vis vel na continua o do mesmo texto Leve como uma coisa que come asse a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou se sujamente pelos princ pios da Baixa Nauseava frescamente num torpor frio de mar morno Senti a vida no est mago e o olfacto tornou se me uma coisa por detr s dos olhos Altas pousavam em nada nuvens ralas rolos num 4 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 243 4 cinzento a desmoronar se para branco falso A atmosfera era de uma amea a de c u cobarde como a de uma trovoada inaud vel feita de ar somente Havia e
66. ao ponto de eliminar a sua pr pria vida em favor do seu sonho dela A vida real essa torna se t o absurda que nada que se cont m nela pode tamb m ser real um processo sistem tico de anular a realidade descrevendo a escalpelizando a O objectivo ltimo deixar de pensar na vida para tamb m deixar de a viver J me cansa a rua mas n o n o me cansa tudo rua na vida H a taberna defronte que vejo se olho por cima do ombro direito e h o convento defronte que vejo se olho por cima do ombro esquerdo e no meio que n o verei se me n o voltar de todo o sapateiro enche de som regular o port o do escrit rio da Companhia Africana Os outros andares s o indeterminados No terceiro andar h uma pens o dizem que imoral mas isso como tudo a vida Cansar me a rua Canso me s quando penso Quando olho a rua ou a sinto n o penso trabalho com um grande repouso ntimo ltimo naquele canto escriturantemente ningu m N o tenho alma ningu m tem alma tudo trabalho na casa larga Onde os milion rios gozam sempre no estrangeiro deles tamb m h trabalho e tamb m n o h alma Fica de tudo um ou outro poeta Quem me dera que de mim ficasse uma frase uma coisa dita de que se dissesse Bem feito como os n meros que vou inscrevendo copiando os no livro da minha vida inteira Nunca deixarei creio de ser ajudante de guarda livros de um armaz m de fazendas Desejo com uma sinceridade que feroz
67. as coisas de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos e sendo isto imposs vel a vida s subjectivamente pode ser vivida por inteiro s negada pode ser vivida na sua subst ncia total 105 Ou seja a base da teoria do conhecimento no Livro parece ser negativa sobretudo aplicada ao conhecimento do mundo exterior Como o desejo da alma humana conhecer tudo e isso imposs vel s poss vel viver a vida por inteiro negando a Mas ent o como se justifica que o autor do Livro continue t o angustiado com o estado da sua vida actual quando nada tem a alcan ar nela 104 Livro do Desasocego Tomo I p g 309 10 105 Livro do Desasocego Tomo I p g 375 Na verdade podemos argumentar que imposs vel que ele n o sinta essa ang stia porque continua a ter uma vida exterior Ele um recluso certo mas um recluso com uma vida exterior n o como Buda recluso da vida afastando se completamente dela para o sil ncio de um deserto O desafio do Livro do Desassossego parece nos mesmo a busca da s ntese imposs vel entre ser e conhecer entre existir e sonhar N o s no Livro que essa tentativa aparece pois em todos os heter nimos existe sempre este grau de paradoxalidade que nos desafia e que desafia o seu pr prio criador visto que o acesso verdade nunca simples ou f cil Caeiro luta com a dificuldade de n o ter de pensar Reis com a dificuldade de aceitar o destino Campos com a dificuldade de faz
68. as vi porque as fui feitas em Deus com a subst ncia da minha imagina o A ren ncia a liberta o N o querer poder 173 H mais dois textos que se seguem cronologicamente e que ilustram bem esta liga o entre a viagem negativa e o mundo interior O primeiro este Todo o dia em toda a sua desola o de nuvens leves e mornas foi ocupado pelas informa es de que havia revolu o Estas not cias falsas ou certas enchem me sempre de um desconforto especial misto de desd m e de n usea f sica Revolucion rio ou reformador o erro o mesmo Impotente para dominar e reformar a sua pr pria atitude para com a vida que tudo ou o seu pr prio ser que quase tudo o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo Tudo para n s est em nosso conceito do mundo modificar o nosso conceito do mundo modificar o mundo para n s isto modificar o mundo pois ele nunca ser para n s sen o o que para n s Aquela justi a ntima pela qual escrevemos uma p gina fluente e bela aquela reforma o verdadeira pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade morta essas coisas s o a verdade a nossa verdade a nica verdade O mais que h no mundo paisagem molduras que enquadram sensa es nossas encaderna es do que pensamos E o quer seja a paisagem colorida das coisas e dos seres os campos as casas os cartazes e os trajos quer seja a paisage
69. av marias Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro vitral Entre n s sombras cujos passos soam frios a humanidade passando Murm rios de rezas segredos de passar o entre n s Umas vezes enche se bem o ar de de incensos Outras vezes para este lado e para aquele uma figura de est tua rezar aspers es 2 H claramente a ideia do amor enquanto amor idealizado um amor que nunca se concretiza mas que tamb m numa acaba e que por isso a ideia do amor perfeito A posse carnal seria contra essa ideia de amor perfeito e por isso o autor do Livro acaba por defender a castidade Qualquer contacto sexual seria a anula o imediata dessa no o de amor perfeito que imaginada inactiva enquanto que o contacto sexual concreto activo N o queremos dizer que n o haja algum grau de ac o na ideia perfeita do amor atente se Apenas dizemos que n o se trata da ac o concreta que encontramos no mundo exterior A verdade que acaba por haver ac o no mundo sonhado do autor do Livro mas uma ac o que muito diferente da ac o que se desenrola no mundo exterior A esta ac o interna chamaremos jnac o mas com um significado de ac o sonhada ou anti ac o e n o propriamente no sentido cl ssico de falta de ac o esta inac o amorosa que se pode observar num outro fragmento paradigm tico intitulado Nossa S
70. colam pap is ou se espetam alfinetes Sou como o homem que vendeu a sombra ou antes como a sombra do homem que a vendeu O t dio Trabalho bastante Cumpro o que os moralistas da ac o chamariam o meu dever social Cumpro esse dever ou essa sorte sem grande esfor o nem not vel desintelig ncia Mas umas vezes em pleno trabalho outras vezes no pleno descanso que segundo os mesmos moralistas mere o e me deve ser grato transborda se me a alma de um fel de in rcia e estou cansado n o da obra ou do repouso mas de mim De mim porqu se n o pensava em mim De que outra coisa se n o pensava nela O mist rio do universo que baixa s minhas contas ou ao meu recl nio A dor universal de viver que se particulariza subitamente na 22 Livro do Desasocego Tomo I p g 102 minha alma medi nica Para qu enobrecer tanto quem n o se sabe quem uma sensa o de v cuo uma fome sem vontade de comer t o nobre como estas sensa es do simples c rebro do simples est mago vindas de fumar de mais ou de n o digerir bem O t dio E talvez no fundo a insatisfa o da alma ntima por n o lhe termos dado uma cren a a desola o da crian a triste que intimamente somos por n o lhe termos comprado o brinquedo divino talvez a inseguran a de quem precisa m o que o guie e n o sente no caminho negro da sensa o profunda mais que a noite sem ru do de n o poder pensar a estrada sem nada de n o saber sentir
71. como uma extens o de uma outra qualquer coisa exterior135 A cidade de Lisboa assim uma continua o dele pr prio tal como o c u azul era a continuidade dos olhos de Alberto Caeiro N o quer isto dizer que o autor do Livro aprendeu a viver em cidade 133 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 20 134 Livro do Desasocego Tomo I p g 22 135 Recordemos que em lvaro de Campos a fronteira das sensa es exteriores e interiores bem diferente havendo ainda uma profunda barreira como podemos observar sobretudo no paradigm tico poema Tabacaria em que a janela serve de ponte entre fora e dentro H tamb m em Campos esta necessidade de continuidade mas ele tem muito maiores dificuldades em atingir este patamar sobretudo pela sua personalidade inflamada e pouco calma tal como o Mestre tinha aprendido a viver em Natureza mas antes quer dizer que assimilou completamente para o seu mundo interior toda a realidade imanante e f sica Tudo o que existe j o vimos transformado em s mbolo e o que permite esta transforma o a similitude de tudo a redu o de tudo a um factor de denomina o comum a sensa o E para que tudo seja apenas sensa o preciso que o observador deixe de intervir passe a ser apenas um puro observador que recebe sensa es mas que n o as emite Pode parecer um objectivo imposs vel mas n o um objectivo maior do que aqueles que encontr mos nos outros heter nimos que c
72. como vimos nos outros heter nimos o mais dif cil de alcan ar A vida real persiste como um v rus no c rebro do sonhador puxa o para fora fala lhe dos outros das possibilidades junto dos outros da sua verdadeira natureza na sua verdadeira humanidade Durante toda a sua vida haver esta luta desigual entre a natureza e a fantasia entre o real e o imaginado entre o concreto e o sonho Uma luta que ele apenas pode travar armado da sua escrita da sua poesia O que o salva afinal o cansa o que ele j tem dentro de si o cansa o que n o o deixa recuar Ele j viveu e j foi desiludido pela vida tendo tomado a decis o cr tica de deixar de viver Essa decis o em certa medida tomada em nome alheio d lhe a for a incr vel de continuar a ser anti natural de continuar a combater a sua pr pria natureza enquanto outro N o ter ambi es n o desejar n o partilhar da vida externa n o considerar as coisas exteriores como coisas suas como coisas humanas n o ser ele pr prio humano tudo isto um rol de nega o que nomeia a sua pr pria filosofia O n o existencialismo isso mesmo a nega o n o das coisas em si mas da necessidade das coisas Ele enquanto sonhador n o necessita do mundo pelo contr rio O mundo um obst culo aos seus sonhos que decaem quando s o apenas ac o E para que eles persistam para que ele possa ser feliz os sonhos devem vencer e superar a
73. consci ncia plena que acabava por constituir a sua pr pria identidade interior Assim se compreende que o Livro era ele pr prio pois ao escrev lo ele definia em sonho uma vida que ele n o podia ter no exterior e que era a vida que ele realmente queria para si Odiando a ac o odiava as viagens E quando viajava apenas se prendia aos pensamentos e n o ao mundo que passava diante dos seus olhos Devaneio entre Cascais e Lisboa Fui pagar a Cascais uma contribui o do patr o Vasques de uma casa que tem no Estoril Gozei antecipadamente o prazer de ir uma hora para l uma hora para c vendo os aspectos sempre v rios do grande rio e da sua foz atl ntica Na verdade ao ir perdi me em medita es abstractas vendo sem ver as paisagens aqu ticas que me alegrava ir ver e ao voltar perdi me na fixa o destas sensa es N o seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem o mais pequeno trecho de vis vel Lucrei estas p ginas por olvido e contradi o N o sei se isso melhor ou pior do que o contr rio que tamb m n o sei o que 36 Ah viajem os que n o existem Para quem n o nada como um rio o correr deve ser vida Mas aos que pensam e sentem aos que est o despertos a horrorosa histeria dos comboios dos autom veis dos navios n o os deixa dormir nem acordar 3 Veja se bem a distin o feita no segundo fragmento entre os que n o existem e os que pensam e sentem A exist
74. conseguir sintetizar magnificamente o estado final do autor do Livro depois de todas as vicissitudes ocorridas entre o dentro e o fora Este fragmento fala nos de um homem que andando pelas ruas lentamente se perde nelas para dentro de si pr prio e depois perde se mesmo dentro de si pr prio dilu do numa sensa o impar vel de inconsequ ncia e aliena o a alma que levada no corpo d o acesso proibido consci ncia e depois atrav s da consci ncia que o homem se d conta da sua pr pria aliena o no mundo exterior O resultado uma sensa o global de desconex o abrupta entre ser e existir porque o existir exige o ser no mundo No fim das contas o corpo e a alma sentem se um nada um v cuo uma ilus o na esperan a t nue de encontrarem um sentido para a sua pr pria coloca o no grande esquema das coisas Ora este sentimento avassalador pode bem ser o sentimento que resume toda a nossa aventura pelos textos que cont m descri es da cidade Em certa medida o autor do Livro come ou inocentemente tentando ver a cidade o fora enquanto extens o do seu pr prio 193 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 498 99 interior s depois de dezenas de centenas de textos que essa luta come a a deixar de fazer sentido porque ele come a a vislumbrar que n o h continuidade poss vel entre fora e dentro A exist ncia uma coisa iminentemente interior e n o exterior
75. contr i em fun o dessa pr pria realidade individual e como a serve e pode servir O pensamento e a constru o desse pensamento na materialidade vis vel n o s o indistingu veis mas h entre eles uma continuidade macabra que os enreda num ciclo cont nuo A novidade de Fernando Pessoa parece ser a utiliza o em sentido inverso do movimento desse mesmo ciclo de fora para dentro ac o pensamento inac o e n o apenas de dentro para fora o tradicional pensamento ac o N o apenas e isso deve se refor ar a mera identifica o de elementos externos enquanto elementos conduzentes a aplicarem se a justificar uma determinada sensa o ou sentimento interior A melhor met fora que podemos aplicar aqui de pensarmos a cidade interiorizada o ritmo exterior das coisas enquanto ritmo interiorizado das coisas Veja se mais em pormenor este fen meno noutra transi o abrupta Nas casas coloridas que o sol n o v as cores come am a ter tons de cinzento delas H frio nas diversidades dessas cores Dorme uma pequena inquieta o nos vales falsos das ruas Dorme e sossega E pouco a pouco nas mais baixas das nuvens altas come am os reflexos a ser de sombra s naquela pequena nuvem que paira guia branca acima de tudo o sol conserva de longe o seu ouro rindo Tudo quanto tenho buscado na vida eu mesmo o deixei por buscar Sou como algu m que procure distraidamente o que no sonho entre a busca esqueceu j
76. de ter com eles a intimidade e n o o mero contacto com gente que o prejudicador ter de fazer gelar toda a sua superf cie de conviv ncia para que todo o gesto fraternal e social feito a ele escorregue e n o entre ou n o se imprima Parece muito isto mas pouco Os homens s o f ceis de afastar basta n o nos aproximarmos Enfim passo sobre este ponto e reintegro me no que explicava Como vemos em cima antes de um segundo passo h uma atitude a ser tomada que quase dada como t o necess ria que nem sequer se assume como um passo em si mesmo essa atitude o afastamento J fal mos muito sobre o afastamento mas aqui vis vel como ele se integra no projecto do sonhador preciso que o sonhador se afaste da intimidade dos homens da intimidade e n o do mero contacto pois essa intimidade n o lhe permitir concentrar se nas suas pr prias sensa es O autor do Livro considera que apenas os ricos se conseguir o realmente isolar completamente O criar uma agudeza e uma complexidade imediata s sensa es as mais simples e fatais conduz eu disse se a aumentar imoderadamente o gozo que sentir d tamb m a elevar com desprop sito o sofrimento que vem de sentir Por isso o segundo passo do sonhador dever ser o evitar o sofrimento N o dever evit lo como um est ico ou um epicurista da primeira maneira desni dilficando se porque assim endurecer para o prazer como para a dor Dever
77. de viva que se pode eliminar a barreira entre mat ria e esp rito deixando de haver tudo menos o que sentido ou percepcionado H que entender o que quer dizer ser reduzido a uma sensa o de si pr prio Trata se de uma opera o complexa em que o ind viduo deixa de existir na realidade exterior para passar a existir apenas dentro de si pr prio sendo que a falta de consist ncia da sua vida lhe serve para ele pr prio olhar para toda a realidade da mesma fora dentro e fora de si Quando o autor do Livro olha para o mundo e o descreve reparando nele n o se limita a escrever belos textos po ticos melanc licos e sonhadores Ele diz nos como est a percepcionar a realidade exterior enquanto sensa o Desta maneira se compreende como ele em muitas ocasi es liga essa percep o exterior sua pr pria condi o interior Esta hora horrorosa que ou decres a para poss vel ou cres a para mortal Que a manh nunca raie e que eu e esta alcova toda e a sua atmosfera interior a que perten o tudo se espiritualize em Noite se absolute em Treva e nem fique de mim uma sombra que manche da minha mem ria o que quer que seja que n o morra 3 H uma clara confus o entre ele e o mundo mas uma confus o propositada As sensa es s o universalmente aplicadas quer ao mundo interior quer ao mundo exterior Isto quer dizer que qualquer coisa que seja vista cheirada tocada se pode tornar em continuidade
78. dela pelo absurdo da pr pria vida Roquentin na novela de Sartre quer resolver os seus problemas exteriores e pesa lhe que esses problemas sequer existam O individual aqui continua a ser um individual comunit rio preocupado com os objectos exteriores e tentando perceber a sua posi o relativamente a eles A n usea Pessoana muito mais vaga e por isso mesmo muito menos pesada no que toca rela o do ser com os outros e com os objectos Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais Se me debru o sobre os meus sonhos sobre qualquer coisa que me debru o 6 A plena continuidade entre fora e dentro entre real e imaginado eis o que verdadeiramente distingue a filosofia do Livro da chamada filosofia existencialista O autor do Livro diz claramente que pode imaginar a sua realidade mesmo que a esteja a viver Haver certamente algum exagero pois muito dif cil conciliar o sonho das coisas com a realidade das coisas mas o princ pio o que por agora nos interessa relevar O princ pio que diz que n o h uma clara diferencia o entre fora e dentro entre sonho e realidade E isto algo que n o vemos presente na discuss o dos existencialistas Um dos meus passeios predilectos nas manh s em que temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a cadeia o de seguir lentamente pelas ruas fora antes da abertura das lojas e dos armaz ns e ouvir os farrapos de frases que os grupos de ra
79. desta teoria se n o fosse ela a sua pr pria teoria De seguida veremos como ele a p e verdadeiramente em pr tica atrav s das intrincadas e inesperadamente bem desenvolvidas maneiras de bem sonhar V Maneiras de bem sonhar Existem quatro fragmentos no Livro do Desassossego relativos a um m todo de bem sonhar O autor do Livro no entanto n o lhe chama um m todo mas antes maneiras E bom de ver que nau uma maneira uma forma de fazer na verdadeira acep o etimol gica de uma arte A primeira quest o que nos assalta a seguinte devemos tomar estes fragmentos como algo deliberado de forma a ser poss vel transform los num m todo Penso que a resposta sim Simplesmente porque como veremos ele s o escritos de forma imperativa se bem que o imperativo no Livro quase sempre introspectivo Estes s o verdadeiros mandamentos do homem de ac o que como vimos o homem sonhador Mandamentos que o autor do Livro enuncia como mantras de forma a convencer se a si mesmo atrav s da repeti o Tentaremos da melhor forma poss vel agrupar estes mandamentos mas ser necess rio analisar um a um cada um dos fragmentos intitulados Maneira de bem sonhar Eles s o quatro como j dissemos e t m datas diferentes Dois s o presumivelmente de 1913 Pessoa em 1913 tem 25 anos por isso estes s o textos de juventude em que ele estabelece determinado um processo consc
80. diversas ocasi es em que a sua an lise lhe presenteia conclus es inadi veis e irrecus veis sobretudo ao n vel da falsidade da realidade exterior e da validade suprema do mundo interior De certa forma indiferente como a sua filosofia formada porque o momento que ela passa a existir ela torna se uma realidade em si mesma N o h forma de ele escapar sua exist ncia e ela condiciona a sua vida em todos os pormenores come ando pela forma como ele vai agir Tenho que escolher o que detesto ou o sonho que a minha intelig ncia odeia ou a ac o que a minha sensibilidade repugna ou a ac o para que n o nasci ou o sonho para que ningu m nasceu Resulta que como detesto ambos n o escolho nenhum mas como hei de em certa ocasi o ou sonhar ou agir misturo uma coisa com outra 36 J toc mos diversas vezes o problema da incapacidade de viver realmente um problema mas ao se impor ao indiv duo for a o a optar optar por desistir de viver ou ent o a resolver o problema que o impede de viver O autor do Livro optou por resolver esse problema construindo uma realidade dentro de si pr prio baseada no entanto no mundo exterior como j vimos e uma forma de agir que mistura a ac o exterior com o sonho interior De que forma que este princ pio basilar influencia a forma como a sua filosofia elaborada Desde logo a filosofia do Livro uma filosofia imposs vel de enunciar sen o de forma po tic
81. e pela consci ncia plena que mais vale a pena servir um mestre concreto e vis vel o Vasques do que mestres escondidos e abstractos Tudo isto faz parte do seu processo de afastamento da realidade Por paradoxal que possa parecer o facto de ele ser um empregado no com rcio de ter uma rotina concreta fun es atribu das um sal rio que o tornam um candidato perfeito para deixar de ter uma vida exterior Esta fixa o das coisas exteriores em rotinas em quotidianos ajuda a torn las em absurdos Para algu m com uma consci ncia imposs vel da vida e da realidade n o h nada mais absurdo do que ter uma vida como esta mas na verdade que atitude exterior pode ser mais adequada perante o absurdo do que precisamente uma vida absurda O escrit rio o seu amor pelo escrit rio pela sua actividade e n o propriamente pelas pessoas l dentro o princ pio deste afastamento completo de tudo Ele confirma nos isso mesmo no seguinte fragmento Ah compreendo O patr o Vasques a Vida A Vida mon tona e necess ria mandante e desconhecida Este homem banal representa a banalidade da Vida Ele tudo para mim por fora porque a Vida tudo para mim por fora E se o escrit rio da Rua dos Douradores representa para mim a vida este meu segundo andar onde moro na mesma Rua dos Douradores representa para mim a Arte Sim a Arte que mora na mesma rua que a Vida por m num lugar diferente a Arte que alivia da vida sem a
82. e perfeita Por outro lado h uma associa o subtil da morte ao sono e do sono ao sonho Trata se do sono enquanto cessa o da vida n o propriamente um sono literal A vida para mim uma sonol ncia que n o chega ao c rebro Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste 31 Tenho sonhado muito Estou cansado de ter sonhado por m n o cansado de sonhar De sonhar ningu m se cansa porque sonhar esquecer e esquecer n o pesa e um sono sem sonhos em que estamos despertos Em sonhos consegui tudo Tamb m tenho despertado mas que importa Quantos C sares fui E os gloriosos que mesquinhos C sar salvo da morte pela generosidade de um pirata manda crucificar esse 229 Num fragmento que aqui j referimos ele diz Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a cren a em Deus pela mesma raz o que os seus maiores a haviam tido sem saber porqu E ent o porque o esp rito humano tende naturalmente para criticar porque sente e n o porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para suced neo de Deus Perten o por m quela esp cie de homens que est o sempre na margem daquilo a que pertencem nem v em s a multid o de que s o sen o tamb m os grandes espa os que h ao lado Por isso nem abandonei Deus t o amplamente como eles nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improv vel poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Hum
83. e reflex es idealizadas para se inserirem precisamente naquele movimento filos fico Mas a verdade que esta poder ser uma conclus o demasiado simplista Como veremos no seguimento do nosso estudo outra palavra que marca o Livro a palavra Intervalo O autor do Livro que pretendemos conhecer melhor no seu ntimo parece nos ser algu m sobretudo conprometido com estes intervalos com os espa os entre o compromisso com as ideias Por isso ele escreve Perten o por m quela esp cie de homens que est o sempre na margem daquilo a que pertencem nem v em s a multid o de que s o sen o tamb m os grandes espa os que h ao lado Ora os espa os que h ao lado s o precisamente os intervalos Em muitos fragmentos veremos esta express o aparecer classificando ideias ou momentos em que ele sente intimamente que est a fazer uma qualquer escolha paralela original colocando se fora das op es normalmente tomadas pelos seus contempor neos O autor do Livro diz claramente que n o aceitou a humanidade Ou seja ele n o poder ser considerado verdadeiramente um existencialista por ter a descren a na humanidade Mas por outro lado ele n o abandonou Deus completamente O que lhe aconteceu foi mais radical do que a op o por um existencialismo ele ficou na decad ncia na perda total da insconsci ncia obrigado a uma vida de contempla o est tica e resigna o ao destino por n o sa
84. em pessoas reais Tudo me esbofeteia e me escarnece E s vezes em pleno meio da rua inobservado afinal paro hesito procuro como que uma s bita nova dimens o uma porta para o interior do espa o para o outro lado do espa o onde sem demora fuja da minha consci ncia dos outros da minha intui o demasiado objectivada da realidade das vivas almas alheias Ser que o meu h bito de me colocar na alma dos outros me leva a ver me como os outros me v em ou me veriam se em mim reparassem Sim E uma vez eu perceba como eles sentiriam a meu respeito se me conhecessem como se eles o sentissem na verdade o estivessem sentindo e sentindo o exprimindo o naquele momento Conviver com os outros uma tortura para mim E eu tenho os outros em mim Mesmo longe deles sou for ado ao seu conv vio Sozinho multid es me cercam N o tenho para onde fugir a n o ser que fuja de mim grandes montes ao crep sculo ruas quase estreitas ao luar ter a vossa inconsci ncia de a vossa espiritualidade de Mat ria apenas sem interior sem sensibilidade sem onde p r sentimentos nem pensamentos nem desassossegos de esp rito Arvores t o apenas rvores com uma verdura t o agrad vel aos olhos t o exterior aos meus cuidados e s minhas penas t o consoladora para as minhas ang stias porque n o tendes olhos com que as fitardes nem alma que fit vel por esses olhos possa n o as compreender e tro las Pedras do caminho troncos dece
85. entretia a reparar intensamente nos outros era o pr prio Fernando Pessoa Ali s a passagem anterior do Livro remete nos de imediato para outras duas em que ele anda no el ctrico e na rua Vou num carro el ctrico e estou reparando lentamente conforme meu costume em todos os pormenores das pessoas que v o adiante de mim Para mim os pormenores s o coisas vozes letras Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se comp e o trabalho com que o fizeram pois que o vejo vestido e n o estofo e o bordado leve que orla a parte que contorna o pesco o separa se me em retr s de seda com que se o bordou e o trabalho que houve de o bordar E imediatamente como num livro prim rio de economia pol tica desdobram se diante de mim as f bricas e os trabalhos a f brica onde se fez o tecido a f brica onde se fez o retr s de um tom mais escuro com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pesco o e vejo as sec es das f bricas as m quinas os oper rios as costureiras meus olhos virados para dentro penetram nos escrit rios vejo os gerentes procurar estar sossegados sigo nos livros a contabilidade de tudo mas n o s isto vejo para al m as vidas dom sticas dos que vivem a sua vida social nessas f bricas e nesses escrit rios Todo o mundo se me desenrola aos olhos s porque tenho diante de mim abaixo de um pesco o moreno que de outro lado tem n o se
86. essencial e ser discutida plenamente quando falarmos do sonho mas desde j podemos ver como o autor do Livro se debatia com ele desde muito cedo E debatia se porque esta quest o o preocupava e punha tudo em causa Como sonhar a realidade se o sonho algo ilus rio que n o tem consist ncia de verdade Ele responder de maneira firme e espantosamente original a esta quest o com uma hip tese linear se n o podes viver a tua vida perfeita vive o teu sonho dela E por n o se viver a vida perfeita que se pode conceber um sonho da vida n o uma vida de sonho atente se II H um caso muito particular nas descri es de juventude acerca da cidade de Lisboa que dizem respeito aos momentos que poder amos chamar de metereo psicol gicos Nestes momentos o poeta faz uma ponte entre o que ele sente e o que a Natureza sente tentando fazer a liga o entre o seu interior e o exterior da cidade N o apenas no Livro que podemos encontrar estes exemplos h v rios em lvaro de Campos mas ser nesta obra que ele porventura est o desenvolvidos mais a longo com intrincado pormenor H que entender mais uma vez que o autor do Livro essencialmente um contemplativo J vimos ali s logo no in cio desta nossa obra que a sua atitude perante a vida perante o exterior sobretudo uma atitude contemplativa ao ponto de ele reparar sobretudo nos outros essa a sua caracter stica particular M
87. est ligado l bido E sabendo como a l bido algo exterior tudo o que fortalecido interior Por ltimo julgar se mais infeliz do que se maximiza a sensa o e a necessidade de fugir da vida e de n o a recuperar Todos os estados depressivos por ess ncia s o estados de onde cada 218 Livro do Desasocego Tomo I p gs 49 50 datado presumivelmente de 1913 vez mais dif cil sair quanto mais os potenciarmos E a depress o a negatividade pode alimentar se a si pr pria pelo mero reviver da sua pr pria exist ncia Imaginar se mais infeliz ainda do que se serve ent o para afastar ainda mais a possibilidade de vislumbrar uma solu o para a infelicidade no mundo exterior dar ao mundo interior ainda mais for a enquanto nica sa da poss vel para essa mesma infelicidade bom de ver como este um caminho doloroso e incrivelmente perigoso pois o sonhador ser algu m irremediavelmente afastado da vida quotidiana Tendo estabelecido as regras fundamentais para a Maneira de bem sonhar o autor do Livro escreve um outro fragmento que o mais misterioso e intrincado com o t tulo Maneira de bem sonhar nos metaf sicos Maneira de bem sonhar nos metaf sicos Racioc nio tudo ser f cil e porque tudo para mim sonho Mando me sonh lo e sonho o As vezes crio em mim um fil sofo que me tra a cuidadosamente as filosofias enquanto eu pajem namoro a filha dele cuja alma sou j
88. este cap tulo invocando um texto que n o do Livro do Desassossego Trata se de uma passagem do longo poema Ode Mar tima Complexidade da vida As facturas s o feitas por gente Que tem amores dios paix es pol ticas s vezes crimes E s o t o bem escritas t o alinhadas t o independentes de tudo isso H quem olhe para uma factura e n o sinta isto Com certeza que tu Ces rio Verde o sentias Eu at s l grimas que o sinto humanissimamente Venham dizer me que n o h poesia no com rcio nos escrit rios Ora ela entra por todos os poros Neste ar mar timo respiro a Porque tudo isto vem a prop sito dos vapores da navega o moderna Porque as facturas e as cartas comerciais s o o princ pio da hist ria E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno s o o fim J aqui fal mos na maneira como o autor do Livro incorpora o absurdo da vida no seu quotidiano A sua actividade comercial absurdo ao m ximo para algu m como ele ao mesmo tempo constitui se na nica ocupa o exterior que lhe seria poss vel ter Como a vida em si mesma absurda quanto maior for absurda a actividade exterior que tenhamos e quanto mais a s rio a levemos mais absurda ser a nossa atitude perante a pr pria vida Estes dois absurdos t m pelo menos em teoria a tend ncia a anular se reconstruindo uma realidade que ganha um novo sentido Quase que fica ent o a ideia do autor do Livro enquanto um
89. fragamentos anteriores serve para ilustrar um pouco a forma como o pr prio autor do Livro pensa sobre este tema H uma grande mescla de sofrimento e de nobreza no seu entendimento da sua esp cie particular de vida ele v se como um hipersens vel que vive uma vida deslocada de si mesma e que foi colocado nessa condi o em certa medida para sobreviver a uma prova colocada por uma raz o superior O seu sofrimento um sofrimento dirigido por uma raz o embora isso n o possa ser muitas das vezes evidente na sua escrita Essa raz o dar lugar a uma no o de nobreza e em seguimento a uma no o de homem superior O que este homem superior Vejamos um novo fragmento do Livro a este respeito E curioso e estranho que n o sendo f cil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distinto dos animais todavia f cil encontrar maneira de diferen ar o homem superior do homem vulgar Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel o biologista que li na inf ncia da intelig ncia quando se l em as divulga es cient ficas e as raz es contra a religi o A frase esta ou quase esta que muito mais longe est o homem superior um Kant ou um Goethe creio que diz do homem vulgar que o homem vulgar do macaco Nunca esqueci a frase porque ela verdadeira Entre mim que pouco sou na ordem dos que pensam e um campon s de Loures vai sem d vida maior dist ncia que entre esse campon s e j
90. fragmentos fragmentos fragmentos in Carta a Armando Cortes Rodrigues datada de 19 11 1914 Sobre o estilo da escrita do Livro e da personalidade de um dos seus autores O meu semi heter nimo Bernardo Soares que ali s em muitas coisas se parece com lvaro de Campos aparece sempre que estou cansado ou sonolento de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de racioc nio e de inibi o aquela prosa um constante devaneio um semi heter nimo porque n o sendo a personalidade a minha n o diferente da minha mas uma simples mutila o dela Sou eu menos o racioc nio e a afectividade A prosa salvo o que o racioc nio d de t nue minha igual a esta e o portugu s perfeitamente igual in Carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 1 1935 Num recente filme intitulado precisamente Filme do Desassossego o realizador Jo o Botelho d plena vida personagem Bernardo Soares tirando o do limbo de exist ncia que ele afinal n o ser mais do que o pr prio Livro que escreve Todo o filme tem a urea de sonho que lemos nas p ginas e penso que essa a maneira correcta pelo menos uma delas de ler essas mesmas p ginas e das interpretarmos enquanto aus ncia de racioc nio de alcance pleno e id lico de um horizonte totalmente imaginado N o nos vai interessar muito a pretensa evolu o estil stica do Livro mas antes o seu conte do concreto enquanto manual de sonho Cremos intensamente
91. furtar me s sensibilidades sociais Lentamente me couracei contra o sentimento do rid culo Ensinei me a ser insens vel quer para os apelos dos instintos quer para as solicita es Reduzi ao m nimo o meu contacto com os outros Fiz o que pude para perder toda a afei o vida Do pr prio desejo da gl ria lentamente me despi como quem cheio de cansa o se despe para repousar Do estudo da metaf sica das ci ncias passei a ocupa es de esp rito mais violentas para o equil brio dos meus nervos Gastei apavoradas noites debru ado sobre volumes de m sticos e de cabalistas que nunca tinha paci ncia para ler de todo de outra maneira que n o intermitentemente tr mulo e Os ritos e as raz es dos Rosa Cruz a simb lica da Cabala e dos Templ rios sofri durante tempos a opress o de tudo isso E encheram a febre dos meus dias especula es venenosas da raz o demon aca da metaf sica a magia a alquimia extraindo um falso est mulo vital de sensa o dolorosa e presciente de estar como que sempre beira de saber um mist rio supremo Perdi me pelos sistemas secund rios excitados da metaf sica sistemas cheios de analogias perturbantes de al ap es para a lucidez grandes paisagens misteriosas onde reflexos de sobrenatural acordam mist rios nos contornos Envelheci pelas sensa es Gastei me gerando os pensamentos E a minha vida passou a ser uma febre metaf sica sempre descobrindo sentidos ocultos nas
92. geral nos obrigam a fazer opini o dos outros sempre corteses para com eles e gostando deles mesmo atrav s de uma indiferen a interessada porque toda a gente interessante e convert vel em sonho em outras pessoas passamos sem habilidade para amar antecansam nos aquelas palavras que seria preciso dizer para se tornar amado De resto qual de n s quer ser amado O on le fatigait en l aimant de Ren n o o nosso r tulo justo A pr pria ideia de sermos amados nos fatiga nos fatiga at ao alarme A minha vida uma febre perp tua uma sede sempre renovada A vida real apoquenta me como m dia de calor H uma certa baixeza no modo como apoquenta 3 Para um leitor menos atento um sensacionismo pareceria uma corrente que defenderia precisamente a necessidade de captarmos as sensa es directamente de estarmos activamente a capt las na vida exterior Mas n o assim Ali s talvez seja precisamente o oposto disso O sensacionismo aparece como uma atitude moderna de t dio de cansa o perante a realidade mas tamb m enquanto uma atitude revolucion ria O sensacionista n o se cansa apenas da realidade desprezando o o seu valor para atingir a verdade das coisas essa atitude a atitude dos existencialistas O sensacionista sonha a realidade que despreza e torna a assim mais alta e nobre a sua operatividade perante o mundo exterior que o distingue do existencialista que se recusa a acreditar na validade de
93. honestidade transcendental que me inibe desde que o fixei na minha consci ncia de ter rela es muito acentuadas com o mundo palp vel 202 Para um homem que decide n o agir no mundo mas apenas na sua pr pria realidade interior o mundo exterior torna se objecto de uma alargada perspectiva est tica Mas regressando ao t dio o que ele ele realmente Vejamos o que nos diz o autor do Livro T o dado como sou ao t dio curioso que nunca at hoje me lembrou de meditar em que consiste Estou hoje deveras nesse estado interm dio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa E emprego a s bita lembran a de que nunca pensei em o que fosse em sonhar ao longo de pensamentos meio impress es a an lise sempre um pouco fact cia do que ele seja N o o sei realmente se o t dio somente a correspond ncia desperta da sonol ncia do vadio se coisa na verdade mais nobre que esse entorpecimento Em mim o t dio frequente mas que eu saiba porque reparasse n o obedece a regras de aparecimento Posso passar sem t dio um domingo inerte posso sofr lo repentinamente como uma nuvem externa em pleno trabalho atento N o consigo relacion lo com um estado da sa de ou da falta dela n o alcan o conhec lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim Dizer que uma ang stia metaf sica disfar ada que uma grande desilus o inc gnita que uma poesia surda da alma aflorando aborrecida
94. i por delega o Paisagens s o repeti es Numa simples viagem de comboio divido me in til e angustiadamente entre a inaten o paisagem e a inaten o ao livro que me entreteria se eu fosse outro Tenho da vida uma n usea vaga e o movimento acentua ma 0 H parece me uma grande diferen a entre o processo existencialista de filtrar as sensa es exteriores pela n usea para tornar todo o mundo absurdo e por consequ ncia libertar o homem do mundo abandonando o ao seu pr prio destino e o processo do Livro em que a n usea muito mais subtil mais et rea sem sequer parecer ter uma fun o pr pria A n usea no Livro apenas a sensa o f sica da vida resume talvez o peso da pr pria consci ncia Se Dostoevsky dizia que o sofrimento estava na fonte da consci ncia a n usea n o pode deixar de ser uma forma de sofrimento mas o uma forma muito mais subtil em Pessoa do que por exemplo em Sartre Isto explica se por uma raz o muito simples Sartre e os outros existencialistas continuavam a pensar numa filosofia comunit ria til enquanto Pessoa desenha uma filosofia a primeira filosofia verdadeiramente individual in til para a comunidade enquanto um todo Porque o homem no Livro um homem que n o procura significados para a sua vida exterior O individualismo existencialista falso por esta mesma raz o o existencialista quer continuar a existir em sociedade por muito que se retire
95. interesseiro mas no fundo justo com uma justi a que falta a muitos grandes g nios e a muitas maravilhas humanas da civiliza o direita e esquerda Para outros ser a vaidade a nsia de maior riqueza a gl ria a imortalidade Prefiro o Vasques homem meu patr o que mais trat vel nas horas dif ceis que todos os patr es abstractos do mundo Considerando que eu ganhava pouco disse me o outro dia um amigo s cio de uma firma que pr spera por neg cios com todo o Estado voc explorado Soares Recordou me isso de que o sou mas como na vida temos todos que ser explorados pergunto se valer menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade pela gl ria pelo despeito pela inveja ou pelo imposs vel H os que Deus mesmo explora e s o profetas e santos na vacuidade do mundo E recolho me como ao lar que os outros t m casa alheia escrit rio amplo da Rua dos Douradores Achego me minha secret ria como a um baluarte contra a vida Tenho ternura ternura at s l grimas pelos meus livros de outros em que escrituro pelo tinteiro velho de que me sirvo pelas costas dobradas do S rgio que faz guias de remessa um pouco para al m de mim Tenho amor a isto talvez porque n o tenha mais nada que amar ou talvez tamb m porque nada valha o amor de uma alma e se temos por sentimento que o dar tanto vale d lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como grande indiferen a das estr
96. isto realmente dizer Parece nos que Pessoa admirava a capacidade de afastamento do autor do Livro admirava lhe o facto de ele estar realmente isolado da realidade que observava Embora Pessoa nos diga que o autor do Livro tem muitas semelhan as com lvaro de Campos o Engenheiro na sua fase modernista mais intensa pretendia fazer se parte do caos para compreender o caos o autor do Livro pretende afastar se de tudo para se compreender a si pr prio Quase como se ele tivesse aprendido a li o de lvaro de Campos se o demasiado leva ao nada porque n o come ar do nada E para come ar do nada h que reconhecer a import ncia da visualiza o remota das coisas De ver tudo de longe para n o influir em nada A nica forma de atingir este estado atrav s do sonho o sonho que permitir enquanto ferramenta metodol gica o acesso a esta verdade impoluta a esta verdade livre do observador Pensamos que nenhum estudioso Pessoano considerou at agora que apenas sonhando a realidade Pessoa a poderia ver tal como ela era acedendo deste modo a uma verdade superior Certamente que este m todo apenas mais um dos tentados por Pessoa J referimos anteriormente como o percurso efectuado pelos heter nimos um percurso sobretudo baseado numa esp cie de trial and error de teste e erro de diversas teorias Caeiro tenta a aproxima o Natureza Reis o estoicismo da aceita o do destino Campos a imers o no caos dos sen
97. len ol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfei o VII O sonho n o apenas um m todo Ali s a defini o do sonho enquanto m todo apenas a nossa forma de o expor de forma mais concreta e aberta ao leitor menos avisado para a sua possibilidade dentro da obra de Fernando Pessoa Na realidade o sonho n o foi pensado enquanto m todo simplesmente porque uma parte integrante de uma teoria mais ampla uma teoria puramente liter ria que apenas se presta investiga o filos fica devido sua particular natureza A nossa forma de descrever o sonho seria a forma como descrever amos a pr pria maneira de agir da literatura em Pessoa enquanto uma express o directa do inef vel do que n o pode ser dito N o ser por acaso que a ltima parte do nosso estudo estar reservada precisamente para a quest o da linguagem e da forma como a prosa po tica se poder colocar como instrumento fundamental para a descri o do mundo sobretudo para o descrever para al m dos limites da dita linguagem normal Mas n o vamos antecipar conclus es Por agora devemos preocuparmo nos em entender como o sonhador se distingue dos outros esses outros tantas vezes referidos na obra Pessoana H que real ar algo que existe ao longo de toda a obra de Pessoa e que por seguimento existe tamb m no Livro do Desassossego nem todos podem ser eleitos para compreender o sentido exacto do que sonhar O
98. lhe falou Sou Rei de Roma e acima da gram tica E a hist ria narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo super grammaticam Maravilhoso s mbolo Cada homem que sabe dizer o que diz em seu modo Rei de Roma O t tulo n o mau e a alma ser se Veja se como a gram tica um conceito ideal se confunde com a pr pria realidade imanente H aqui como que uma continuidade entre ser e existir mas uma continuidade que exige que o ser exista num mundo muito particular um mundo imaginado por ele enquanto mundo ideal N o a mesma continuidade que existe por exemplo em Caeiro entre ser e Natureza H tamb m aqui um perigo de fic o que reconhecido Sou em grande parte a mesma prosa que escrevo Tornei me uma figura de livro uma vida lida Se Pessoa se dilui nas suas personagens no Livro do Desassossego esse processo maximizado N o se trata j de uma fragmenta o que sempre parcial de qualidades de sensa es mas sim uma transmiss o completa de personalidade do ser em si mesmo para o ser pela escrita Ao ponto do autor do Livro n o ter uma exist ncia aut noma da sua pr pria escrita ele apenas Z existe em fun o do que escreve porque tudo o resto essencialmente superficial e sem import ncia A sua vida exterior funciona s como que uma m quina a que ele est ligado para poder escrever Ali s o pr prio sinal de que ele vive para a escrita
99. m se foi embora e n o precisou de levar aquele fato nico que vestira O exemplo singelo mas serve para ilustrar o facto de o m nimo poder levar ao m ximo Nesta caso a observa o do cad ver emp rica leva a uma an lise para al m da vida metaf sica 239 E ambos tamb m escreveram usando uma prosa elaborada e imag tica Basta lembrar o Zaratrustra de Nietszche 240 Livro do Desasocego Tomo p g 292 241 Livro do Desasocego Tomo p g 409 N o h que esquecer que existem actividades humanas n o materiais usando o paradigm tico conceito Wittgensteiniano de jogo de linguagem podemos dizer que existem jogos aplic veis a actividades que n o s o necessariamente ou inteiramente emp ricas A observa o de algo pode ser material concreta emp rica mas a interpreta o dessa realidade n o o A poesia n o descreve a realidade emp rica mas a impress o emocional dessa mesma realidade a um segundo n vel que depois se torna o n vel imediato da sua compreens o Parafraseando uma conhecida express o Pessoana dir amos que preciso sentir com os olhos Vemos como sonhar a realidade pode ser uma forma de a analisarmos profundamente sobretudo de uma forma em que n o fugimos do seu pr prio empirismo inicial Basta que reconhe amos que a arte desempenha aqui um papel essencial sem a arte n o h forma de libertarmos a pr pria linguagem das suas limita es l gicas II Quem sou eu p
100. me de repente de quando era crian a e via como hoje n o posso ver a manh raiar sobre a cidade Ela ent o n o raiava para mim mas para a vida porque ent o eu n o sendo consciente era a vida Via a manh e tinha alegria hoje vejo a manh e tenho alegria e fico triste A crian a ficou mas emudeceu Vejo como via mas por detr s dos olhos vejo me vendo O fragmento anterior assume grande import ncia no esclarecimento do que diz amos A consci ncia o momento decisivo na compreens o ou intelectualiza o da realidade exterior A idade adulta traz a consci ncia e a consci ncia que se imp e pr pria realidade que nos impede de certa maneira de a compreender sem intermedi rios Aqui o observador olha para dentro de si mesmo Mais olha para si mesmo a olhar se para si mesmo Podemos questionar se o observador n o procura em algum grau um regresso a essa inconsci ncia da sua juventude em que nada tinha significado Julgo que sim que ele tamb m pretende atingir essa inconsci ncia mas lhe algo imposs vel de obter na sua idade adulta J menos imposs vel ser considerar a hip tese de uma inconsci ncia parcial das coisas uma inconsci ncia do exterior ao lado da consci ncia do interior Isto porque n o ter desejos na pr pria acep o budista do termo ser conseguir tamb m da para a frente olhar para todas as coisas sempre com a mesma novidade sem conhecer nada nem desejar conhe
101. me deixa um horror vida interior uma n usea f sica dos misticismos e das contempla es Com que pressa corro de casa onde assim sonhe ao escrit rio e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto Considerando bem tudo prefiro o Moreira ao mundo astral prefiro a realidade verdade prefiro a vida vamos ao mesmo Deus que a criou N o conhe o melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente na sua realidade comercial por exemplo como a que surge no escrit rio da Rua dos Douradores Com que al vio eu volvia daquele manic mio de t teres para a presen a real do Moreira meu chefe guarda livros aut ntico e sabedor mal vestido e mal tratado mas o que nenhum dos outros conseguia ser o que se chama um homem Com o Moreira come a a notar se um afrouxar do distanciamento N o h registo de contacto f sico com o Patr o Vasques J com o Moreira h esse primeiro assomar de familiaridade Eram seis horas Fechava se o escrit rio O patr o Vasques disse do guarda vento entreaberto Podem sair e disse o como uma b n o comercial Levantei me logo fechei o livro e guardei o Pus a caneta visivelmente sobre a depress o do tinteiro e avan ando para o Moreira disse lhe um at amanh cheio de esperan a e apertei lhe a m o como depois de um grande favor De que que voc est a rir perguntou me sem mal a voz do M
102. meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das apar ncias e da manifesta o das coisas objectivista dos sonhos amante visual das formas e dos aspectos da natureza N o um caso do que os psiquiatras chamam onanismo ps quico nem sequer do que chamamerotomania N o fantasio como no onanismo ps quico n o me figuro em sonho amante carnal ou sequer amigo de fala da criatura que fito e recordo nada fantasio dela Nem como o erot mano a idealizo e a transporto para fora da esfera da est tica concreta n o quero dela ou penso dela mais que o que me d aos olhos e mem ria directa e pura do que os olhos viram 258 O fragmento anterior insere se num grupo de fragmentos intitulado O amante visual Nestes fragmentos no nosso entendimento o autor do Livro define o ltimo est gio do amor partindo de outros tipos de amor nomeadamente os cl ssicos H mesmo uma evolu o do amor desde os Gregos passando pela Cristandade e parando no mundo moderno 2 O futuro quanto a ele seria puramente est tico puramente visual Amar s com os olhos e nada mais Refor amos que o autor do Livro retira do mundo os s mbolos que deseja para os refundar em nova realidade no seu pr prio interior A exterioridade esvaziada de conte do em favor da interioridade absoluta esta interioridade que ele depois pretende comunicar mesmo quando parece falar do exterior isto sempre pelas sensa es H em todo o pro
103. mo do de eu viver diz me que muito cedo ainda Sinto me febril de longe Peso me n o sei porqu Num torpor l cido pesadamente incorp reo estagno entre o sono e a vig lia num sonho que uma sombra de sonhar Minha aten o b ia entre dois mundos e v cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um c u e estas profundezas interpenetram se misturam se e eu n o sei onde estou nem o que sonho Com uma lentid o confusa acalmo Entorpe o me B io no ar entre velar e dormir e uma outra esp cie de realidade surge e eu em meio dela n o sei de que onde que n o este Surge mas n o apaga esta esta da alcova t pida essa de uma floresta estranha Coexistem na minha aten o algemada as duas realidades como dois fumos que se misturam O sonho a realiza o da falta de consist ncia da realidade que impele ao sonho e ao mesmo tempo representa atrav s da sua pr pria descri o a inutilidade do acto de sonhar nessa realidade material Passa uma ideia de estagna o e de t dio consumado o cansa o a nota dominante logo na abertura sendo que o sujeito po tico nos d a entender que este um processo que o afasta em m ltiplas dimens es de coisas dentro e fora de si Penso que seja de relevar que este trecho foi inicialmente e em v rios planos iniciais proposto como o texto inicial do Livro do Desassossego dando a entender que poderia conter muitos dos princ pios b sicos do mes
104. n o s em ter f Porque acreditar pode simplesmente ser acreditar no nosso papel no mundo exterior sentir ter um destino um prop sito uma miss o ou seja uma felicidade exterior que notoriamente falta ao autor do Livro O t dio est tamb m relacionado como dissemos com uma perspectiva est tica Elahoremos um pouco sobre esta perspectiva recordando um outro fragmento Estou quase convencido de que nunca estou desperto N o sei se n o sonho quando vivo se n o vivo quando sonho ou se o sonho e a vida n o s o em mim coisas mistas interseccionadas de que meu ser consciente se forme por interpenetra o As vezes em plena vida activa em que evidentemente estou t o claro de mim como todos os outros vem at minha suposi o uma sensa o estranha de d vida n o sei se existo sinto poss vel o ser um sonho de outrem afigura se me quase carnalmente que poderei ser personagem de uma novela movendo me nas ondas longas de um estilo na verdade feita de uma grande narrativa 205 Numa primeira fase a projec o est tica do ser para si mesmo o resultado directo do seu corte de rela es com todo o mundo exterior O ser fica isolado dentro de si mesmo e sente se alienado no mundo exterior em que habita Esta estranheza que passa no fragmento que reproduzimos em cima evidente porque o indiv duo sente se deslocalizado numa realidade que j n o a sua E n o a sua porqu Porque ele se afastou traumatica
105. n o ser neste caso a ltima fase da produ o art stica O que aconteceu que atrav s da racionaliza o do seu afastamento o autor do Livro acedeu a uma filosofia que parte desse mesmo afastamento Na falta de melhor 180 Livro do Desasocego Tomo p g 328 met fora dir amos que ele se poderia aproximar ao xam que s depois de inalar a subst ncia que lhe permite o xtase se encontra nas perfeitas condi es de ver realmente o mundo e falar sobre ele O fim do Livro ent o apenas o ponto de partida desta nova filosofia do afastamento sendo ponto de chegada apenas da pr pria sensa o de afastamento por parte do autor a partir do momento em que ele se sente transeunte de tudo que a verdadeira sensa o do mundo lhe chega ao racioc nio N o pensamos que o Livro se possa resumir a um di rio existencialista um relato triste e acabado de uma realidade inultrapass vel e absurda muito pelo contr rio O que o autor do Livro nos mostra depois de nos revelar essa realidade uma forma de lidarmos com ela Como Mais frente veremos que atrav s de ferramentas muito particulares o autor do Livro propor a constru o da tal meta realidade de um mundo diferente se bem que sobreposto ao mundo actual que servir de solu o para o sentimento de absurdo e irrealiza o O importante ver como o Livro n o se encerra em si mesmo mas antes nos abre janelas para o entendimento e compreens o da r
106. na sua pr pria sensa o de todas as coisas e a m nima ac o lhe pesa como se lhe exigissem que liderasse uma revolu o esta estranheza perante a realidade que marca o afastamento do homem solit rio perante os outros e perante a pr pria realidade exterior Solit rio ao ponto de se encontrar refugiado dentro de si pr prio incapaz de sentir por mais tempo o peso de existir Seriamos tentados a dizer que o autor do Livro como o pr prio Fernando Pessoa apenas poderiam diluir se na pr pria realidade at desaparecerem pois esta oprime os ao ponto de ao a renegarem deixarem naturalmente de fazer parte dela para apenas fazerem parte do nosso sonho deles nela VIII N o s o as paredes reles do meu quarto vulgar nem as secret rias velhas do escrit rio alheio nem a pobreza das ruas interm dias da Baixa usual tantas vezes por mim percorridas que j me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade que formam no meu esp rito a n usea que nele frequente da quotidianidade enxovalhante da vida S o as pessoas que habitualmente me cercam s o as almas que desconhecendo me todos os dias me conhecem com o conv vio e a fala que me p em na garganta do esp rito o n salivar do desgosto f sico E a sordidez mon tona da sua vida paralela exterioridade da minha a sua consci ncia ntima de serem meus semelhantes que me veste o traje de for ado me d a cela de penitenci rio me faz ap crifo e mendigo 57
107. ncia visualizada as coisas do sonho 3 dimens es essas dimens es s o conhecidas quando se trata de mat ria espacial S podemos conceber coisas com tr s ou menos dimens es Mas se as coisas existem como existem apenas porque n s assim as sentimos segue que a sensibilidade o poder de serem sentidas uma quarta dimens o d elas As tr s dimens es das coisas n o s o altura largura e espessura Essa apenas a forma como as tr s dimens es nos aparecem nas coisas espaciadas vista As tr s dimens es s o assim supondo um observador colocado em A B cD AF temos que ele ver tudo em volta de tr s percep es AB a linha do objecto at ele CD a linha de lado a lado do objecto EF a linha de alto a baixo do objecto 249 Pessoa n o particularmente original na forma como inventa a sua filosofia nem tem de o ser A sua originalidade vem da forma como essa constru o efectuada tomando conceitos pr nu existentes como fen meno sensa o ou realidade Vejamos como ele o faz Como dissemos antes na base de tudo est a realidade A realidade desenha se espacialmente porque n s a apreendemos pelos fen menos que a comp em No entanto a forma como compreendemos esses fen menos est em n s mesmos Ou seja a velha no o das categorias plat nicas aqui disposta de forma Kantiana N s damos as dimens es aos objectos para os percepcionarmos De seguida a se
108. ncia aqui claramente equiparada consci ncia S os que s o conscientes existem realmente Os outros apenas sobrevivem Procuram eternamente a novidade e se calhar conseguem iludir se nisso porque n o pensam na vida porque n o existem Muitas vezes colocada em d vida a capacidade descritiva e mesmo emocional de Fernando Pessoa com base precisamente na sua falta de experi ncia de vida Este argumento torna se mais amargo quando toca nas emo es e na sua vida sexual mas podemos tentar defender a sua 35 Livro do Desasocego Tomo I p g 353 Livro do Desasocego Tomo I p g 306 3 Livro do Desasocego Tomo I p g 369 posi o usando precisamente as deambula es iniciais do autor do Livro Ele prop e nos que para quem desiste da vida a experi ncia dessa vida de nada serve pois n o h verdade na vida a vida absurda A vida apenas serve para que usando a como ponto de equil brio ergamos alto uma outra vida interior e preenchida plenamente apenas pelos nossos sonhos Para que necess ria a vida se temos os sonhos Em certa medida o homem moderno pode renunciar a tudo e atrav s da sua ren ncia aceder aos seus verdadeiros desejos N o este afinal um resumo perfeito da in til busca actual movida sobretudo pelos nossos impulsos consumistas Essa busca nunca acaba porque o desejo material nunca se consome a si pr prio Tal como Buda viu a necessidade de nos isolarmos do sofrimento da vida mate
109. ncia material para animal humano O que devemos reter desta longa passagem sobretudo essa sensa o de afastamento sublimado que poder sempre ser a partir de agora recordada e chamada instintivamente O simples facto de observarmos algo poder deslocalizar nos da realidade para o papel de observadores puros e neste estado que se opera a simboliza o da realidade exterior em realidade interior portanto de grande import ncia saber como atingir este estado e como o manter Veremos que o autor do Livro usa sobretudo o ext se po tico enquanto mantra sustent vel para operar esta simboliza o do real externo em real interno Quase que poder amos olhar para os textos do Livro do Desassossego enquanto textos religiosos que pintados no papel reproduzem para o morto para a vida maneira Eg pcia a outra vida que ele vai ter no futuro no outro mundo S Z que este outro mundo ainda o mundo presente se bem que desmaterializado Qual o reflexo desta atitude na vida quotidiana de Fernando Pessoa Se bem que estamos perante uma fic o o semi heter nimo carregar para a vida real de Fernando Pessoa uma grande parte destas sensa es e destas teorias Ele ver a an lise da realidade exterior da qual est alienado como forma de se salvar a si pr prio visto que a desist ncia pura dessa realidade atrav s do su cidio parece estar definititavamente fora de causa Ora a nica forma de morrer para o m
110. necessidade do dinheiro ou a necessidade greg ria ou o amor ou a gl ria ou a curiosidade que no sil ncio e na solid o n o podem ter alimento Se te imposs vel viver s nasceste escravo Podes ter todas as grandezas do esp rito todas da alma s um escravo nobre ou um servo inteligente n o s livre E n o est contigo a trag dia porque a trag dia de nasceres assim n o contigo mas do Destino para si somente Ai de ti por m se a opress o da vida ela pr pria te for a a seres escravo Ai de ti se tendo nascido liberto capaz de te bastares e de te separares a pen ria te for a a conviveres Essa sim a tua trag dia e a que trazes contigo Nascer liberto a maior grandeza do homem o que faz o ermit o humilde superior aos reis e aos deuses mesmo que se bastam pela for a mas n o pelo desprezo dela A morte uma liberta o porque morrer n o precisar de outrem O pobre escravo v se livre for a dos seus prazeres das suas m goas da sua vida desejada e cont nua V se livre o rei dos seus dom nios que n o queria deixar As que espalharam amor v em se livres dos triunfos que adoram Os que venceram v em se livres das vit rias para que a sua vida se fadou Por isso a morte enobrece veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo que ali est um liberto embora o n o quisesse ser que ali n o est um escravo embora ele chorando perdesse a servid o Como um rei cuja mai
111. negrume da vida os objectos pr ximos que no la formam o que h de vil de lasso de deixado e fact cio nesta Rua dos Douradores que me a vida inteira este escrit rio s rdido at sua medula de gente este quarto mensalmente alugado onde nada acontece sen o viver um morto esta mercearia da esquina cujo dono conhe o como gente conhece gente estes mo os da porta da taberna antiga esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais esta repeti o pegada das mesmas personagens como um drama que consiste apenas no cen rio e o cen rio estivesse s avessas Mas vejo tamb m que fugir a isto seria ou domin lo ou repudi lo e eu nem o domino porque o n o excedo adentro do real nem o repudio porque sonhe o que sonhe fico sempre onde estou 5 Temos vindo a observar como as descri es da cidade se tornam em cristaliza es do exterior em interior O fragmento que reproduzimos em cima reflecte a atitude o autor do Livro agora que chegamos mais ou menos a metade do mesmo Ele encontra se numa posi o em que o real se lhe op e como um advers rio a ser conquistado mas ele tem j plena consci ncia do arriscado que fazer esta oposi o de maneira t o aberta e desafiadora A realidade que ele percorrer diariamente a rua onde trabalha e passa a maior parte do dia o escrit rio s rdido o quarto alugado onde nada acontece sen o viver um morto a mercearia da esquina e os mo os da taberna tudo eleme
112. no in cio e Pessoa no fim de um percurso liter rio sui generis na hist ria Portuguesa com Ant nio Nobre que a literatura se come a a quebrar e permite o avan o lento mas progressivo da modernidade modernidade essa que atinge o seu pico com a ac o determinada e at obstinada de Fernando Pessoa Mas que opini o tinha Pessoa de Nobre Ele escreveu o seguinte texto sobre ele precisamente na mesma altura em que sa a o primeiro n mero da revista Orpheu PARA A MEM RIA DE ANT NIO NOBRE Quando a hora do ultimatum abriu em Portugal para n o mais se fecharem as portas do templo de Jano o deus bifronte revelou se na literatura nas duas maneiras correspondentes dupla direc o do seu olhar Junqueiro o de P tria e Finis Patriae foi a face que olha para o Futuro e se exalta Ant nio Nobre foi a face que olha para o Passado e se entristece De Ant nio Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de ent o para c t m sido pronunciadas T m subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou Mas ele foi o primeiro a p r em europeu este sentimento portugu s das almas e das coisas que tem pena de que umas n o sejam corpos para lhes poder fazer festas e de que outras n o sejam gente para poder falar com elas O ing nuo pante smo da Ra a que tem carinhos de espont nea frase para com as rvores e as pedras desabrochou nele melancolicamente Ele vem no Outono e pelo crep sculo Pobr
113. o como por vezes se tende a fazer O sonho n o apenas uma realidade imaginada mas antes a re imagina o da realidade exterior numa realidade interior Assim aquilo de que se abdica a realidade exterior pode continuar a existir re imaginada enquanto realidade interior apenas sonhada A inac o a tomada de posi o pela negativa que assegura que tudo isto ocorra porque deixar de agir deixar de considerar verdadeira a realidade exterior desistir da vida abdicar no nico sentido poss vel da palavra Mas a inac o n o equivalente a uma desist ncia O autor do Livro vai defender que a inac o a ac o dos sonhadores Ele coloca em oposi o os sonhadores como ele com os homens de ac o como o Patr o Vasques O sonhador n o superior ao homem activo porque o sonho seja superior realidade A superioridade do sonhador consiste em que sonhar muito mais pr tico que viver e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ac o Em melhores e mais directas palavras o sonhador que o homem de ac o Sendo a vida essencialmente um estado mental e tudo quanto fazemos ou pensamos v lido para n s na propor o em que o pensamos v lido depende de n s a valoriza o 1 Como o patr o Vasques s o todos os homens de ac o chefes industriais e comerciais pol ticos homens de guerra idealistas religiosos e sociais gra
114. o mais precisamente a sua fun o negativa Se viver a vida exterior resume toda a ac o na vida como ac o activa em movimento a sua aus ncia passa a representar uma atitude consciente perante essa mesma vida Compreenda se ent o que deixar de viajar pode mesmo significar uma atitude consciente e racional uma atitude nobre At que ponto Fernando Pessoa ter compreendido e tomado esta atitude na sua pr pria vida Sabemo lo ao longo da vida cada vez mais queixoso das viagens e do modo como estas interferiam com a sua sensibilidade Penso que as viagens ao lado do contacto humano quotidiano serviriam de perfeito s mbolo para a ac o na vida exterior e enquanto tal a maneira perfeita de a negar negando se a pratic las Mas a l gica do autor do Livro um pouco mais elaborada e vai al m da simples nega o Ele diz nos que me pode dar a China que a minha alma n o me tenha j dado Na realidade esta a forma simples de entendermos como a vida interior pode coexistir com a vida exterior Tudo o que perfaz a humanidade todos os s mbolos e conven es s o interpretados pela alma pela consci ncia e transportados para a vida interior Desta forma a viagem o s mbolo m ximo da ac o torna se inconsequente porque nada poder trazer de novo As novas terras a China trar o realidades iguais porque s o constitu das pelos mesmos significados e conven es s mudando a sua posi o geog
115. o conhecimento da realidade 2 N o insistiremos mais por agora no tema do amor Resta refor ar que h que entender o amor no contexto do Livro enquanto pleno reflexo de uma teoria da inac o ou seja o amor enquanto ac o n o se pode concretizar mas pode continuar a existir enquanto teoria est tica O amor meramente contemplativo tamb m porque enquanto exterioridade ele interfere com a pr pria afirma o pessoal Estamos todos habituados a considerar nos como primordialmente realidades mentais e aos outros como directamente realidades f sicas vagamente nos consideramos como gente f sica para efeitos nos olhos dos outros vagamente consideramos os outros como realidades mentais mas s no amor ou no conflito tomamos verdadeira consci ncia de que os outros t m sobretudo alma como n s para n s 53 Por tudo isto e embora ao longo do Livro o amor continue a aparecer muitas vezes o autor interpela algu m chamando lhe precisamente amor ele ser um amor est tico aquilo que ele denomina como Anteros em que o amante um amante visual 5 Curiosamente Pessoa planeava um livro com poemas que ilustravam o que ele chamava de c rculo do fen meno amoroso Cada poema correspondia a uma poca ou Imp rio na seguinte ordem 1 Gr cia Antinous 2 Roma Epithalamium 3 Cristianidade Prayer to a Woman s Body 4 Imp rio Moderno Pan Eros 5 Quinto Imp rio Anteros 55 Parece cl
116. o da cidade de Lisboa passa a incorporar elementos humanos que em diversos momentos ultrapassam em import ncia os elementos estritamente arquitect nicos Um dos maiores exemplos desta vertente o grande fragmento intitulado Di rio ao acaso 14 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 81 Todos os dias a Mat ria me maltrata A minha sensibilidade uma chama ao vento Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes n o a express o que eles realmente t m mas a express o que teriam para comigo se soubessem a minha vida e como eu sou se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a rid cula e t mida anormalidade da minha alma Em olhos que n o me olham suspeito tro as que acho naturais dirigidas contra a excep o deselegante que sou entre um mundo de gente que age e goza e no fundo suposto de fisionomias que passam gargalha da acanhada gesticula o da minha vida uma consci ncia dela que sobreponho e interponho Debalde depois de pensar isto procuro convencer me de que de mim e s de mim a ideia da tro a e do opr brio leve parte e esguicha N o posso j chamar a mim a imagem do ver me rid culo uma vez objectivado nos outros Sinto me de repente abafar e hesitar numa estufa de mofas e inimizades Todos me apontam a dedo do fundo das suas almas Lapidam me de alegres e desdenhosas tro as todos que passam por mim Caminho entre fantasmas inimigos que a minha imagina o doente imaginou e localizou
117. o lhes d ajuda a tornar subjectivamente monstruosos incompreens veis e irreais Fragmentos verbais de inveja de lux ria de trivialidade v o de embate ao meu sentido de ouvir Sussurrados murm rios ondulam para a minha consci ncia Pouco a pouco vou perdendo a consci ncia n tida de que existo coextensamente com isto tudo de que realmente me movo ouvindo e pouco vendo entre sombras que representam entes e lugares onde entes o s o Torna se me gradualmente escuramente indistintamente incompreens vel como que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espa o infinito Passo aqui por passiva associa o de ideias a pensar nos homens que desse espa o e desse tempo tiveram a consci ncia analisadora e compreendedoramente perdida Sente se me grotesca a ideia de que entre homens como estes em noites sem d vida como esta em cidades decerto n o essencialmente diversas da em que penso os Plat es os Scotus Erigenas os Kants os Hegels como que se esqueceram disto tudo como que se tornaram diversos desta gente E eram da mesma humanidade Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos com que horrorosa nitidez ao pens los me sinto distante alheio confuso e Acabo a minha solit ria peregrina o Um vasto sil ncio que sons mi dos n o alteram no como sentido como que me assalta e subjuga Um cansa o imenso das meras coisas do simples estar aqui do encontrar me deste modo pesa me do esp rito ao
118. o moral ou ainda ordem moral O papel de observador ou reparador da realidade exterior permite lhe ter esta ambival ncia relativamente moral Ao mesmo tempo que renuncia obriga o de ter deveres morais Num dos fragmentos mais completos sobre a moral ele diz o seguinte Quando nasceu a gera o a que perten o encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse c rebro e ao mesmo tempo cora o O trabalho destrutivo das gera es anteriores fizera que o mundo para o qual nascemos n o tivesse seguran a que nos dar na ordem religiosa esteio que nos dar na ordem moral tranquilidade que nos dar na ordem pol tica Nascemos j em plena ang stia metaf sica em plena ang stia moral em pleno desassossego pol tico brias das f rmulas externas dos meros processos da raz o e da ci ncia as gera es que nos precederam alu ram todos os fundamentos da f crist porque a sua cr tica b blica subindo de cr tica dos textos a cr tica mitol gica reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos de legendas e de mera literatura e a sua cr tica cient fica gradualmente apontou os erros as ingenuidades selvagens da ci ncia primitiva dos evangelhos ao mesmo tempo a liberdade de discuss o que p s em pra a todos os problemas metaf sicos arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metaf sica brias de uma coisa incerta a que chamaram positividade
119. o pesado peso de deixar de viver No entanto h que considerar que nem toda a consci ncia do tipo de anular a ac o Basta lembrarmo nos por exemplo da vitalidade apregoada pelo existencialismo ate sta que substitui Deus pela for a humana pelos objectivos humanos Para os existencialistas ateus a consci ncia servia de arma eficaz para matar a f em coisas que n o pud ssemos ver tocar sentir com as pr prias m os Numa determinada perspectiva aquela consci ncia animava a ac o tornava a vida mais forte e substancial Mas a consci ncia de que fala o autor do Livro de molde a matar toda a ac o Trata se de uma consci ncia mais profunda das coisas e n o uma consci ncia apenas de estados de condi es imediatas Trata se de uma consci ncia que explora a consequ ncia a longo prazo dos nossos actos e das nossas decis es De certo modo a consci ncia dos existencialistas ateus era ela mesma uma inconsci ncia porque eles teorizavam a morte de Deus e a morte da import ncia de Deus para os homens ou seja determinavam que eles n o deveriam pensar em Deus Ao retirar um processo de pensamento eles aliviavam o pensamento humano dando mais lugar ac o tratando se por isso de uma consci ncia localizada J Pessoa fala nos de uma consci ncia total O homem no Livro um um homem condenado ao conhecimento ntimos das coisas na dimens o carnal que elas ganham na dimens o individualista da sua filosofia
120. o que era Torna se mais real que a coisa buscada ausente o gesto real das m os vis veis que buscam revolvendo deslocando assentando e existem brancas e longas com cinco dedos cada uma exactamente Que t m as casas coloridas a ver com a busca individual do autor do Livro Que tem a ver o sol que foge das ruas com o sentimento intenso de se ter perdido tudo sem sequer se ter tentado ir buscar H um choque aparente entre a realidade demasiado real da cidade e a realidade demasiado di fana do pensamento Mas na verdade ambas se enredam uma na outra A cidade feita pelo pensamento de quem a v e esse pensamento que d exist ncia cidade N o por m apenas 1 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 321 uma quest o de abordarmos a realidade enquanto a realidade pensada pelo ind viduo isso seria demasiado restritivo verdade que o ind viduo constr i a sua pr pria realidade pelo pensamento dela mas depois de constru da essa realidade assume se enquanto realidade em si mesma e pode posteriormente ser apropriada pelos sentidos de maneira diferente do que quando foi elaborada primitivamente Tentando simplificar dir amos que a realidade exterior pode ser continuamente constru da e desconstru da por quem a observa em fun o do pensamento A cidade muda continuamente em fun o do pensamento da cidade E muda n o s exteriormente mas tamb m interiormente muda a pr pria ideia da cidade e o s mbolo dessa
121. por Fernando Pessoa como personifica o absoluta do despojamento e da ren ncia O autor do Livro que assume v rios nomes entre os quais o primitivo foi Vicente Guedes ajudante de Guarda Livros num armaz m de fazendas na Baixa de Lisboa o com total falta de ambi o de progredir na carreira partilhando o escrit rio com figuras mais coloridas do que ele pr prio das quais se destaca o Guarda Livros Moreira e com um chefe o Vasques que ele ao mesmo tempo que despreza admira profundamente A imagem idealizada a de um homem solit rio sem amigos num emprego que n o lhe exige grandes responsabilidades que leva uma vida sem ambi es e sem grande n mero de conex es sociais Este homem nos tempos livres dedica se sem que ningu m o saiba a construir uma monumental obra em prosa uma obra que versa sobretudo sobre tudo aquilo que ele apenas v sem que tome alguma vez parte O autor do Livro sobretudo desligado das emo es humanas das conex es sociais Nada o obrigara nunca a fazer nada Em crian a passara isoladamente Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento Nunca frequentara um curso N o pertencera nunca a uma multid o Dera se com ele o curioso fen meno que com tantos quem sabe vendo bem se com todos se d de as circunst ncias ocasionais da sua vida se terem talhado imagem e semelhan a da direc o dos seus instintos de in rcia todos e de afastamento Nunca tev
122. por terra a no o de que a poesia apenas serve como ferramenta de representa o da realidade mesmo que a molde de maneira diferente quela em que realmente ela existe n s acreditamos que a poesia serve para compreender a realidade de uma forma que imposs vel linguagem normal Esta escolha ter filosoficamente grandes implica es que exploraremos mais tarde sobretudo quando falarmos mais em profundidade sobre o papel do sonho no Livro Mas desde j importante fixarmo nos em que medida o autor do Livro encara a poesia enquanto ferramenta de descoberta e que sub tipo de linguagem po tica ele escolhe H um fragmento essencial que devemos destacar Prefiro a prosa ao verso como modo de arte por duas raz es das quais a primeira que minha que n o tenho escolha pois sou incapaz de escrever em verso A segunda por m de todos e n o creio bem uma sombra ou disfarce da primeira Vale pois a pena que eu a esfie porque toca no sentido ntimo de toda a valia da arte Considero o verso como uma coisa interm dia uma passagem da m sica para a prosa Como a m sica o verso limitado por leis r tmicas que ainda que n o sejam as leis r gidas do verso regular existem todavia como resguardos coac es dispositivos autom ticos de opress o e castigo Na prosa falamos livres Podemos incluir ritmos musicais e contudo pensar Podemos incluir ritmos po ticos e contudo estar fora deles Um ri
123. que apenas lhe lembrada ocasionalmente Este ponto refor ado pela sua opini o quanto aos espelhos O homem n o deve poder ver a sua pr pria cara Isso o que h de mais terr vel A Natureza deu lhe o dom de n o a poder ver assim como de n o poder fitar os seus pr prios olhos S na gua dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto E a postura mesmo que tinha de tomar era simb lica Tinha de se curvar de se baixar para cometer a ignom nia de se ver O criador do espelho envenenou a alma humana Podemos ligar esta avers o imagem exterior escolha da sua profiss o porque n o h nada de mais in cuo ou normal do que um empregado no com rcio como ele pretendia ser Essa escolha de ocupa o n o de todo inocente visto que lhe permite ent o progredir nesta caminhada de afastamento o empregado no com rcio como se n o existisse continuando a existir pois a sua fun o auxiliar humanidade se ele falhar outro ocupar o seu lugar se ele cometer um erro grave esse erro grave ser corrigido por outro sem grandes consequ ncias pr ticas no mundo como um todo Podemos concluir que o emprego do autor do Livro n o de somenos import ncia Tanto assim que o termo escrit rio se encontra mais de 90 vezes espalhado pelo Livro A sua ocupa o exterior de suprema import ncia para perceber em quem ele se tornou quem ele efectivamente era E para esta conclus o ajuda ler
124. que constituem grande parte da subst ncia espiritual da minha vida imaginei me liberto para sempre da Rua dos Douradores do patr o Vasques do guarda livros Moreira dos empregados todos do mo o do garoto e do gato Senti em sonho a minha liberta o como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir Seria ent o o repouso a arte conseguida o cumprimento intelectual do meu ser Mas de repente e no pr prio imaginar que fazia num caf no feriado modesto do meio dia uma impress o de desagrado me assaltou o sonho senti que teria pena Sim digo o como se o dissesse circunstanciadamente teria pena O patr o Vasques o guarda livros Moreira o caixa Borges os bons rapazes todos o garoto alegre que leva as cartas ao correio o mo o de todos os fretes o gato meigo tudo isso se tornou parte da minha vida n o poderia deixar tudo isso sem chorar sem compreender que por mau que me parecesse era parte de mim que ficava com eles todos que o separar me deles era uma metade e semelhan a da morte Ali s se amanh me apartasse deles todos e despisse este trajo da Rua dos Douradores a que outra coisa me chegaria porque a outra me haveria de chegar De que outro trajo me vestiria porque de outro me haveria de vestir Todos temos o patr o Vasques para uns vis vel para outros invis vel Para mim chama se realmente Vasques e um homem sadio agrad vel de vez em quando brusco mas sem lado de dentro
125. que esse o core da obra a verdadeira novidade dela para a nossa an lise integrada 2 sabido que Fernando Pessoa pretendia no fim da sua vida reunir a sua obra sob o seu pr prio nome H quem adivinhe a a inten o de destruir todos os heter nimos ou pelo menos as suas personalidades individualizadas levantando o v u que revelaria o seu verdadeiro criador A certo ponto Pessoa coloca mesmo Vicente Guedes como autor de toda a sua obra heter nima encabe ada por um t tulo bem esclarecedor Na Casa de Sa de de Cascais Ora essa dita casa era um conhecido manic mio da altura Cf Jorge de Sena Fernando Pessoa e C 2 Heter nima p g 200 Edi es 70 3 Filme do Desassossego 2010 Ar de Filmes Iremos seguir para esta nossa an lise a Edi o Cr tica da Equipa Pessoa Imprensa Nacional Casa da Moeda a cargo de Jer nimo Pizarro sobretudo pelo seu rigor cient fico Em todos os fragmentos que reproduziremos os negritos e ou it licos s o nossos Sobre a poesia do sonho enquanto poesia do afastamento Cabe uma palavra introdut ria sobre a maneira como o pensamento de pessoa agrega a sua pr pria atitude perante a vida confundindo se n o poucas vezes com ela As m scaras de Pessoa j muitos o disseram s o formas de afastamento Por um lado afastam o sujeito do mundo exterior e por outro mant m no essencialmente isolado depois desse mesmo afastamento Toda a poesia de Pessoa pode quan
126. realidade interior simb lica Mas em que medida que o sonho se substitui realmente vida Este processo um processo doloroso O homem nasce homem de ac o e julga que a nica realidade poss vel a realidade exterior que sempre conheceu Regressar a uma realidade diferente constru da s por ele um processo extremamente doloroso e emocional porque implica a ren ncia a tudo o que sempre se conheceu Quais ser o as raz es poss veis para argumentar em favor de uma t o radical escolha de vida O que poder haver no sonho que n o h na vida e vice versa H uma explica o l gica que a explica o que menos nos interessa O autor do Livro diz nos que o sonhador tira muito mais da vida do que o homem de ac o e que na realidade o verdadeiro homem de ac o o sonhador verdade que a vida essencialmente um estado mental mas em que medida n s vivemos s num estado mental sem reflexo exterior seja por parte do que recebemos seja por parte do que oferecemos a esse mesmo exterior A raz o pr xima por optar pelo sonho uma raz o muito mais simples e tem a ver com a pr pria dor de viver amplamente ilustrada no todo da obra de Fernando Pessoa por querer escapar necessidade de viver que Fernando Pessoa elabora as Maneiras de bem sonhar O sonho operativo sim mas uma ferramenta utilizada para escapar pr pria dor da vida Penso que o autor do Livro enquanto experi ncia t
127. recusar a realidade exterior Primeiro h que perguntar ao pr prio autor do Livro Ele responde nos assim N o fizeram Senhor as vossas naus viagem mais primeira que a que o meu pensamento no desastre deste livro conseguiu Cabo n o dobraram nem Draia viram mais afastada tanto da aud cia dos audazes como da imagina o dos por ousar igual aos cabos que dobrei com a minha medita o e s praias a que com o meu El fiz aportar o meu esfor o Por vosso in cio Senhor se descobriu o Mundo Real por meu o Mundo Intelectual se descobrir Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos Tamb m na viagem do meu pensamento tive monstros e medos com que arcar No caminho para o abismo abstracto que est no fundo das coisas h horrores que passar que os homens do mundo n o imaginam e medos que ter que a experi ncia humana n o conhece mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o v cuo do mundo Apartados do uso dos seus lares xuis do caminho das suas casas vi vos para sempre da brandura de a vida ser a mesma chegaram por fim os vossos emiss rios v s j morto ao extremo oce nico da Terra Viram no material um novo c u e uma terra nova Eu longe dos caminhos de mim pr prio cego da vis o da vida que amo cheguei por fim tamb m ao extremo vazio das coisas borda imponder vel do limite dos entes porta sem lugar do abismo abstracto do Mundo En
128. religiosa Para respondermos a esta quest o deveremos antes considerar qual a posi o do autor do Livro perante Deus Reparo no homem directamente e vejo que t o inconsciente como um c o ou um gato fala por uma inconsci ncia de outra ordem organiza se em sociedade por uma inconsci ncia de outra ordem absolutamente inferior que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social E ent o tanto ou mais que da exist ncia de organismos tanto ou mais que da exist ncia de leis f sicas r gidas e intelectuais se me revela por uma luz evidente a intelig ncia que cria e impregna o mundo Bate me ent o sempre que assim sinto a velha frase de n o sei que escol stico Deus est anima brutorum Deus a alma dos brutos Assim entendeu o autor da frase que maravilhosa explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores em que se n o divisa intelig ncia ou mais que um esbo o dela Mas todos somos animais inferiores falar e pensar s o apenas novos instintos menos seguros que os outros porque novos E a frase do escol stico t o justa em sua beleza alarga se e digo Deus a alma de tudo Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande facto da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire n o descreu Compreendo que atendendo a certos factos aparentemente desviados de um plano e era preciso saber o plano para saber se s o desviados se atribua a essa intelig
129. rito abriria o espa o ponteado com o nome de Ces rio Verde mas n o o fecharia sem nele inscrever os nomes do patr o Vasques do guarda livros Moreira do Vieira caixeiro de pra a e do Ant nio mo o do escrit rio E a todos poria em letras magnas o endere o chave LISBOA Cf Livro do Desasocego Tomo I p g 248 22 Esta figura n o pode deixar de ter semelhan as tamb m com outra figura marcante da literatura do S culo XX Franz Kafka Solit rio advogado burocrata mal conhecido em vida doente e mal ajustado morrendo com pouco mais de 40 anos na quase total obscuridade 2 Livro do Desasocego Tomo I p g 125 Ao aproximar se de Pessoa o autor do Livro apenas lhe fala cinicamente porque precisa dele para que o seu Livro seja publicado De resto ele parece incapaz de se ligar aos outros seres humanos principalmente porque assim que sempre viveu e assim que aparentemente prefere viver Curiosamente a escolha da prosa em detrimento do verso vem precisamente do facto dele levar uma vida t o vazia pois ele escreve Prefiro a prosa ao verso como modo de arte por duas raz es das quais a primeira que minha que n o tenho escolha pois sou incapaz de escrever em verso A segunda por m de todos e n o creio bem uma sombra ou disfarce da primeira Vale pois a pena que eu a esfie porque toca no sentido ntimo de toda a valia da arte Considero o verso como uma coisa interm dia uma passagem da m
130. se medi lo Um decorrer fora do Tempo uma extens o que desconhecia os h bitos da realidade do espa o Que horas companheira in til do meu t dio que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali Horas de cinza de esp rito dias de saudade espacial s culos interiores de paisagem externa E n s n o nos pergunt vamos para que era aquilo porque goz vamos o saber que aquilo n o era para nada O in cio A nossa vida n o tinha dentro mortal e definitivo Basta uma pequena frase como esta para esvaziar o significado da vida exterior na verdade o sonho esvaziou a vida e deixou apenas figuras sem exist ncia sem significado Existir no sonho existir tamb m sem conte do porque em certa medida o sonho da realidade o sonho da falta de realidade no sonho As presen as no sonho s o di fanas e n o se podem comprometer com ac es com a pr pria necessidade de terem fronteiras entre si de interagirem e tomarem decis es O que se sabe que nada vale a pena quer isto dizer que nenhuma ac o vale a pena e que por isso tudo p ra Parar simb lico de nada significar porque a ac o simbolizada pelo movimento vimos isso nas viagens Parar tamb m parar de pensar nos significados da ac o recusar o movimento que caracteriza toda a realidade exterior Parar come ar em rigor a sonhar E nesse sonho o tempo n o existe Porque mais uma vez o tempo uma caracter stica do mund
131. sentido agir no mundo exterior O homem que contempla o mundo sentir sempre um sentimento profundo de t dio de falta de vontade de agir no mundo Caminh vamos juntos e separados entre os desvios bruscos da floresta Nossos passos que era o alheio de n s iam unidos porque un ssonos na macieza estalante das folhas que juncavam amarelas e meio verdes a irregularidade do ch o Mas iam tamb m disjuntos porque ramos dois pensamentos nem havia entre n s de comum sen o que o que n o ramos pisava un ssono o mesmo solo ouvido Quem ramos Ser amos dois ou duas formas de um N o o sab amos nem o pergunt vamos Um sol vago devia existir pois na floresta n o era noite Um fim vago devia existir pois caminh vamos Um mundo qualquer devia existir pois existia uma floresta N s por m ramos alheios ao que fosse ou pudesse ser caminheiros un ssonos e intermin veis sobre folhas mortas ouvidores an nimos e imposs veis de folhas caindo Nada mais Um sussurro ora brusco ora suave do vento inc gnito um murm rio ora alto ora baixo das folhas presas um resqu cio uma d vida um prop sito que findara uma ilus o que nem fora a floresta os dois caminheiros e eu eu que n o sei qual deles era ou se era ou dois ou nenhum e assisti sem ver o fim trag dia de n o haver nunca mais do que o outono e a floresta e o vento sempre brusco e incerto e as folhas sempre ca das ou caindo E sempre como se
132. si mesmo a sua incapacidade de viver na vida real Podemos ver como se demarca cada vez mais a diferente entre o fora e o dentro sobretudo quando o autor do Livro vira a sua aten o para o fora Ele est muito vontade nas descri es do seu intimo mas revela grandes dificuldades em enfrentar a necessidade sempre presente de 142 Livro do Desasocego Tomo I p g 105 v Aerot iv abarcar o fora atrav s do seu pensamento como se esta exterioridade estivesse desde logo alanersianifi i i ist ncia vi Ea alienada de qualquer significado e apenas pudesse ganhar uma consist ncia vinda de dentro uma consist ncia de sonho exteriorizado Come a a haver nele um terror do mundo fora do seu pensamento Em grande medida porque esse mundo n o pode ser controlado ou entendido e tamb m porque esse mundo um mundo estranho habitado por pessoas que lhe s o estranhas O terror ac o adv m igualmente desta diferen a entre familiaridade e estranheza Habituando se a um quotidiano de pensamento absoluto qualquer ac o determinada far com que se reavivem antigos pavores gerando uma desconcentra o do seu foco inicial do seu objectivo maior o da destrui o do mundo exterior face ao mundo interior Como j o referimos anteriormente esta situa o acontece sobretudo quando ele fala das viagens O acto da viagem por ess ncia o acto ligado mais intensamente ac o e ao mundo exterior
133. sica para a prosa Como a m sica o verso limitado por leis r tmicas que ainda que n o sejam as leis r gidas do verso regular existem todavia como resguardos coac es dispositivos autom ticos de opress o e castigo Na prosa falamos livres Podemos incluir ritmos musicais e contudo pensar Podemos incluir ritmos po ticos e contudo estar fora deles Um ritmo ocasional de verso n o estorva a prosa um ritmo ocasional de prosa faz trope ar o verso Na prosa se engloba toda a arte em parte porque na palavra se cont m todo o mundo em parte porque na palavra livre se cont m toda a possibilidade de o dizer e pensar Na prosa damos tudo por transposi o a cor e a forma que a pintura n o pode dar sen o directamente em elas mesmas sem dimens o ntima o ritmo que a m sica n o pode dar sen o directamente nele mesmo sem corpo formal nem aquele segundo corpo que a ideia a estrutura que o arquitecto tem que formar de coisas duras dadas externas e n s erguemos em ritmos em indecis es em decursos e fluidezas a realidade que o escultor tem que deixar no mundo sem aura nem transubstancia o a poesia enfim em que o poeta como o iniciado em uma ordem oculta servo ainda que volunt rio de um grau e de um ritual Creio bem que em um mundo civilizado perfeito n o haveria outra arte que n o a prosa Deixar amos os poentes aos mesmos poentes cuidando apenas em arte de os compreender verbalmente assim os
134. sua necessidade primitiva de viver uma vida normal uma vida animal 69 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 281 XI Em que medida as paisagens deixam de ser encaradas progressivamente enquanto coisas externas a serem convertidas em coisas internas e passam a ser algo iminentemente afastado da realidade intr nseca do mundo interior Devemos perguntar nos em que altura Fernando Pessoa j consegue ter uma s ntese do mundo exterior e passa a encar lo de maneira fria e terminal Penso que existe um fragmento que pode ilustrar este momento que n o ser f cil de determinar no tempo como bvio No nevoeiro leve da manh de meia primavera a Baixa desperta entorpecida e o sol nasce como que lento H uma alegria sossegada no ar com metade de frio e a vida ao sopro leve da brisa que n o h tirita vagamente do frio que j passou pela lembran a do frio mais que pelo frio pela compara o com o ver o pr ximo mais que pelo tempo que est fazendo N o abriram ainda as lojas salvas as leitarias e os caf s mas o repouso n o de torpor como o de domingo de repouso apenas Um vest gio louro antecede se no ar que se revela e o azul cora palidamente atrav s da bruma que se esfina O come o do movimento rareia pelas ruas destaca se a separa o dos pe es e nas poucas janelas abertas altas madrugam tamb m aparecimentos Os el ctricos tra am a meio ar o seu vinco m bil amarelo e numerado E de minuto a minuto
135. tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade sem descer ao m todo da criada de servir que por ser tamb m delas baixo nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente est pida que decerto filha do interesse Dou vos estes conselhos desinteressadamente aplicando o meu m todo a um caso que me n o interessa Pessoalmente os meus sonhos s o de imp rio e gl ria n o s o sensuais de modo algum Mas quero ser vos til ainda que mais n o seja s para me arreliar porque detesto o til Sou altru sta a meu modo 76 O problema da moral no Livro muito curioso Estamos desde logo perante um homem que n o quer actuar em sociedade Se age apenas por uma necessidade b sica sobretudo pela necessidade de incorporar uma rotina quotidiana inconsciente e sem objectivos superiores N o ser descabido dizermos que este homem que passa pela vida sem a marcar que n o tem amigos nem desejos quase que n o existe materialmente Enquanto tal a sua presen a na sociedade poderia passar despercebida sem que ele tivesse quase necessidade de ter uma posi o moral Dirigindo se s mal casadas que afinal s o todas as mulheres ele avisa as para serem imorais mas apenas dentro de si pr prias em sonho Mais tarde no mesmo fragmento ele dir que ele se tamb m se lembra de crimes belos mas que nunca aconteceram porque apenas foram sonhados Termina dizendo que o conselho dado por ser
136. transmitindo em m sica intelig vel de cor N o far amos escultura dos corpos que guardariam pr prios vistos e tocados o seu relevo m bil e o seu morno suave Far amos casas s para morar nelas que enfim o para que elas s o A poesia ficaria para as crian as se aproximarem da prosa futura que a poesia por certo qualquer coisa de infantil de mem nico de auxiliar e inicial A vida exterior inevitavelmente espartilhada tal como a poesia J a prosa livre nela podemos falar livres Como tal a sua escrita teria de ser uma escrita totalmente livre porque sinal da liberta o da pris o da vida exterior simbolicamente representada pela poesia Apenas a prosa poderia encher a vida interior face a uma vida exterior t o vazia t o anulada Cada vez mais esta express o vida interior se tornar mais importante nesta nossa an lise Precisamente porque a oposi o fora dentro a maior oposi o de toda a obra de Pessoa e no Livro que melhor ela se encontra estruturada em termos l gicos E uma oposi o que se opera n o s em termos f sicos vida interior vida exterior mas tamb m em termos gnosiol gicos Explicamos O que a verdade no Livro Em grande medida se toda a vida sonhada todos os significados podem ser manipulados em favor do sonho O ideal de uma certa forma trazido para a Terra e colocado lado a lado com o sonho mas j na esfera do homem e n o na esfera da met
137. uma afirma o positiva da invididualidade de forma radical certo mas que n o anula necessariamente o papel do eu na realidade exterior Esse papel isso sim completamente reformulado na m xima vive a tua vida e n o sejas vivido por ela 215 Na viragem do S culo XIX para o XX esta afirma o tem bvias conota es existencialistas e certo que ela pode ser interpretada at certo ponto nesta perspectiva No entanto julgamos que o autor do Livro vai muito para al m do existencialismo porque ele prop e desde a partida uma solu o para a solid o existencialista Ele n o se limita a abandonar o homem sem Deus sem realidade sem sentido para a vida ele d lhe um poss vel sentido e um poss vel caminho de ac o nesta perspectiva que pensamos n s Fernando Pessoa se torna um fil sofo imensamente original 213 Livro do Desasocego Tomo p g 303 214 Livro do Desasocego Tomo p g 109 215 Mais frente ele dir expressamente Vive a tua vida N o sejas vivido por ela Retomaremos este ponto na discuss o das maneiras de bem sonhar O autor do Livro n o parece propor para si mesmo uma vida baseada na imagina o mas antes uma vida baseada na nega o da vida exterior e por consequ ncia necessariamente diferente mais evolu da Claro que a imagina o n o basta para vivermos mas a imagina o aqui uma tomada de posi o ontol gica ao ser afirmar perante a nica re
138. uma caverna ou para uma aldeia remota onde ningu m o conhe a Ele n o se presta a tornar se exteriormente um exemplo daquilo em que acredita interiormente Isto fala muito sobre a sua convic o e tamb m da forma como ele acredita que a sua filosofia profundamente individualista cada homem ter de desenhar a sua pr pria filosofia e n o seguir os ensinamentos de ningu m Ali s a nica m xima universal que se pode retirar da filosofia do Livro precisamente uma esp cie de conhece te a ti mesmo e recusa te a ti mesmo A interac o com o mundo exterior passa tamb m a ser efectuada indirectamente o empregado de escrit rio que fala com os outros que vai s casas de pasto que percorre as ruas e trata dos seus neg cios a mando do patr o O autor do Livro n o interage com ningu m a n o ser com a sua pr pria prosa po tica Ele apenas se revela no momento da interioriza o do mundo exterior geralmente no fim do dia de trabalho ou ent o num momento de pausa entre a inserc o dos n meros nos livros de contas O conceito de pausa tamb m importante porque se intromete no dinamismo exterior da vida A vida um processo cont nuo e as pausas que ocorrem no Livro do Desassossego aparecem sobretudo como descontinuidade Existem diversos fragmentos precisamente intitulados de intervalo ou intervalo doloroso que apenas podem ser interpretados no sentido de quebras com essa continuidade da vida com a i
139. uma consci ncia dolorosa expressa na tocante alegoria feita em torno do cora o O cora o se pudesse pensar pararia Quer isto dizer que qualquer atitude na vida exterior morta pelo pensamento em torno dela Basta considerar a vontade por detr s da ac o para a ac o se tornar inconsequente Para que o cora o bate Se ele conseguisse pensar isso provavelmente pararia de bater Ou talvez n o deixasse de bater mas de certeza que seria invadido por uma grande ang stia com um questionamento com a d vida sobre a sua ac o Uma ac o que antes lhe era natural reflexa agora tornar se ia pesada demorada dolorosa nesta dimens o que a consci ncia ganha import ncia Ela a forma de nos acordar dos nossos comportamentos reflexos do quotidiano Todas as ac es que n s tomamos e que nunca questionamos porque question las significaria provavelmente a sua morte enquanto ac es O homem do Livro e ser um homem livre de ter de agir no mundo Ou ao agir agir em fun o de uma m scara qualquer sendo que afinal ele n o age porque est plenamente consciente do que significa a palavra agir A palavra ac o t o prevalente no Livro como a palavra sonho Na realidade estas s o as duas pontas do p ndulo que determina a verdadeira filosofia que nos proposta pelo autor Por um lado a perda de insconci ncia a decad ncia leva a que o homem tenha de ser levado
140. 263 Livro do Desasocego Tomo I p g 113 264 Livro do Desasocego Tomo p g 412 N o quer isto dizer que n o exista uma verdade Ele continua a sua busca n o se limitando a negar o exterior em favor de uma atitude puramente niilista A sua busca vira se isso sim para o seu interior Eis quando a inac o substitui directamente a ac o enquanto ac o do interior Desejar ser Major Reformado pode ser entendido enquanto uma ac o do ntimo sonhar se Major Reformado e ao sonhar se assim realizar interiormente uma coisa que exteriormente seria imposs vel de realizar sem a ac o A inac o realiza imediatamente tudo porque recorre ao sonho e o sonho n o depende de nada para existir plenamente A realidade interior sendo composta apenas de sonho realizada imediatamente sem pausas sem processos de presentes sucessivos sem espera e sem futuro tudo nela presente Como se objectiva o sonho J vimos ao longo do nosso estudo que a maneira ptima de objectivar o sonho pegar na realidade exterior e simboliz la interiormente Isso feito atrav s da escrita Sem a escrita n o h uma maneira eficaz de proceder a esta transforma o O nico destino nobre de um escritor que se publica n o ter uma celebridade que mere a Mas o verdadeiro destino nobre o do escritor que n o se publica N o digo que n o escreva porque esse n o escritor Digo do que por natureza escreve e po
141. A sombra da Morte 197 O autor riscou o subt tulo mas h que perguntar em que medida ele n o revelar desde j a inten o clara desta educa o particular Uma educa o para a morte mas uma morte em vida uma morte da ac o no mundo exterior Para quem faz do sonho a vida e da cultura em estufa das suas sensa es uma religi o e uma pol tica para esse O primeiro passo o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo o sentir as coisas m nimas extraordin ria e desmedidamente Este o primeiro passo e o passo simplesmente primeiro n o mais do que isto Saber p r no saborear duma ch vena de ch a vol pia extrema que o homem normal s pode encontrar nas grandes alegrias que v m da ambi o subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente desaparecidas ou ent o nos actos finais e carnais do amor poder encontrar na vis o dum poente ou na contempla o dum detalhe decorativo aquela exaspera o de senti los que geralmente s pode dar n o o que se v ou o que se ouve mas o que se cheira ou se gosta essa proximidade do objecto da sensa o que s as sensa es carnais o tacto o gosto o olfacto esculpem de encontro consci ncia poder tornar a vis o interior o ouvido do sonho todos os sentidos supostos e do suposto recebedores e tang veis como sentidos virados para o externo escolho estas e as an logas suponham se dentre as sensa es que o cultor de sentir se logra educado j
142. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais se deixo de v las entriste o e n o me foram nada a n o ser o s mbolo de toda a vida O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo s nove e meia da manh O cauteleiro coxo que me ma ava inutilmente O velhote redondo e corado do charuto porta da tabacaria O dono p lido da tabacaria O que feito de todos eles que porque os vi e os tornei a ver foram parte da minha vida Amanh tamb m eu me sumirei da Rua da Prata da Rua dos Douradores da Rua dos Fanqueiros Amanh tamb m eu a alma que sente e pensa o universo que sou para mim sim amanh eu tamb m serei o que deixou de passar nestas ruas o que outros vagamente evocar o com um o que ser dele E tudo quanto fa o tudo quanto sinto tudo quanto vivo n o ser mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer Vemos a refer ncia absoluta ao s mbolo de toda a vida Torna se claro que todos estes personagens exterior s o de certo modo congelados e tornados em s mbolos de toda a realidade exterior que se desenrola quase maneira de um filme para um nico espectador At a pr pria cidade se verga a esta necessidade Amo pelas tardes demoradas de ver o o sossego da cidade baixa e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bul cio A Rua do Arsenal a Rua da Alf ndega o prolongamento da
143. Desasocego Tomo I p g 236 262 Livro do Desasocego Tomo I p g 104 Conclus o O Major Reformado Como podemos concluir este estudo sen o com uma s ntese absurda e simples A nossa conclus o a do t tulo que escolhemos O Major Reformado O maior desejo do autor do Livro foi sempre n o ter de existir para conseguir viver ou seja viver uma esp cie de antecipa o existencial imposs vel projectando se num futuro que n o teria de ser alcan ado por sucessivos presentes A escrita e sobretudo a prosa desempenham um papel essencial neste objectivo incr vel como vimos e veremos nesta conclus o Ser major reformado parece me uma coisa ideal pena n o se poder ter sido eternamente apenas major reformado 2 3 A ideia de conseguir ser alguma coisa sem que seja poss vel s la na realidade mas ainda assim conseguir imaginar ser essa coisa eis a verdadeira revela o do Livro do Desassossego e mais amplamente de toda a obra Pessoana Poder amos resumir a filosofia do Livro com a express o ser imaginar se esse est imaginari Para substituir a vida pela imagina o o autor do Livro despe se de tudo o que material e imanente O seu desejo uma vida sem ambi es que possa ser vivida plenamente de modo est tico em que ele pr prio uma projec o fraca e ambivalente de outra coisa qualquer imposs vel que algu m percepcione quem ele realmente e neste acto simples ele dilu
144. Ele nunca v apenas a realidade mas o seu sonho da realidade ou a maneira como ele a imagina Esta atitude sonhadora perante a realidade permite lhe afastar se dela para o seu mundo interior mas ao mesmo tempo permite que ele se apodere dela que a manipule como se fosse realmente sua para manipular No Livro haver sempre a insist ncia na vis o nobre do mundo de um homem que n o se limita a sobreviver a ser vivido pela vida Essa vis o nobre insiste sempre que dever amos ir para al m de uma exist ncia cognitiva simples como aquela que vivida pelos animais Esta exist ncia caracterizada pela inconsci ncia daqueles que a vivem ignorando que vivem realmente em oposi o aos que t m plena consci ncia disso como o autor do Livro O autor do Livro persegue uma renega o de uma vida cheia de exterioridade cheia de inconsci ncia em favor de uma vida imaginada interior plenamente consciente Sinal forte da repulsa insconsci ncia est num dos fragmentos mais conhecidos em que o autor do Livro desce a rua e repara num homem sua frente Descendo hoje a Rua Nova do Almada reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim Eram as costas vulgares de um homem qualquer o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional Levava uma pasta velha debaixo do bra o esquerdo e punha no ch o no ritmo de andando um guarda chuva enrolado que trazia pela curva na m o direita
145. Esta poesia t o bela e simultaneamente t o perigosa representa tamb m o pice da formula o filos fica Pessoana enquanto teoriza o do real face ao ideal Tentaremos ao longo deste livro explicar melhor o que pretendemos dizer com esta afirma o mas suficiente avisar agora o leitor para a import ncia desta express o Pessoa n o teoriza um homem moderno abandonado num mundo absurdo ele vai muito mais longe do que isso e nisto reside a sua enorme originalidade filos fica O nosso grande poeta Mediterr nico salva o homem perdido no mundo absurdo no qual tinha sido deixado sem apelo nem agravo pelo existencialismo ate sta do norte da Europa F lo de um modo absolutamente genial e nunca at hoje plenamente revelado atrav s da constru o minunciosa de um intrincado sistema filos fico assente precisamente na dispers o dos seus elementos e na nega o da import ncia da realidade imanente Necessitamos apenas de recuar para o compreendermos totalmente o que pretendemos fazer de seguida n o s neste livro mas no seguinte e final onde fixaremos esta filosofia 5 in Carta a Oph lia Queiroz datada de 29 11 1920 in Cartaa Oph lia Queiroz datada de 29 9 1929 7 Cf Oct vio Paz Fernando Pessoa O Desconhecido de si mesmo Ed Vega 1988 PARTEI A nica realidade para mim s o as minhas sensa es Eu sou uma sensa o minha Portanto nem da minha pr pria exist ncia estou certo Posso est lo apenas da
146. NUNO HIP LITO Uma vida sonhada Uma an lise do Livro do Desassossego O 2011 2012 Nuno Hip lito 0 pensamento enterrado vivo no mundo e ali sufoca Fernando Pessoa Introdu o Em que fase est o projecto do sistema filos fico de Fernando Pessoa quando viramos a nossa aten o para o Livro do Desassossego por muitos considerada a sua obra prima e que n s consideramos a sua obra terminal N o poder o Livro significar nada menos do que a pedra de toque desse mesmo sistema e o centro vital de toda a sua obra enquanto elemento intencionalmente modificador da sociedade em seu redor Se para a maioria dos Pessoanos nem haver a possibilidade de esquematizar a obra de Pessoa em nenhuma esp cie de t bua resumo afinal n o a qualidade definidora de Pessoa o pr prio facto de ser essencialmente enquanto produto moderno um produto esfacelado da sua pr pria dispers o muito menos se poder falar em sistema Mas a nossa hip tese iniciada no primeiro livro que dedic mos a um heter nimo que este sistema de facto existe e sempre esteve na base de todos os esfor os po ticos de Pessoa Pensamos ter encontrado uma unidade em toda esta dispers o Fernando Pessoa dispersou se para fugir da dor em si pr prio mas afirmada que foi essa dispers o o caminho mais til para reencaminhar esse destino negro foi o de construir por cima dessas funda es proibidas um total e revolucion rio m todo Tent mos propositadamen
147. Porqu Embora o texto em causa seja vago na minha opini o a coloca o do indiv duo enquanto figura menor perante a realidade exterior marca ainda mais a necessidade de se pensar a pr pria realidade enquanto realidade interior A pequenez do homem que observa a vis o esmagadora da cidade e do rio apenas nos fala potencial dimens o esmagadora de uma realidade interior ainda por construir realidade essa que ser a verdadeira para ele que observa O homem pequeno e sem poder fora de si pr prio s pode ganhar esse poder dentro de si pr prio construindo o seu pr prio mundo A atitude de observador tamb m ela muito significativa O observador simbolizado por um homem que olha de um miradouro n o interv m apenas observa de longe Lembre se como iniciamos este livro caracterizando o autor do Livro enquanto algu m que reparava extradordinaramente para as pessoas 85 e como essa caracteriza o foi o in cio de o sabermos realmente afastado da realidade em que ele reparava Com o passar do tempo ele deixou de considerar a realidade observ vel enquanto coisa com que se pudesse ligar ou em rela o qual pudesse mesmo achar uma certa continuidade relativamente aos seus pr prios sentimentos interiores Agora h uma separa o completa entre ele o int mo e o que ele observa o exterior S esta completa separa o permitiu que ele se colocasse numa posi o de completo afastamento em rela o ao que v ele
148. a Porqu Porque ela surgiu poeticamente entendendo a po tica enquanto poesis composi o directa de algo atrav s de um processo elaborado e intrincado A forma como ele estrutura a sua filosofia escrevendo prosa po tica A sua prosa n o uma forma directa de ver o mundo mas uma forma de ver o mundo interior e exterior atrav s das suas emo es O que ele chama de sensa es s o na verdade impress es directas da realidade filtradas pela emo o individual e n o s pela exist ncia dos sentidos humanos A compreens o do mundo ent o num primeiro n vel emocional intelectualmente comprometida visto que nada tem significado se n o colocado na perspectiva da sua import ncia para o sujeito Ver algo ou ouvir algo n o tem qualquer significado se n o conseguirmos entender o que esse ver algo ou esse ouvir algo para 26 Livro do Desasocego Tomo I p g 145 n s pr prios para a trag dia de n s pr prios Ser curioso que esta filosofia que chamamos de n o existencialista embora horrivelmente solit ria n o filosofia sem a no o de drama e o drama n o surge sem contraposi o do eu com os outros Na verdade a filosofia do Livro acabar por n o ser solit ria ao ponto que a possamos considerar assim ela n o sequer filosofia sem a necess ria contraposi o do ind viduo com os outros em seu redor Vemos ent o que a filosofia do Livro uma filosofia que como o seu autor n
149. a dado que apenas n s existimos para n s pr prios e que nunca poderemos entender ou possuir completamente outro que n s n s pr prios De que outro modo se construiria uma teoria de Tudo sen o volta do indiv duo Esta parece ser apenas uma pergunta b sica sem grande perigo Dificilmente ela pode ser ignorada sobretudo se come armos a ler o Livro tendo por base este princ pio A grande import ncia das coisas passa a ser m nima Deixa de ser necess rio viajar experienciar A nica coisa que necess ria o sonho acoplado a um conjunto de sensa es de dimens o relativamente m dia Um homem que tenha conhecido algumas pessoas que tenha viajado pouco mas ainda a alguns destinos que tenha trabalhado alguma coisa que tenha conversado interagido poder cessar terminalmente de procurar mais experi ncias sensoriais e tornar se 19 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 68 um convertido ao sonho de um mundo interior s seu Este o grande projecto do Livro O estado de Desassossego penso um estado sobretudo de inquieta o perante esta possibilidade mas tamb m um estado de ext se perante essa mesma possibilidade Se porventura se colocarem a hip tese de tudo isto ser uma loucura algo rid culo sem fundamento ou realidade pr tica pe o vos que apenas considerem que o homem n o tem qualquer acesso verdade pelo que o mundo que n s consideramo ser real o apenas por ser o nico mundo que nos
150. a e a minha m goa f til como um carro sem rodas jaz beira da realidade entre os estercos do abandono Choro de tudo entre perda do rega o a morte da m o que me davam os bra os que n o soube como me cingissem o ombro que nunca poderia ter E o dia que raia definitivamente a m goa que raia em mim como a verdade crua do dia o que sonhei o que pensei o que se esqueceu em mim tudo isso numa am lgama de sombras de fic es e de remorsos se mistura no rastro em que v o os mundos e cai entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de uvas comido esquina pelos garotos que o roubaram O ru do do dia humano aumenta de repente como um som de sineta de chamada Estala adentro da casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem Oi o chinelos num corredor absurdo que conduz at meu cora o E num gesto brusco como quem enfim se matasse arrojo de sobre o corpo duro as roupas profundasda cama que me abriga Despertei O som da chuva esbate se para mais alto no exterior indefinido Sinto me mais feliz Cumpri uma coisa que ignoro Ergo me vou janela abro as portas com uma decis o de muita coragem Luze um dia de chuva clara que me afoga os olhos em luz ba a Abro as pr prias janelas de vidro O ar fresco humedece me a pele quente Chove sim mas ainda que seja o mesmo afinal t o menos Quero refrescar me viver e inclino o pesco o vida estendendo o pela janela fora como canga abstracta de Deus
151. a livre de ser temporal ou eterna imagem absoluta ideia de uma alma que fosse exterior Volvo lentos os passos mais r pidos do que julgo ao port o para onde subirei de novo para casa Mas n o entro hesito sigo para diante A Pra a da Figueira bocejando venderes de v rias cores cobre me esfreguesando se o horizonte de ambulante Avan o lentamente morto e a minha vis o j n o minha j n o nada s a do animal humano que herdou sem querer a cultura grega a ordem romana a moral crist e todas as mais ilus es que formam a civiliza o em que sinto Onde estar o os vivos 1 O acordar de mim a passagem do estado de observador para o estado de observado reentrar dolorosamente na vida Perde se a vis o clara das coisas da pr pria realidade pois a realidade distinta da vida Tudo o que n o pode ser simbolizado transportado enquanto imagem absoluta a vida e j n o s a realidade a intromiss o dos outros que faz a diferencia o entre realidade e vida nada mais do que isso Mas ao quebrar o estado contemplativo o facto que o pr prio autor do Livro se transforma em outro ele poder estar a partir desse momento estar a ser tamb m ele observado de forma pura A transi o entre os dois estados muito dolorosa e quase se sente um esp rito a matealizar se para fora da sua exist ncia enquanto mero pensamento para a assump o das pesadas roupas da exist
152. a realidade exterior a cidade e os pensamentos interiores os textos em si mesmos Nesta fase podemos ver claramente que h uma continuidade forte mas que simultaneamente uma descontinuidade Porqu Porque o exterior n o conduz a uma reac o interior mas antes em si mesmo uma produ o interior h como que um ciclo que se completa quando entendemos que a realidade citadina acaba por ser ela pr pria uma produ o intelectual de quem a observa e a vive A cidade n o existe enquanto tal mas apenas enquanto experi ncia sensorial do observador enquanto sua constru o intelectual Nesta medida todas as observa es e pensamentos que adv m da observa o da cidade pertencem mesma esfera de influ ncia e acaba por n o existir uma verdadeira distin o entre fora e dentro ou entre a realidade dos outros e a realidade interior A p gs 318 19 da edi o cr tica do Livro do Desassossego um texto logo a seguir ao que cit mos em cima bem vis vel esta continuidade descontinuada O autor do Livro fala do Outono na cidade e de seguida numa abrupta quebra liga a passagem o Outono com a passagem dos pr prios homens pelo mundo Sim passaremos todos passaremos tudo luz do que dissemos esta quebra n o deve ser vista enquanto descontinuidade entre a descri o das caracter sticas do Outono na cidade e a pr pria realidade individual mas sim na forma como a cidade se transforma e
153. a convers o de uma sensa o numa outra sensa o Dentro de uma an lise filos fica n o podemos sen o entender a validade deste princ pio enquanto forma de evitar os problemas aparentemente insol veis apresentados pelas correntes l gicas e anal ticas pergunta o que pode ser dito Pessoa responde com tudo o que pode ser sentido Isto porque falar do que se sente apenas sentir novamente ou melhor dar essa sensa o para que outro sinta como n s sentimos originalmente poss vel perceber que apesar de existir um processo operativo nesta comunica o o que dito apenas aquilo que seria sentido originalmente por quem recebe a comunica o que feita Ou seja a sensa o original deve ser tendencialmente igual sensa o que recebida atrav s da comunica o mais f cil de perceber este princ pio se olharmos para a arte enquanto meio de comunica o geral que transmite e evoca sensa es e sentimentos Um quadro pode evocar uma sensa o geral que ou n o originalmente tentada pelo artista que o pintou O que se prop e agora mais focado e menos aleat rio O que proposto que o artista consegue atrav s do sensacionismo precisar exactamente o que o receptor da comunica o art stica vai receber e ter a certeza que isso igual ao que ele pr prio sentiu originalmente A consist ncia deste processo acha apenas a sua limita o no talento do artista em comunicar o que sen
154. a de an lise superior trata se de an lise cont nua feita j por uma pr literatura At que finalmente j sem ac o j s s mbolo ela se pode transformar numa outra coisa com forma liter ria de sonho com um relevo pr prio e distinto Poderiamos resumir todos estes passos num s o pensamento mata a ac o e e escrita d forma a essa morte Porque n o acrediteis que eu escrevo para publicar nem para escrever nem para fazer arte mesmo Escrevo porque esse o fim o requinte supremo o requinte temperamentalmente il gico da minha cultura de estados de alma Se pego numa sensa o minha e a desfio at poder com ela tecer lhe a realidade interior a que eu chamo ou A Floresta do Alheamento ou a Viagem Nunca Feita acreditai que o fa o n o para que a prosa soe l cida e tr mula ou mesmo para que eu goze com a prosa ainda que mais isso quero mais esse requinte final ajunto como um cair belo de pano sobre os meus cen rios sonhados mas para que d completa exterioridade ao que interior para que assim realize o irrealiz vel conjugue o contradit rio e tornando o sonho exterior lhe d o seu m ximo poder de puro sonho estagnador de vida que sou burilador de inexactid es pajem doente da minha alma Rainha lendo lhe ao crep sculo n o os poemas que est o no livro aberto sobre os meus joelhos da minha Vida mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio e ela fingindo que ouve enquanto a T
155. a em favor do sonho Esta uma vida de certa forma ir nica como ele pr prio nos acaba por indicar A trag dia principal da minha vida como todas as trag dias uma ironia do Destino Repugno a vida real como uma condena o repugno o sonho como uma liberta o ign bil Mas vivo o mais s rdido e o mais quotidiano da vida real e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho Sou como um escravo que se embebeda sesta duas mis rias em um corpo s 124 curioso que para alcan ar uma vida em que ele n o existe ele tenha de existir da maneira mais s rdida poss vel S rdida porque mundana comum a vida do empregado de escrit rio que n o tem ambi es que frequenta as casas de pasto bebendo a sua garrafa de vinho habitual percorrendo sempre as mesmas ruas deitando se sempre na mesma cama no mesmo quarto pobre sem amigos sem conhecimentos esperando n o se sabe bem o qu A liberdade que ele pretende atingir liberdade dessa condena o vida comum e s rdida s poss vel se ele continuar a viver do modo mais simples poss vel a mesma vida de que se quer libertar O paradoxo imenso ao ponto de se tornar ir nico Por outro lado o sonho visto enquanto escape tem de ser vivido da maneira mais intensa e constante de modo a substituir se vida que o desapontou O sonho belo mas pode tornar se sujo enquanto ferramenta de liberta o da vida H que entender que pelo menos nas fases ini
156. a indigna o para os fortes n o me resigno porque a resigna o para os nobres n o me calo porque o sil ncio para os grandes E eu n o sou forte nem nobre nem grande Sofro e sonho Queixo me porque sou fraco e porque sou artista entretenho me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor minha ideia de os achar belos S lamento o n o ser crian a para que pudesse crer nos meus sonhos o n o ser doido para que pudesse afastar da alma de todos os que me cercam Tomar o sonho por real viver demasiado os sonhos deu me este espinho rosa falsa de minha sonhada vida que nem os sonhos me agradam porque lhes acho defeitos Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me oculto o rumor da vida alheia ao meu olh la do outro lado Ditosos os fazedores de sistemas pessimistas N o s se amparam de ter feito qualquer coisa como tamb m se alegram do explicado e se incluem na dor universal Eu n o me queixo pelo mundo N o protesto em nome do universo N o sou pessimista Sofro e queixo me mas n o sei se o que h de mal o sofrimento nem sei se humano sofrer Que me importa saber se isso certo ou n o Eu sofro n o sei se merecidamente Cor a perseguida Eu n o sou pessimista sou triste Mais provas n o s o necess rias para afirmar que a escrita do Livro uma escrita solit ria individualista Ali s pensamos mesmo que ser individual a
157. a o corpo realmente mo do as pernas cansadas o primeiro grau est assegurado No caso do sensual dever ele sem receber a imagem mais que mentalmente ter uma ejacula o quando um momento desses chegar no romance Depois procurar trazer tudo isso para mental A ejacula o no caso do sensual que escolho para exemplo porque o mais violento e frisante dever ser sentida sem se ter dado O cansa o ser muito maior mas o prazer completamente mais intenso No terceiro grau passa toda a sensa o a ser mental Aumenta o prazer e aumenta o cansa o mas o corpo j nada sente e em vez dos membros lassos a intelig ncia a vida e a emo o que ficam bambos e frouxos Chegando aqui tempo de passar para o grau supremo do sonho O segundo grau o construir romances para si pr prio S deve tentar se isto quando est perfeitamente mentalizado o sonho como antes disse Se n o o esfor o inicial em criar os romances perturbar a perfeita mentaliza o do gozo Terceiro grau J educada a imagina o basta querer e ela se encarregar de construir os sonhos por si J aqui o cansa o quase nulo mesmo mental H uma dissolu o absoluta da personalidade Somos mera cinza dotada de alma sem forma nem mesmo a da gua que a da vasilha que a cont m Bem aprontada esta dramas podem aparecer em n s verso a verso desenrolando se alheios e perfeitos Talvez j n o haja a for a de os esc
158. a sozinho Alguns fragmentos finais servem para ilustrar isto mesmo O dia foi pesado de trabalho absurdo no escrit rio quase deserto Dois empregados est o doentes e os outros n o est o aqui Estou s salvo o mo o long nquo Tenho saudades da hip tese de poder ter um dia saudades e ainda assim absurdas 0 Tudo se me tornou insuport vel excepto a vida O escrit rio a casa as ruas o contr rio at se o tivesse me sobrebasta e oprime s o conjunto me alivia Sim qualquer coisa de tudo isto bastante para me consolar Um raio de sol que entre eternamente no escrit rio morto um preg o atirado que sobe r pido at janela do meu quarto a exist ncia de gente o haver clima e mudan a de tempo a espantosa objectividade do mundo 101 99 Livro do Desasocego Tomo I p g 349 100 Livro do Desasocego Tomo I p g 279 101 Livro do Desasocego Tomo I p g 363 O dia ba o e mole escalda humidamente Sozinho no escrit rio passo em revista a minha vida e o que vejo nela como o dia que me oprime e me aflige Vejo me crian a contente de nada adolescente aspirando a tudo viril sem alegria nem aspira o E tudo isto se passou na moleza e no embaciado como o dia que mo faz ver ou lembrar 02 Agora mesmo que estou inerte no escrit rio e foram todos almo ar salvo eu fito atrav s da janela ba a o velho oscilante que percorre lentamente o passeio do outro lado da rua N o
159. acerca do conceito de homem superior para depois falar de si pr prio Entre mim O que distingue o homem superior do homem vulgar O crit rio essencial parece ser uma diferen a de qualidade que tem a ver com a presen a do pensamento abstracto e da emo o desinteressada curiosa esta an lise porque se pensaria que todos os homens s o capazes de elaborar pensamentos abstractos O autor do Livro pensa de maneira distinta Para ele o pensamento abstracto tem a ver sobretudo com a consci ncia da pr pria vida e da forma como n s a vivemos ou somos vividos por ela por isso um pensamento que se abstra da realidade imanente que foge como se fosse uma esp cie de experi ncia extra corporal pr pria exist ncia quotidiana para a ver de cima de uma posi o alheada e long nqua A capacidade de pensar de maneira abstracta ent o a capacidade de nos abstrairmos de n s pr prios para a perspectiva alta da nossa condi o no mundo ver nos a n s mesmos de forma clara e desimpedida de sabermos quem somos na vida e que papel desempenhamos nela f cil de ver como este homem superior estranho at pr pria actualidade Vejamos num aparte um outro texto que n o podemos deixar de citar um texto iminentemente pol tico O meu procedimento o d um pensador n o o d um patriota Nenhum homem de pensamento pode proceder como patriota em Portugal contempor neo O destino da
160. ada um sua medida se desafiavam com obst culos de dificuldade semelhante No entanto de entre todos eles ser no Livro do Desassossego onde finalmente aparece uma teoria filos fica estruturada que permite alcan ar o final desta viagem proposta Ainda cedo para abordarmos completamente este ponto pois teremos de contribuir para ele com diversos pontos maneira de esclarecimento mas podemos desde j dizer que esta teoria muito simples e estruturada em poucos pilares essencialmente tr s t dio inac o e sonho Por agora devemos concentrarmo nos ainda nas descri es do Livro Em que medida que elas crescem de vigor e que significado t m Do terra o deste caf olho tremulamente para a vida Pouco vejo dela a espalhada nesta sua concentra o neste largo n tido e meu Um marasmo como um come o de bebedeira elucida me a alma de coisas Decorre fora de mim nos passos dos que passam e na f ria regulada de movimentos a vida evidente e un nime Nesta hora dos sentidos estagnarem me e tudo me parecer outra coisa as minhas sensa es um erro confuso e l cido abro asas mas n o me movo como um condor suposto Homem de ideais que sou quem sabe se a minha maior aspira o n o realmente n o passar de ocupar este lugar a esta mesa deste caf Tudo v o como mexer em cinzas vago como o momento em que ainda n o antemanh E a luz bate t o serenamente e perfeitamente nas coisas doura as t o de r
161. ado perfeito n o haveria outra arte que n o a prosa Muito pouco ainda se sabe do projecto filos fico de Fernando Pessoa A par da astrologia certamente a rea menos explorada pelos estudiosos da sua obra e muito h a acrescentar quanto a este tema Na parte que nos cabe diremos que o Livro do Desassossego o centro nevr lgico do sistema filos fico Pessoano Todos os sistemas filos ficos t m um m todo O m todo do sistema filos fico Pessoano simples e chama se sonho o sonho que permite todas as opera es filos ficas em Pessoa desde o conhecimento das coisas ao pr prio conhecimento do eu tamb m o sonho o elemento unificador de todas as dimens es fragmentadas da sua obra pois este elemento de imagina o aquele que surge como comum a todas as dimens es proto heteron micas semi heteron micas heteron micas pseud nimas e ort nimas da sua escrita muito importante perceber a import ncia do que dissemos no par grafo anterior Se o sonho est no centro de toda a filosofia Pessoana a nica linguagem filos fica poss vel teria de ser uma linguagem po tica O uso da linguagem po tica por parte do autor do Livro permite lhe descrever em pormenor um mundo que existe apenas na sua imagina o e que seria inacess vel linguagem comum do quotidiano exterior A linguagem po tica por assim dizer a linguagem do inef vel daquilo que n o pode ser dito ou conhecido normalmente Cai
162. af sica Trata se de uma estranha forma de materializar o ideal de pegar nas formas ideiais plat nicas e as esticar e sacudir at que percam consist ncia Os homens vivem normalmente na realidade e acedem ao sonho como forma de manipular a realidade no Livro o sonho a realidade Isto significa que a manipula o da realidade pode desde este momento ser operada dentro da pr pria realidade A vida sonhada uma vida em que o pr prio sonhador constr i a sua verdade a sua realidade Por isso n o importa que a vida exterior seja anulada mesmo necess rio que ocorra esta anula o A esta filosofia poderemos chamar n o existencialismo porque h uma recusa completa da exist ncia mas pode haver uma complementar aceita o de princ pios ideai como a moral e mesmo Deus Devemos questionar por m qual a aplica o pr tica de uma tal filosofia 2 Livro do Desasocego Tomo I p g 323 Ser que o autor do Livro n o apenas real enquanto figura imaginada De que forma que esta filosofia poder encontrar uma aplica o na vida real enquanto praxis de um novo conceito de um novo sistema completo Temos de compreender que esta n o a primeira vez que algu m teoriza o abandono da vida O exemplo mais amplo da ren ncia da vida ser eventualmente o de Buda A ren ncia desempenha um papel fundamental no budismo porque simboliza a evolu o de Buda de uma exist ncia material para uma exist ncia espiritual sendo
163. afastamento s poss vel nesta condi o absoluta assim que ele v as pessoas a passar enquadradas numa dimens o superior Conhec las entrar no seu microcosmos de exist ncia V las do alto de prop sito de uma sacada d ao observador a vantagem de altura e n o s de os poder compreender melhor enquanto indiv duos e enquanto mole humana E ele chega conclus o de que todos s o iguais N doas de movimento medida que ele olha que os percepciona ele abandona o racioc nio curiosamente o sonho n o usa a raz o na mesma medida em que a an lise do mundo que leva ao sonho usa por isso que quando interrompido pelo mo o do escrit rio o autor do Livro diz Sinto que o poderia matar por me interromper o que eu n o estava pensando Ele ao observar ao reparar n o est a pensar em nada 14 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 175 148 Livro do Desasocego Tomo I p g 175 6 Recuperamos agora a express o com que abrimos o n mero I deste livro e que servia para caracterizar o autor do Livro Reparava extradordinariamente para as pessoas Esta caracter stica far agora muito mais sentido do que fazia no in cio da nossa an lise J o conhecemos um pouco melhor e sabemos da import ncia que para ele ganha a no o de vazio interior perante a inunda o das sensa es exteriores O ser esvaziado de si pr prio pode ser um contemplador puro e tomar semelhan a com toda a realidade exterior
164. agmento serve nos para refor ar a oposi o concreta entre viver a vida e ser vivido por ela E como se pode viver a vida O autor do Livro responde nos simplesmente s o teu pr prio ser S o teu pr prio ser Novamente se v esta quase obsess o ontol gica em redor do ser da express o do ser no mundo O fen meno humano um fen meno expressivo alguns podem mesmo cham lo eufem sticamente de fenomenol gico Isto quer dizer que o ser que o nosso ser tem de se expressar no mundo para existir n s n o podemos ser sem sermos para o mundo sem sermos percepcionados enquanto seres nem que seja por n s pr prios N o h exist ncia sem express o do ser embora intervalarmente essa express o possa ser passiva O que o autor do Livro diz em rela o a si pr prio que essa express o do ser pode ser controlada ele n o tem necessariamente de existir enquanto express o de si pr prio nos mesmos moldes de todas as pessoas que viveram antes dele Normalmente aceite que n s existimos no mundo Talvez este seja um princ pio t o fundador que ele pr prio tenha escapado an lise da filosofia No entanto por aqui que o ataque realidade operado pelo Livro do Desassossego se inicia Tudo invertido O ser para o mundo substitu do pelo ser para si pr prio O autor do Livro prop e se n o existir para o mundo ou no mundo mas antes existir para si pr prio no mundo Ou seja
165. al como os outros heter nimos o foram leva ao limite a possibilidade de n o ser na medida que o n o ser o mais long nquo que se pode ir na imagina o de uma vida distante daquela vida que levamos no presente A obra de Pessoa uma cont nua fuga do ser para o n o ser e apenas nesta dimens o se deve entender a g nese poss vel do querer ser outro Mas entendendo j um pouco as raz es pode tr s da op o pelo mundo do sonho retomemos as regras que o definem lendo o fragmento seguinte ainda presumivelmente de 1913 Maneira de bem sonhar 217 Cf Supra p g 130 Cuidar s primeiro em nada respeitar em nada crer em nada Guardar s da tua atitude ante o que n o respeites a vontade de respeitar alguma coisa do teu desgosto ante o que n o ames o desejo doloroso de amar algu m do teu desprezo pela vida guardar s a ideia de que deve ser bom viv la e am la E assim ter s constru do os alicerces para o edif cio dos teus sonhos Repara bem que a obra que te prop es fazer no mais alto de tudo Sonhar encontrarmo nos Vais ser o Colombo da tua alma Vais buscar as suas paisagens Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e n o possam errar os teus instrumentos A arte de sonhar dif cil porque uma arte de passividade onde o que de esfor o na concentra o da aus ncia de esfor o A arte de dormir se a houvesse deveria ser de qualquer forma parecida com esta Repara bem a ar
166. alidade que conhece que a nega E a pergunta simples e original que colocada existe uma forma de vivermos sem vivermos no mundo exterior Viver no pensamento tem algumas semelhan as com um idealismo Certamente que uma afronta ao pr prio materialismo de Alberto Caeiro que apenas acreditava naquilo que via e que pensava com os olhos N o h ningu m que pense mais dentro da obra de Fernando Pessoa do que o autor do Livro na verdadeira acep o de que ele se identificado com a sua pr pria produ o liter ria Mas podemos facilmente ver que a teoria filos fica presente aqui n o um idealismo puro ele continua a acreditar na consist ncia do mundo sendo que apenas esvazia essa realidade dos seus significados intr nsecos Poder se iia mesmo falar at de um materialismo ideal porque h a transposi o do real para o ideal do exterior para o interior Os objectos s o transpostos codificados virtualizados Nessa acep o a teoria filos fica do Livro representativa da aliena o sentida pelo homem moderno por ser uma teoria que insiste na solid o e reconhece pouco valor s liga es sociais e humanas Mas n o defende absolutamente que apenas vivamos no pensamento alienados tamb m do mundo material Imaginar o acto de transpor o exterior para o interior Ac o passa a inac o e pensamento passa a sonho Quando o homem sonha realiza uma interpreta o do seu mundo pessoal
167. amentos letreiros empregos homens sociedade tudo a entender se e a seguir e a abrir caminhos Reparo no homem directamente e vejo que t o inconsciente como um c o ou um gato fala por uma inconsci ncia de outra ordem organiza se em sociedade por uma inconsci ncia de outra ordem absolutamente inferior que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social E ent o tanto ou mais que da exist ncia de organismos tanto ou mais que da exist ncia de leis f sicas r gidas e intelectuais se me revela por uma luz evidente a intelig ncia que cria e impregna o mundo Bate me ent o sempre que assim sinto a velha frase de n o sei que escol stico Deus est anima brutorum Deus a alma dos brutos Assim entendeu o autor da frase que maravilhosa explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores em que se n o divisa intelig ncia ou mais que um esbo o dela Mas todos somos animais inferiores falar e pensar s o apenas novos instintos menos seguros que os outros porque novos E a frase do escol stico t o justa em sua beleza alarga se e digo Deus a alma de tudo 166 Estamos perante um sonhador que abomina cada vez mais a necessidade de existir um mundo exterior esta a sensa o quando vamos sensivelmente a meio do que s o as descri es da cidade presente no Livro do Desassossego Este abominar vem atrav s da tal estranheza que vimos refor ando No segmento que reproduzimos em cima v
168. anela da sua casa Limito me claro aos meus conhecimentos N o posso criar um matem tico Mas contento me com o que tenho que d para combina es infinitas e sonhos sem n mero Quem sabe de resto se for a de sonhar eu n o conseguirei ainda mais Mas n o vale a pena Basto me assim Pulveriza o da personalidade N o sei quais s o as minhas ideias nem os meus sentimentos nem o meu caracter Se sinto uma coisa vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim Substitui os meus sonhos a mim pr prio Cada pessoa apenas o seu sonho de si pr prio Eu nem isso sou Nunca ler um livro at ao fim nem l lo a seguir e sem saltar N o soube nunca o que sentia Quando me falavam de tal ou tal emo o e a descreviam sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma mas depois pensando duvidei sempre O que me sinto ser nunca sei se o sou realmente ou se julgo que o sou apenas Sou uma personagem de dramas meus O esfor o in til mas entret m O racioc nio est ril mas engra ado Amar ma ador mas talvez prefer vel a n o amar O sonho por m substitui tudo Nele pode haver toda a no o do esfor o sem o esfor o real Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido Posso raciocinar sem que tenha em vista chegar a uma verdade a que nunca chegue sem querer resolver um problema que veja que nunca resolvo sem
169. anidade sendo uma mera ideia biol gica e n o significando mais que a esp cie animal humana n o era mais digna de adora o do que qualquer outra esp cie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivesc ncia dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabe as de animais Assim n o sabendo crer em Deus e n o podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela dist ncia de tudo a que comummente se chama a Decad ncia in Livro do Desasocego Tomo I p gs 231 33 130 H um fragmento curios ssimo em que o autor do Livro escreve Choro sobre as minhas p ginas imperfeitas mas os vindouros se as lerem sentir o mais com o meu choro do que sentiriam com a perfei o se eu a conseguisse que me privaria de chorar e portanto at de escrever O perfeito n o se manifesta O santo chora e humano Deus est calado Por isso podemos amar o santo mas n o podemos amar a Deus 131 Livro do Desasocego Tomo p gs 369 pirata logo que procurando o bem o consegue prender Napole o fazendo seu testamento em Santa Helena deixa um legado a um fac nora que tentara assinar a Wellington O grandezas iguais s da alma da vizinha vesga O grandes homens da cozinheira de outro mundo Quantos C sares fui e sonho todavia ser 32 A sonol ncia est claramente ligada ao t dio uma das outras palavras chave do Li
170. apas e folhetos tur sticos com a intelig ncia das crian as perante a estupidez dos adultos Decidir n o viajar e mais do que isso coleccionar e fixar os destinos e as rotas sem nunca as fazer s imaginando as interiormente visto como um acto extraordin rio de intelig ncia e lucidez Na realidade s visto desta forma porque incorpora o mais alto grau da nega o da viagem e por isso mesmo da ac o no mundo exterior Podemos suspeitar que o garoto de escrit rio n o suspeitasse do verdadeiro significado da sua decis o mas ineg vel que ela existiu e teve efeitos pr ticos na sua imagina o Podemos desde logo compreender a sua ac o por interven o do texto precedente onde se diz Tudo para n s est em nosso conceito do mundo Trata se de uma afirma o de extraordin rio valor filos fico pois o mesmo vale que dizer que somos n s que idealizamos o mundo atrav s da sua percep o directa pela imagina o e n o o contr rio O mundo n o existe para que n s o percepcionemos antes n s somos levados a contrui lo dentro de n s pela imagina o ou intelecto Se o homem que constr i o seu mundo n o h raz o para tentar activamente mud lo no exterior Este o pilar onde repousa toda a teori da inac o do Livro do Desassossego Tudo absurdo mas o sonho do mundo menos absurdo do que o mundo propriamente dito pois o nosso entendimento puro do mundo H ent o um grande para
171. aproxima da simplicidade da vida no campo junto da natureza Para Caeiro em certo ponto pelo menos a identifica o entre o n o pensar e a natureza t o intenso que ele pr prio deseja ser como a natureza apenas mais uma rvore ou uma folha 8 O seu objectivo n o poderia ser mais do que apenas sobreviver afastando se decisivamente da ilus o das cidades onde os homens fingem ser mais do que apenas animais 177 Livro do Desasocego Tomo p g 316 178 Ver o poema IV do Guardador de Rebanhos Para o autor do Livro n o faria sentido viver no campo sobretudo devido ao distanciamento desta constru o intelectual que recusa a necessidade do homem se afastar da natureza Pensar para ele algo de essencialmente nobre e essencial ao seu pr prio processo de sobreviv ncia na cidade que n o uma sobreviv ncia em si mesma As suas observa es ao longo do Livro do Desassossego nunca s o apenas observa es mas maneiras de olhar a cidade enquanto a constru o intelectual dos homens em sociedade homens esses que j est o definitivamente afastados da sobreviv ncia primitiva na natureza A cidade serve metaforicamente para afastar estes homens do seu passado e como esp cie de muro ou filtro para as duas pocas da civiliza o a poca da inconsci ncia e a poca da consci ncia de si mesmos Inicialmente os textos fragment rios do Livro parecem indicar uma continuidade fraca entre
172. ar essencialmente lingu stico Mais do que isso essencialmente po tico pois ele enquanto escritor era sobretudo um poeta Sabemos que Fernando Pessoa se interessou cedo pela filosofia muito por influ ncia do curso de letras que frequentou apenas no primeiro ano Mas mais do que se interessar pela filosofia ele compreendeu desde muito cedo quanto a filosofia podia prejudicar a sua Obra Chegou mesmo numa nota diar stica a dizer o seguinte Tenho de ler mais poesia de modo a neutralizar um pouco o efeito da filosofia pura Esta distin o entre poesia e filosofia pura de grande import ncia e d um pouco a conhecer a maneira de pensar de Pessoa relativamente a estes assuntos sobretudo quando colocados lado a lado Penso que ele n o foi um grande te rico da filosofia dedicou ao tema muitas p ginas mas sobretudo p ginas ao seu estilo extremamente anal ticas e que demonstravam a sua grande cultura sem que no entanto ele conseguisse revolucionar conceitos ou apresentar novas solu es a partir da continuidade do que descrevia como sendo a hist ria da filosofia at ent o O seu sistema uma invers o do que seria um normal sistema filos fico porque se prop e construir uma teoria cifrada em poesia A sua base est na pr pria linguagem escolhida e na forma como a linguagem serve de malha para todos os seus conceitos Ali s a pr pria dispers o da Obra de Fernando Pessoa pode ser tomada como im
173. ar essa mesma diferencia o Devemos passar por cima das considera es ligeiras e ver que o autor do Livro reconhece na am lgama humana um animal monstruoso e reles feito no involunt rio dos sonhos dos restos trincados das sensa es Ou seja o mundo exterior sin nimo de involuntariedade de resto ocupado por pessoas menores precisamente porque apenas se conseguem imaginar a viver nesse mesmo mundo Todas as ac es no mundo exterior nomeadamente aquelas que enredam ainda mais os homens nele devem ser negadas neste campo caiem nomeadamente as ac es que ele reconhece nas pessoas que observa a intriga a maledic ncia a pros pia o contentamento inconsciente a sexualidade as piadas a ignor ncia Mais do que considera es superiores sobre uma classe econ mica inferior estas enumera es podem ser tomadas enquanto classifica es filos ficas de estado N o interessa realmente quem s o estas pessoas e o que elas representam em sociedade mas antes o que as distingue do autor do Livro Elas servem lhe como oposto como contraposi o sua pr pria exist ncia Esta contraposi o est na origem da sensa o de estranheza do autor do Livro no mundo exterior Muitas mais vezes ouviremos falar desta sensa o mesmo quando ele se encontrar sozinho no seu quarto ele pensar nela Como viver num mundo que n o se sente ser o nosso eis um dos problemas centrais da filosofia Pessoana O modo
174. ar me coisa que me repugnaria de fazer a outrem Nunca visitei um amigo doente Sempre que tendo eu adoecido me visitaram sofri cada visita como um inc modo um insulto uma viola o injustific vel da minha intimidade decisiva N o gosto que me d em coisas parecem com isso obrigar me a que as d tamb m aos mesmos ou a outros seja a quem for Sou altamente soci vel de um modo altamente negativo Sou a inofensividade encarnada Mas n o sou mais do que isso n o quero ser mais do que isso n o posso ser mais do que isso Tenho para com tudo que existe uma ternura visual um carinho da intelig ncia nada no cora o N o tenho f em nada esperan a de nada caridade para nada Abomino com n usea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os m sticos de todos os misticismos ou antes e melhor as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os m sticos Essa n usea quase f sica quando esses misticismos s o activos quando pretendem convencer a intelig ncia alheia ou mover a vontade alheia encontrar a verdade ou reformar o mundo Considero me feliz por n o ter j parentes N o me vejo assim na obriga o que inevitavelmente me pesaria de ter que amar algu m N o tenho saudades sen o literariamente Lembro a minha inf ncia com l grimas mas s o l grimas r tmicas onde j se prepara a prosa Lembro a como uma coisa externa e atrav s de coisas externas lembro s as coisas externas N o sos
175. ar o lado mais sens vel e imaginativo da vida A contraposi o entre a sua personalidade fr gil e imaginativa e as personalidades fortes e insens veis de quem vence extraordinariamente elucidativa para o nosso estudo Ele tem a plena consci ncia de que n o tem a mentalidade certa para vencer no mundo exterior e esta pode ser uma das principais raz es dele querer construir a sua pr pria realidade imaginada certamente uma raz o muito forte para essa mesma elabora o te rica Nesse mundo interior a consist ncia do real m nima H momentos em que a vacuidade de se sentir viver atinge a espessura de uma coisa positiva Nos grandes homens de ac o que s o os santos pois que agem com a emo o inteira e n o s com parte dela este sentimento de a vida n o ser nada conduz ao infinito Engrinaldam se de noite e de astros ungem se de sil ncio e de solid o Nos grandes homens de inac o a cujo n mero humildemente perten o o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal puxam se as sensa es como el sticos para ver os poros da sua falsa continuidade bamba 213 Porque inclui ele os santos enquanto homens de ac o Porque o santo o homem de f e a a f o instinto da ac o 2 4 Ter f acreditar em algo que se realiza fora de n s pr prios a f a cren a m xima na realidade exterior Um homem de inac o n o um homem de f Simultaneamente n o um homem que n o acredita
176. ara mim S uma sensa o minha Em continuidade ao problema da poesia ser uma arte ao servi o da filosofia temos de discutir de que forma a apreens o da realidade pelos sentidos escapa ao materialismo absoluto por exemplo de Caeiro e vai na numa nova direc o cognitiva H um conceito Pessoano essencial que temos de analisar agora o conceito de sensa o O que podemos entender por sensa o no todo da obra de Fernando Pessoa No nosso entender a sensa o um conceito estritamente filos fico O pr prio sensacionismo que pretensamente uma corrente liter ria nada mais do que uma filosofia com base est tica E o pr prio Pessoa que o diz num dos seus in meros planos O Sensacionismo A 1 As correntes liter rias 2 Esbo o da evolu o liter ria 3 Evolu o da literatura portuguesa 4 A vinda do Sensacionismo B 1 O Sensacionismo como filosofia est tica 2 O Sensacionismo como atitude social 3 O Sensacionismo como corrente nacional O Sensacionismo como inova o est tica C 1 O Sensacionismo perante a psiquiatria 2 O Sensacionismo perante a cr tica liter ria 3 O Sensacionismo perante a sociologia 4 Conclus o 2 O negrito nosso mas claro que uma dimens o essencial do sensacionismo enquanto filosofia est tica Porqu Porque Fernando Pessoa v a poesia enquanto forma de pr xis filos fica H que entender que a sua poesia e no geral toda a sua esc
177. arde l fora n o sei como ou onde dulcifica sobre esta met fora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz t nue e ltima dum misterioso dia espiritual Quando o autor do Livro nos diz para concluir que n o escreve para publicar nem para fazer arte devemos acreditar verdadeiramente nele Em primeiro grau ele escreve por necessidade Necessidade de analisar as suas sensa es e para lhes dar a consist ncia de sonhos evitando de permeio todo o sofrimento a elas associado O sonho assim tamb m uma forma b sica de evitar o pr prio sofrimento da vida exterior da ac o no mundo Uma pequena sensa o estar assim na raiz de muitos dos grandes textos de Fernando Pessoa ele pr prio que o diz Que na raiz d A Floresta do Alheamento ou da Viagem Nunca Feita estar o certamente pequenas inf mas sensa es que ele pelos processos indicados em cima desfia at lhes tecer a realidade interior A sua prosa afinal e como suspeit vamos apenas o longo processo de cristalizar a realidade exterior e de a transportar para o mundo do sonho um mundo igual ao de fora mas dentro s feito de dentro Mas devemos fazer a pergunta dif cil a realidade constitui se e pode ser resumida a partir apenas a partir de sensa es inf mas de si pr pria Devemos compreender a resposta a esta quest o dentro dos pr prios limites do sensacionismo Pessoano O sensacionismo muito mais do que corrente liter ria
178. aro que a evolu o seria para um amor espiritual est tico j s em sonho e pensamento Uma esp cie de amor ess ncia de si pr prio Voltaremos mais tarde a este tema l Livro do Desasocego Tomo I p g 287 Texto datado presumivelmente de 1930 e que poder referir se experi ncia amorosa de Fernando Pessoa com Oph lia Queiroz A segunda fase do namoro mais fria e distante come a em fins de 1929 e termina no in cio de 1931 pelo que a refer ncia poderia ser primeira fase Livro do Desasocego Tomo I p g 481 53 Livro do Desasocego Tomo I p g 213 54 Ver os 2 trechos intitulados O Amante Visual ambos de 1916 em que o autor do Livro discorre sobre este tema Livro do Desasocego Tomo 1 p g 130 32 Nestes textos tamb m muito interessante considerar o conceito de paix es visuais que permitem ao sujeito amar sem correr o risco de se enredar no amor O amor sendo visual n o chega a concretizar se e permanece sempre na fase do sonho n o dando lugar desilus o um amor com o olhar que nunca se desfaz no conhecimento pessoal da pessoa amada e por isso mesmo sempre permanece perfeito Tal como o sonho perfeito desde que n o se concretize este amor visual um amor idealizado perfeito porque nunca pode conhecer a realidade exterior 55 Ver a Carta a Jo o Gaspar Sim es datada de 18 11 1930 VIII Vivo me esteticamente em outro Neste ponto do nosso estudo devemos
179. as um pouco por h bito de h tantos anos nos termos fixado nela como sendo do Livro em virtude de usarmos a edi o de bolso da Europa Am rica e tamb m por acharmos que ela relevante e marcante no contexto do texto elaborado decidimos mant la Mas fica a devida ressalva Cf Fernando Pessoa Prov rbios Portugueses tica 2010 p g 31 XII O dia foi pesado de trabalho absurdo no escrit rio quase deserto Depois de termos falado longamente sobre o autor do Livro sobretudo tentando caracteriz lo o melhor poss vel podemos ter dado a entender que ele se abstrai por completo da sua viv ncia exterior Isto verdade at certo ponto na medida em que ele olha a sua vida exterior como um p lido reflexo da sua vida interior esvaziando a completamente de significado Mas ao mesmo tempo grande parte da sua actividade ainda exterior sobretudo a actividade nos escrit rios At quase ao fim da sua vida Fernando Pessoa continuou a sua actividade como correspondente comercial em diversos escrit rios embora tenha mantido sempre paralelamente outras actividades como editor inventor copywriter e mesmo empres rio de ag ncias de representa o N o devemos e n o queremos pintar um quadro demasiado morto da vida exterior do autor do Livro Para tal h que falar alguns momentos sobre essa vida de escrit rio dos personagens com quem se relacionada e da import ncia que ele mesmo dava a essa vida Come amos
180. as este reparar vai mais al m da pr pria exist ncia de homens em seu redor pois h enormes momentos de literatura feitos de pequenas observa es casu sticas sobre pormenores aparentemente insignificantes Um destes casos ser o texto intitulado Paisagem de chuva Paisagem de chuva Em cada pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza H qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota na b tega a b tega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente por sobre a terra Chove tanto tanto A minha alma h mida de ouvi lo Tanto A minha carne l quida e aquosa em torno minha sensa o dela 137 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 30 Um frio desassossegado p e m os g lidas em torno ao meu pobre cora o As horas cinzentas e alongam se emplaniciam se no tempo os momentos arrastam se Como chove As biqueiras golfam torrentes m nimas de guas sempre s bitas Desce pelo meu saber que h canos um barulho perturbador de descida de gua Bate contra a vidra a indolente gemedoramente a chuva Uma m o fria aperta me a garganta e n o me deixa respirar a vida Tudo morre em mim mesmo o saber que posso sonhar De nenhum modo f sico estou bem Todas as maciezas em que me reclino t m arestas para a minha alma Todos os olhares para onde olho est o t o escuros de lhes bater esta luz empobrecida do dia para se morrer sem dor 138 Repare se desde logo no in cio do fragmento Em casa
181. as indirectamente no mundo e est para al m do acesso material do homem 30 Mas a morte j n o A morte poder ser acedida materialmente vejamos como Neste ponto dif cil encontrar correspond ncias directas em fragmentos do Livro pela simples raz o de que tudo foi dito de forma indirecta e quase inconsciente O autor fala nos de um mundo falso que o mundo que ele elabora para si mesmo e onde vive realmente e compara esse mundo falso ao mundo verdadeiro que o mundo exterior Ora para aceder a esse mundo interior ele tem de recusar a import ncia do mundo exterior E a esta passagem que n s nos referimos quando dizemos morte em vida a morte do mundo exterior para que o mundo interior possa nascer Correspondentemente a morte do indiv duo enquanto exterioridade para o nascimento de um homem que age apenas no seu pr prio ntimo ou seja a morte da ac o no mundo para o nascimento de um mundo onde reina apenas o sonho ou a inac o Curiosamente neste aspecto poder amos at considerar este mundo interior como sendo um mundo de ordem religiosa Porqu Porque na tradi o dos alquimistas que o autor do Livro parece recusar a Terra o verdadeiro inferno feito de mat ria impura e corrupta Se procurar o c u procurar a fuga do inferno essa procura come a desde o mais baixo em direc o do mais alto O inferno seria a vida quotidiana s rdida e impura o c u a vida interior sonhada
182. asceu nascemos todos n s A tristeza que cada um de n s traz consigo mesmo no sentido da sua alegria ele ainda e a vida dele nunca perfeitamente real nem com certeza vivida afinal a s mula da vida que vivemos rf os de pai e de m e perdidos de Deus no meio da floresta e chorando chorando inutilmente sem outra consola o do que essa infantil de sabermos que inutilmente que choramos 72 Mais do que um elogio mudo afinal Pessoa considera Nobre mais patriota do que poeta de g nio este texto coloca inequivocamente S lado a lado com o Livro do Desassossego enquanto obras sem ensinamentos cheias de encolher de ombros e ang stia Pensamos n s at que o livro de Nobre surge como uma das principais influ ncias para o Livro de Fernando Pessoa influ ncia determinante para o superar enquanto livro mais triste que h em Portugal Cremos que Pessoa nunca deixou de ser tamb m um saudosista como provam alguns dos seus poemas certo que ele toma o tema delicado da saudade e o projecta no futuro mas na ess ncia o que motiva a sua obra sempre a vontade do regresso ao passado precisamente o que motiva a obra de Ant nio Nobre A diferen a entre os dois que Nobre o faz de maneira extremamente frontal enquanto Pessoa muito mais dissimulado H uma raz o para isso Nobre consegue localizar melhor o objecto da sua saudade uma saudade f sica perfeitamente identificada no es
183. avam m ltiplas no claustro do meu simples isolamento A minha figura humana se a considerava com uma aten o externa era do rid culo que tudo quanto humano assume sempre que ntimo Vestira sobre os trajes simples do sono abandonado um sobretudo velho que me serve para estas vig lias matutinas Os meus chinelos velhos estavam rotos principalmente o do p esquerdo E com as m os nos bolsos do casaco p stumo eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos cumprindo com o devaneio in til um sonho igual aos de toda a gente Ainda pela frescura aberta da minha janela nica se ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumula o da chuva ida Ainda vagos havia frescores de haver chovido O c u por m era de um azul conquistador e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam retirando para sobre os lados do Castelo os caminhos leg timos do c u todo Era a ocasi o de estar alegre Mas pesava me qualquer coisa uma nsia desconhecida um desejo sem defini o nem at reles Tardava me talvez a sensa o de estar vivo E quando me debrucei da janela alt ssima sobre a rua para onde olhei sem v la senti me de repente um daqueles trapos h midos de limpar coisas sujas que se levam para a janela para secar mas se esquecem enrodilhados no parapeito que mancham lentamente Sente se a oposi o entre a posi o solit ria do autor do Livro e a presen a avassaladora da r
184. bana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo que a de mim ousaria eu partir para essa cabana ou caverna sabendo por conhecimento que pois que a monotonia de mim a haveria sempre de ter comigo Eu mesmo que sufoco onde estou e porque estou onde respiraria melhor se a doen a dos meus pulm es e n o das coisas que me cercam Eu mesmo que anseio alto pelo sol puro e os campos livres pelo mar vis vel e o horizonte inteiro quem me diz que n o estranharia a cama ou a comida ou n o ter que descer os oito lan os de escada at rua ou n o entrar na tabacaria da esquina ou n o trocar os bons dias com o barbeiro ocioso Tudo que nos cerca se torna parte de n s se nos infiltra na sensa o da carne e da vida e baba da grande Aranha nos liga subtilmente ao que est perto enleando nos num leito leve de morte lenta onde baloi amos ao vento Tudo n s e n s somos tudo mas de que serve isto se tudo nada Um raio de sol uma nuvem que a sombra s bita diz que passa uma brisa que se ergue o sil ncio que se segue quando ela cessa um rosto ou outro algumas vozes o riso casual entre elas que falam e depois a noite onde emergem sem sentido os hier glifos quebrados das estrelas 04 O fragmento anterior de certa maneira desconcertante Sobretudo vindo de um homem que tamb m escreve o seguinte sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro ter experi ncia de todas
185. ber viver a vida 14 Livro do Desasocego Tomo 1 p gs 231 33 como os outros Podemos assim caracteriz lo como decadente algu m que renuncia vida comum dos outros em favor de uma contempla o puramente est tica da mesma O grande mal de Fernando Pessoa sempre foi esta maldi o da consci ncia das coisas Muitas vezes ele nos relata o desejo de ser outra pessoa de ser uma daquelas pessoas que ele corta da vida exterior e cola como personagens reais nos seus poemas H nele um enorme desejo de normalidade Mas simultaneamente h a consci ncia plena do facto da sua anormalidade lhe permitir um posto margem da sociedade um espa o de estudo dos intervalos de todas as grandes teorias em procura de mist rios desconhecidos de todos Mas esta uma miss o essencialmente solit ria e h que afirmar categoricamente que Fernando Pessoa tal como o autor do Livro n o procuram uma teoria global para a Humanidade sen o a afirma o de verdades individuais Por isso podemos desde j arriscar dizer que eles n o s o nem nunca poderiam ser meramente existencialistas Mas s o isso sim condenados n o liberdade mas antes ao pensamento N o se trata de uma vis o pessimista Ali s num dos Intervalos Dolorosos o autor do Livro diz Eu n o sou pessimista N o me queixo do horror da vida Queixo me do horror da minha 5 Mais frente ele conclui do seguinte modo N o me indigno porque
186. bi es e sem vontade de se expressar no mundo exterior Quase se poder dizer que o autor do Livro mal existe e nisto ele confunde se sobremaneira com o seu demiurgo Fernando Pessoa O Livro inclui grandes revela es sobre a vida de Fernando Pessoa sobretudo a sua vertente quotidiana de funcion rio menor que por detr s dessa apar ncia fr gil constru a toda uma literaura desconhecida a todos o que o conheciam A simbologia deste Livro tamb m esse fen meno de apar ncia vs ess ncia que nos leva a olhar os outros desconhecendo o que eles s o realmente por dentro o que eles fazem ou quais s o as suas verdadeiras ambi es Sim porque se dizemos que o autor do Livro n o tem ambi es dizemo lo no sentido de ele n o ter ambi es exteriores Que outras ambi es existir o Poder o perguntar Na verdade todas as ambi es come am por ser interiores sendo que posteriormente se realizam ou n o Mas esta figura n o est como j vimos totalmente desligada do mundo Tem pelo menos um conhecido Fernando Pessoa e rodeiam no os seus colegas do escrit rio que ele v como uma esp cie de casa que nunca teve E recolho me como ao lar que os outros t m casa alheia escrit rio amplo da Rua dos Douradores Achego me minha secret ria como a um baluarte contra a vida Tenho ternura ternura at s l grimas pelos meus livros de outros em que escrituro pelo tinteiro velho de que me sirv
187. cedo na nossa an lise f cil de ver a import ncia dos mesmos Apenas nos restar observar como o autor do Livro nos vai propor transformar estes princ pios te ricos em princ pios pr ticos de forma a que o homem exterior passe a ser completamente e apenas um homem interior Continuando a existir no dia a dia sim com o mesmo emprego com a mesma rotina mas por dentro j um monge j Buda vivendo o seu nirvana junto da multid o que ignora a sua ilumina o pessoal e apenas v passar um empregado de escrit rio normal igual a tantos outros 25 Livro do Desasocego Tomo I p g 77 IV Na vida temos todos de ser explorados Julgo que muito interessante dedicarmos algum tempo a pensar na profiss o do autor do Livro mais propriamente no porqu dele ser empregado de escrit rio Comecemos por tentar perceber a inten o por detr s desta decis o Tenho um prazer ntimo da ironia do rid culo imerecido quando sem que algu m estranhe declaro nos actos oficiais em que preciso dizer a profiss o empregado no com rcio 26 A ironia do r diculo imerecido diz nos ele ao descrever a sua humilde ocupa o Na verdade d para perceber desde j que ser qualquer coisa de activo demasiado Tudo o que implique ac o demasiado para o autor do Livro porque ele insistir no desenvolvimento de uma vida interior Numa outra passagem ele diz Hoje em um dos devaneios sem prop sito nem dignidade
188. cer 1 2 Eis como inesperadamente o afastamento nos traz at um poss vel regresso inf ncia De entre os eus interiores haver tamb m um eu infante um eu que consegue olhar a exterioridade ou mesmo o eu interior exterior de uma maneira em que n o a deseja mas apenas a observa de forma pura 11 Livro do Desasocego Tomo I p g 407 08 192 O autor do Livro escreve a certo ponto Quando outra virtude n o haja em mim h pelo menos a da perp tua novidade da sensa o liberta Ob Cit p g 195 XIX Esse lugar activo de sensa es a minha alma passeia s vezes comigo conscientemente pelas ruas nocturnas da cidade nas horas tedientas em que me sinto um sonho entre sonhos de outra esp cie luz do g s pelo ru do transit rio dos ve culos Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por vielas e sub ruas torna se me complexa a alma em labirintos de sensa o Tudo quanto de aflitivamente pode dar a no o de irrealidade e de exist ncia fingida tudo quanto soletra sem ser ao racioc nio mas concreta e Jmente o quanto mais do que oco o lugar do universo desenrola se me ent o objectivamente no esp rito apartado Angustia me n o sei porqu essa extens o objectiva de ruas estreitas e largas essa consecu o de candeeiros rvores janelas iluminadas e escuras port es fechados e abertos vultos heterogeneamente nocturnos que a minha vista curta no que de maior imprecis
189. cesso ao que est para l do mundo material para l da morte porque a morte comummente a fronteira entre o mundo material e o mundo espiritual das ideias O homem encontra se preso a essa ideia por existir num mundo material que acaba com a sua morte e porque para l da morte n o h maneira de compreender ainda esse mundo material O paradoxo parece definitivo e inultrapass vel 125 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 269 12 Livro do Desasocego Tomo I p g 368 27 Dizemos gnosticismo mas n o no sentido tradicional porque o autor do Livro mostrar sempre uma grande indiferen a pelo conhecimento directo de Deus A nica raz o porque n o dizemos que ele seria agn stico a curiosidade infind vel que ele tem pelo plano de Deus ou pela oposi o entre Deus e o resto Al m do mais a palavra Deus usada no Livro cerca de 170 vezes o que ilustra bem que o desinteresse n o completo antes pelo contr rio Acreditar em Deus seria acreditar num mundo para al m da morte e numa ordem universal das coisas e n o acreditar em Deus seria conceber uma realidade que termina com a morte e para al m da qual nada existe porque nada existe sem uma presen a material O que o autor do Livro nos prop e muito original uma morte em vida O que a morte em vida A liberdade a possibilidade do isolamento s livre se podes afastar te dos homens sem que te obrigue a procur los a
190. cesso um pendor iminentemente est tico porque as coisas n o t m verdadeira profundidade verdadeira exist ncia Elas persistem apenas enquanto fen menos visuais que ao serem percepcionados geram sensa es dentro de cada indiv duo sendo esta a forma como cada um de n s apreende o mundo Todos n s procedemos a esta apreens o da realidade mas alguns pretendem ir mais longe tornando as sensa es em realidades paralelas interiores que desafiam a realidade exterior Falamos de amor mas poder amos falar de toda a percep o da realidade Para mim a humanidade um vasto motivo de decora o que vive pelos olhos e pelos ouvidos e ainda pela emo o psicol gica Nada mais quero da vida sen o assistir a ela Nada mais quero de mim sen o o assistir vida 260 258 Livro do Desasocego Tomo p g 131 259 Houve uma inten o de Pessoa organizar um pequeno livro de poemas com a evolu o do processo amoroso tal como ele refere numa carta a Gaspar Sim es datada de 18 11 1930 Uma explica o Antinous e Epithalamium s o os nicos poemas ou at composi es que eu tenho escrito que s o nitidamente o que se pode chamar obscenos H em cada um de n s por pouco que especialize instintivamente na obscenidade um certo elemento desta ordem cuja quantidade evidentemente varia de homem para homem Como esses elementos por pequeno que seja o grau em que existem s o um certo estorvo para alguns processos mentais supe
191. ci Amarem foi coisa que sempre me pareceu imposs vel como um estranho tratar me por tu N o sei se sofra com isto se o aceite como um destino indiferente em que n o h nem que sofrer nem que aceitar Desejei sempre agradar Doeu me sempre que me fossem indiferentes rf o da Fortuna tenho como todos os rf os a necessidade de ser o objecto da afei o de algu m Passei sempre fome da realiza o dessa necessidade Tanto me adaptei a essa fome inevit vel que por vezes nem sei se sinto a necessidade de comer Com isto ou sem isto a vida d i me 194 Julgo que correndo o risco de simplificar demasiado o sonho se pode considerar em ess ncia uma manifesta o da estranheza que o autor do Livro sente ao longo da sua vida Certamente que o sonho sem mais uma coisa estranha sobretudo estranha vida em si mesma porque se lhe op e enquanto realidade contr ria O sonho n o s ilude a vida como se contrap e a ela muito frequentemente negando a ou melhorando a em algum aspecto particular Ora um sonhador em ess ncia tamb m algu m que prefere negar a vida a dar lhe um significado real e concreto Sonhar afastar se da vida Sonhar negar viver Agora devemos considerar se o sonho apenas afastamento J vimos em certa medida noutras p ginas deste mesmo volume que n o O sonho afastamento apenas numa primeira fase na fase dita f sica em que esse afastamento resultado de uma inadequa o
192. ciais deste processo os passos que levam liberta o da vida pelo sonho fazem com o que o sonhador se sinta num mundo interm dio com um p na vida exterior e o outro no mundo de sonho sem saber realmente quem ou onde vive e pior ainda o que real e o que imaginado O que o salva que a verdade n o existe enquanto certeza em nenhum dos dois mundos Esta certeza gnosiol gica a constante que permite todas as coisas 123 Livro do Desasocego Tomo p g 377 124 Livro do Desasocego Tomo I p g 210 por n o haver verdade que tudo permitido N s podemos existir como n o existir Podemos ser realidade como ser sonho Podemos ser tudo porque a verdade n o est em lugar nenhum em nenhuma coisa fixa A verdade est fora do nosso alcance seja em que mundo for Esta a nica raz o para que n o haja um medo instr nseco em abandonar a realidade exterior em favor de um mundo imaginado O sonho um paleativo intenso para um homem desiludido com todas as filosofias com a pr pria hist ria da filosia em si mesma O conhecimento tornou se uma ilus o ainda maior do que o vislumbre de uma qualquer no o de verdade Isto leva a que o sonhador seja impelido a construir a sua pr pria realidade a sua pr pria verdade Nessa verdade interior ele incorpora toda a realidade todas as presen as todos os corpos todos os objectos e todas as sensa es A prosa enquanto instrumento universal para a descri o des
193. cialistas enquanto uma fronteira incompreens vel absurda que de certa forma define a pr pria vida A vida tornou se absurda porque a morte era ela pr pria absurda para os homens A partir do momento em que a morte uma morte em vida ela d um novo significado pr pria vida A vida deixa de ser absurda se for uma vida interior que tem um significado imanente para quem a vive porque quem a vive imagina a sua maneira perfeita sua maneira 132 Livro do Desasocego Tomo p g 256 PARTEII O c u negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas por contraste vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto O dia por m n o estava tempestuoso j Toda a massa da amea a da chuva passara para por sobre a outra margem e a cidade baixa h mida ainda do pouco que chovera sorria do ch o a um c u cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente O fresco da Primavera era levemente frio in Livro do Desasocego Tomo I p g 233 Muitos dos leitores atentos do Livro do Desassossego notam a curiosa constru o das suas amplas descri es da cidade de Lisboa Ser porventura neste livro que melhor passam as impress es reais de Fernando Pessoa sobre as ruas em que caminhava os pr dios que via e sobretudo as pessoas com que se cruzava sobretudo os desconhecidos Todos estes elementos s o elementos importantes no Livro embora n o os possamos defender enquanto elementos fundadores Ist
194. cionismo visa a n o compreender o universo A realidade a incompreensibilidade das coisas Compreend las n o compreend las 2 Como as coisas n o podem ser compreendidas leia se o homem n o tem acesso verdade das coisas enquanto ser finito a nossa nica op o optar por n o as compreender Acreditar na sensa o enquanto fonte da realidade acreditar nessa inutilidade do pensamento no entanto acreditar nisso n o a um n vel puramente emp rico pois continua a haver uma opera o mental sobre o que apreendido pelos sentidos mas uma opera o n o racional emocional A sensa o nitidamente do exterior mas ao mesmo tempo esse sentimento ou sensa o do exterior do f sico sempre acompanhada por uma obscura consci ncia do interior do ps quico 245 243 Livro do Desasocego Tomo I p g 103 4 244 Pessoa In dito Lisboa Livros Horizonte 1993 141 245 P ginas ntimas e de Auto Interpreta o tica 1966 169 Claro que Pessoa aproveita de diversas formas esta corrente que cria em conjunto com outros poetas contempor neos embora seja ele o verdadeiro te rico Mas os seus princ pios b sicos s o ineg veis Vamos repet los sint ticos Princ pios do Sensacionismo 1 Todo o objecto uma sensa o nossa 2 Toda a arte a convers o duma sensa o em objecto 3 Portanto toda a arte a convers o duma sensa o numa outra sensa o 246 Toda a arte
195. clus o entre a pr pria multid o de homens que ele recusa enquanto irm os Trata se sem d vida do maior desafio de Fernando Pessoa Ele pretende conjugar a reclus o com o conv vio f sico olhando observando J vimos como o simples acto da observa o distancia o homem do seu objecto de estudo bom de ver que isso ocorre no fragmento que transcrevemos em cima O homem que desce a Rua Nova do Almada frente do autor do Livro um homem normal podia ser a s ntese de todos os homens que ele v todos os dias Um chefe de fam lia com pasta debaixo do bra o e guarda chuva na m o direita certamente chefe de fam lia com um lar feliz e prazeres simples na sua vida Ele resume a comum vulgaridade humana de viver sem analisar Chega mesmo a compar lo a um animal A ternura que ele sente pelo homem que v pelas costas uma ternura por toda a humanidade na medida em que ele pr prio se afasta dessa humanidade e a ternura n o mais do que um sentimento pleno de afastamento em que ele pr prio se elege diferente Ele o autor do Livro op e se ao homem que caminha Ele est acordado o homem a dormir inconsciente Atrav s de mais um s mbolo o homem que caminha ele consegue transportar a realidade exterior para a realidade imaginada do seu interior Ele reconhece na am lgama de homens que caminham o s mbolo m ximo da inconsci ncia humana O que fazem eles aqui Para onde v o Ser q
196. coisas brincando com o fogo das analogias misteriosas procrastinando a lucidez integral a s ntese normal para se denegrir Ca numa complexa indisciplina cerebral cheia de indiferen as Onde me refugiei Tenho a impress o de que n o me refugiei em parte nenhuma Abandonei me mas n o sei a qu Concentrei e limitei os meus desejos para os poder requintar melhor Para se chegar ao infinito e julgo que se pode l chegar preciso termos um porto um s firme e partir dali para Indefinido Hoje sou asc tico na minha religi o de mim Uma ch vena de caf um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas o trabalho o amor at a beleza e a gl ria N o tenho quase necessidade de est mulos Opio tenho o eu na alma Que sonhos tenho N o sei Forcei me por chegar a um ponto onde nem saiba j em que penso com que sonho o que visiono Parece me que sonho cada vez de mais longe que cada vez mais sonho o vago o impreciso o invision vel N o fa o teorias a respeito da vida Se ela boa ou m n o sei n o penso Para meus olhos dura e triste com sonhos deliciosos de permeio Que me importa o que ela para os outros A vida dos outros s me serve para eu lhes viver a cada um a vida que me parece que lhes conv m no meu sonho 256 J fal mos da est tica antes neste estudo Cf Supra Parte I VIII 257 Livro do Desasocego Tomo I p g 483 84 Desde h muito que suspei
197. como este problema solucionado traz nos a grande originalidade dessa mesma filosofia o desdobramento do ser em ser outros e o papel do sonho na substitui o da realidade imanente em favor da realidade imaginada Esta estranheza expressa se tamb m de outras formas nomeadamente na vis o particular das coisas civilizadas Uma dessas ocasi es quando o autor do Livro reflecte sobre os jardins p blicos N o sei que coisa estranha e pobre existe na subst ncia ntima dos jardins citadinos que s a posso sentir bem quando me n o sinto bem a mim Um jardim um resumo da civiliza o uma modifica o an nima da natureza As plantas est o ali mas h ruas ruas Crescem rvores mas h bancos por baixo da sua sombra No alinhamento virado para os quatro lados da cidade ali s largo os bancos s o maiores e t m quase sempre gente 63 H a sensa o de que tudo o que humano por ess ncia manipulado e falso O mundo ocupado pelas civiliza es nada mais que uma grande encena o montada conforme insconsci ncia 1 Livro do Desasocego Tomo I p g 239 40 16 Livro do Desasocego Tomo I p g 240 41 Curioso este texto que nos lembra outro de Caeiro Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares Parecem ter medo da pol cia poema XXXIII do Guardador de Rebanhos plena das coisas A maior parte das pessoas conseguir ignorar que a Natureza est no meio da cidade mas o autor do Li
198. como se houv ssemos aparecido s nossas almas depois de uma viagem atrav s de sonhos A presen a feminina no Livro semelhan a do que acontece no resto da obra Pessoana algo distante Mas o apenas de forma enganadora visto que a men o existe a mera men o de uma figura feminina n o deve ser menosprezada Porque existe ent o a mulher no cen rio de sonho O sonho tamb m uma forma de concretizar a solid o O acto de sonhar provavelmente o acto mais solit rio que existe Quando n s assumimos a import ncia fundamental do sonho enquanto ferramenta de constru o da realidade temos igualmente de assumir a import ncia da solid o como basilar nesssa mesma teoria Ora se o sonhador um homem por defini o s n o quer dizer que ele se tenha de sonhar s Relembre se que o sonho a reconstru o da realidade exterior numa realidade do int mo Ora apenas natural que ent o o sonhador n o se imagine s no seu sonho mas sonhe tamb m a mulher Mas uma mulher distante que nunca tocada ou pelo menos que tocada sempre com um cuidado extremo pela no o b sica de que o corpo corrompe o sonho a realidade f sica corrompe mata o sonho Esta no o de n o tocar a vida nem sequer com a ponta dos dedos 225 de essencial import ncia O pr prio sonho da mulher quase que um sonho dentro de um sonho Quando eles passeiam de bra o dado quase se desconhecem porque n o existem carnal
199. consci ncia plena dela N o fazer aparece em continuidade dessa mesma consci ncia da futilidade de agir Apenas um homem que adia tudo e nada faz pode conceber uma vida diferente uma vida em que ele n o vivido por ela mas toma plenas r deas do seu destino Como se toma as r deas do seu pr prio destino num mundo que desconhecemos e que nos hostil Imaginando um outro mundo diferente atrav s do sonho Este um m todo totalmente operativo preciso real ar este ponto n o se tratando apenas de uma mirabolante teoria liter ria ou po tica Ao quebrar as suas liga es com o mundo exterior distanciando se de tudo e de todos tornando se em ess ncia um solit rio sem amigos sem deveres a n o ser os mais b sicos e necess rios o sonhador do Livro um ser verdadeiramente estranho realidade que passa a habitar Ele continua a agir no mundo mas age com a plena consci ncia da inutilidade das suas ac es Ele fecha se mas sem bater a porta no sentido em que a sua vida parece do exterior continuar igual mas na verdade ele um homem diferente ele fechou definitivamente a sua vida para os outros continuando apenas aberta uma frecha m nima por onde entra uma luz do exterior ainda presente Esta vida m nima de servi os m nimos permite lhe sobreviver e permite lhe tamb m alimentar o sonho j vimos como o sonho tamb m basicamente uma forma de recuperar ou transportar a realidade exterior para uma
200. corpo Quase que me surpreendo a querer gritar de afundando me que me sinto em um oceano de uma imensid o que nada tem com a infinidade do espa o nem com a eternidade do tempo nem com qualquer coisa suscept vel de medida e nome Nestes momentos de terror supremamente silencioso n o sei o que sou materialmente o que costumo fazer o que me usual querer sentir e pensar Sinto me perdido de mim mesmo fora do meu alcance A nsia moral de lutar o esfor o intelectual para sistematizar e compreender a irrequieta aspira o artista a produzir uma coisa que ora n o compreendo mas que me lembro de compreender e a que chamo beleza tudo isto se me some do instinto do real tudo isto se me afigura nem digno de ser pensado in til vazio e long nquo Sinto me apenas um v cuo uma ilus o de uma alma um lugar de um ser uma escurid o de consci ncia onde estranho insecto procurasse em v o sequer a c lida lembran a de uma luz Inici mos esta Parte II com o objectivo de ilustrar a maneira como as descri es da cidade influenciaram a filosofia do Livro do Desassossego Penso que chegados ao n XIX desta Parte II conseguimos elaborar um estudo preciso e alargado dessa mesma influ ncia Terminamos esta Parte II com um fragmento sem data mas provavelmente tardio que aparece inclusive em anexo na Edi o Cr tica por ser de duvidosa coloca o no pr prio Livro mas que parece adequado a ele Para n s o fragmento tem a virtude de
201. crescer erguem se os montes de muito antigamente e o vento passa com o mesmo modo com que Homero ainda que n o existisse o ouviu Mais certo era dizer que um estado da alma uma paisagem haveria na frase a vantagem de n o conter a mentira de uma teoria mas t o somente a verdade de uma met fora Estas palavras casuais foram me ditadas pela grande extens o da cidade vista luz universal do sol desde o alto de S o Pedro de Alc ntara Cada vez que assim contemplo uma extens o larga e me abandono do metro e setenta de altura e sessenta e um quilos de peso em que fisicamente consisto tenho um sorriso grandemente metaf sico para os que sonham que o sonho sonho e amo a verdade do exterior absoluto com uma virtude nobre do entendimento O Tejo ao fundo um lago azul e os montes da Outra Banda s o de uma Su a achatada Sai um navio pequeno vapor de carga preto dos lados do Po o do Bispo para a barra que n o vejo Que os Deuses todos me conservem at hora em que cesse este meu aspecto de mim a no o clara e solar da realidade externa o instinto da minha inimport ncia o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz 183 A confus o propositada entre fora e dentro continua a revelar se como a nossa principal guia de an lise nos textos mais tardios do Livro dos quais um exemplo exemplo o que reproduzimos em cima datado de 7 6 1932 e publicado em vida por Pessoa na revista Revolu o n 74
202. da em que retiram da realidade o seu significado essencial que a nega o da pr pria realidade por ser absurda A despreocupa o com a iman ncia e a compreens o da realidade pela intui o e pela sensa o levam a uma particularidade tamb m ela extrema esta filosofia n o depende da realidade n o emp rica mas tamb m emp rica Ela tudo porque engloba todas as experi ncias mas no fim n o nada porque todas as experi ncias existem apenas para um fim fora de si mesmas Caeiro existe n o para provar que a verdade est acess vel directamente na Natureza mas antes para provar que o ponto de vista de Caeiro um dos pontos de vista poss veis de serem experimentados A finalidade do drama em gente n o chegar uma verdade a de Caeiro Campos ou Reis mas antes assun o de que n o existe uma verdade individual no mundo Ningu m entre eles tem raz o todos eles falham mas em ltima an lise todos eles t m raz o em conjunto o autor do Livro que opera esta s ntese fazendo a quadratura do c rculo a meias com o ort nimo No fim e no meio desta filosofia est um uso da linguagem que a torna extremamente valiosa a nosso ver para a hist ria da filosofia Ocidental O autor do Livro apreende a realidade pelas sensa es e transmite a realidade atrav s da poesia negando quaisquer limites l gicos do que pode ser abarcado pela linguagem humana O desenvolvimento dos sonhos pela prosa permite e
203. dade nem mesmo uma realidade s tua Propriamente n o te vejo nem mesmo te sinto s como que um sentimento que fosse o seu pr prio objecto e pertencesse todo ao ntimo de si pr prio s sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver a orla da veste que por pouco eu n o pude ver perdida num eterno Agora para al m da curva do caminho O teu perfil n o seres nada e o contorno do teu corpo irreal desata em p rolas separadas o colar da ideia de contorno J passaste e j foste e j te amei o sentir te presente sentir isto 114 Esta aparente adora o da mulher ao ponto de a colocar no pedestal de uma deusa sem sexo e sem consist ncia humana penso que o demonstr mos afinal uma maneira de atacar de frente o problema da mulher e do amor face sistematiza o da realidade interior de quem sonha 5 Assim quando o autor do Livro encontra a mulher na sua vida exterior o que ele faz traduzi la para a sua realidade interior sonhando a Isto acontece em textos mais complexos e abstractos como Na Floresta do Alheamento mas tamb m em textos mais directos como por exemplo o rascunho de uma carta Uma carta 113 Livro do Desasocego Tomo I p g 15 16 114 Livro do Desasocego Tomo I p g 18 115 N o pretendemos ignorar as mais amplas influ ncias nesta perspectiva da mulher enquanto s mbolo Apenas achamos redutor enveredar por uma an lise demasiado Freudiana em que a figura da mulher confu
204. dade atrav s da palavra 3 O autor do Livro tem plena no o disto quando diz A literatura que a arte casada com o pensamento e a realiza o sem a m cula da realidade parece me ser o fim para que deveria tender todo o esfor o humano se fosse verdadeiramente humano e n o uma superfluidade do animal Creio que dizer uma coisa conservar lhe a virtude e tirar lhe o terror Os campos s o mais verdes no dizer se do que no seu verdor As flores se forem descritas com frases que as definam no ar da imagina o ter o cores de uma perman ncia que a vida celular n o permite 240 A literatura que a arte casada com o pensamento veja se como esta frase se enquadra perfeitamente no que dissemos anteriormente No entendimento do autor do Livro a literatura deveria ser o fim para que deveria tender todo o esfor o humano Porqu Ele d um exemplo metaf rico da descri o dos campos ser mais verde do que a sua pr pria realidade e as cores das flores poderem ser mais vivas do que n o na sua exist ncia real O que significa isto Penso que aqui est o entendimento da realidade enquanto mais do que apenas o que nos chega pelos sentidos a realidade mais do que aquilo que existe a realidade acrescida do sentimento humano Os campos podem ser verdes mas n s ao v los tornamo los ainda mais verdes s pelo acto de os vermos A nossa ac o superlativa face a todas as coisas porque lhes imp e a interpreta
205. dade de viagem N o fazer bem porque n o sei o que o bem nem se o fa o quando julgo que o fa o Sei eu que males produzo se dou esmola Sei eu que males produzo se educo ou instruo Na d vida abstenho me E acho ainda que auxiliar ou esclarecer em certo modo fazer o mal de intervir na vida alheia A bondade um capricho temperamental n o temos o direito de fazer os outros v timas de nossos caprichos ainda que de humanidade ou de ternura Os benef cios s o coisas que se infligem por isso os abomino friamente Se n o fa o o bem por moral tamb m n o exijo que mo fa am Se adoe o o que mais me pesa que obrigo algu m a tratar me coisa que me repugnaria de fazer a outrem Nunca visitei um amigo doente Sempre que tendo eu adoecido me visitaram sofri cada visita como um inc modo um insulto uma viola o injustific vel da minha intimidade decisiva N o gosto que me d em coisas parecem com isso obrigar me a que as d tamb m aos mesmos ou a outros seja a quem for Sou altamente soci vel de um modo altamente negativo Sou a inofensividade encarnada Mas n o sou mais do que isso n o quero ser mais do que isso n o posso ser mais do que isso Tenho para com tudo que existe uma ternura visual um carinho da intelig ncia nada no cora o N o tenho f em nada esperan a de nada caridade para nada Abomino com n usea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os m sticos de todos os misticismos ou
206. dado a conhecer pelos sentidos A nossa verdade necessariamente aparente e redutora por ser nica E mesmo assim n o uma verdade em sentido pr prio pois n o sabemos em que que ela consiste o que est na sua origem ou sequer qual o nosso papel dentro dela Ser ent o que propor o sonho de uma realidade que n o controlamos algo de absurdo Ser absurdo postular um objectivo mais alto de conseguirmos ultrapassar as nossas limita es numa realidade que nos aprisiona imaginando os livres dela atrav s da nica ferramente que possu mos para esse efeito o sonho Nos nos cabe decidir quanto ao particular cabimento desta teoria Mas cabe nos isso sim extrair a teoria do Livro e apresent la aos nossos leitores estando n s perfeitamente convictos da sua exist ncia enquanto tal N o apenas uma proposi o liter ria po tica mas uma verdadeira e pr pria teoria filos fica que se n o foi reconhecida at agora pelos exegetas da obra de Pessoa ser porventura apenas por uma quest o de oportunidade ou de coragem Entretanto podemos compreender como tudo o que material demasiado material pesar a este homem a este autor do Livro que cada vez mais se desmaterealiza a si pr prio N o fales Aconteces demasiado Tenho pena de te estar vendo Quando ser s tu apenas uma saudade minha At l quantas tu n o ser s E eu ter de julgar que te posso ver uma ponte velha onde
207. de facto est a viver numa realidade que n o verdadeiramente a sua e essa sensa o de estranheza leva a que tudo o que ele escreve possa ser verdadeiramente artificial Artificial mas n o necessariamente falso Quem sente as coisas interiormente e vive interiormente n o pode viver naturalmente em qualquer exterior Neste sentido n o h falsidade ao n vel do fingimento absoluto apenas um grau de desfazamento perfeitamente inevit vel o estar fora de fase com as coisas imanentes e em fase com as coisas do seu pr prio mundo interior esta artificialidade que tamb m o leva a uma grande vontade de isolar a cidade de quem vive nela como se a pr pria cidade tivesse uma vida separada da actividade humana A estranheza que vive dentro do autor do Livro serve lhe para exacerbar um distanciamento que ele pr prio sempre sentiu Ele colocar se numa posi o de puro observador da cidade e dos comportamentos humanos dentro da cidade mas nunca a abandonando em vista de um retiro distante ele em ess ncia um ermita urbano Passo horas s vezes no Terreiro do Pa o beira do rio meditando em v o A minha impaci ncia constantemente me quer arrancar desse sossego e a minha in rcia constantemente me det m nele Medito ent o em uma modorra de f sico que se parece com a vol pia apenas como o sussurro de vento lembra vozes na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos na perene instabilidade das minhas nsias imposs v
208. de herm ticas meu Deus vou sentindo que n o poderei guardar mais o meu ref gio de estar deitado de n o estar dormindo mas de o poder estar de ir sonhando sem saber que h verdade nem realidade entre um calor fresco de roupas limpas e um desconhecimento salvo de conforto da exist ncia do meu corpo Vou sentindo fugir me a inconsci ncia feliz com que estou gozando da minha consci ncia o modorrar de animal com que espreito entre p lpebras de gato ao sol os movimentos da l gica da minha imagina o desprendida Vou sentindo sumirem se me os privil gios da penumbra e os rios lentos sob as rvores das pestanas entrevistas e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva Vou me perdendo at vivo N o sei se durmo ou se s sinto que durmo N o sonho o intervalo certo mas reparo como se come asse a despertar de um sono n o dormido os primeiros ru dos da vida da cidade a subir como uma cheia do lugar vago l em baixo onde ficam as ruas que Deus fez S o sons alegres coados pela tristeza da chuva que h ou talvez que houve pois a n o oi o agora s o cinzento excessivo da luz frinchada at mais longe que me d nas sombras de uma claridade frouxa insuficiente para a altura da madrugada que n o sei qual S o sons alegres e dispersos e doem me no cora o como se me viessem com eles chamar a um exame ou a uma execu o Cada dia se o oi o ra
209. de n o ser nada e a vontade um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do p passagem Olha se mas n o se v A longa rua movimentada de bichos humanos uma esp cie de tabuleta deitada onde as letras fossem m veis e n o formassem sentidos As casas s o somente casas Perde se a possibilidade de dar um sentido ao que se v mas v se bem o que sim As pancadas de martelo porta do caixoteiro soam com uma estranheza pr xima Soam grandemente separadas cada uma com eco e sem proveito Os ru dos das carro as parecem de dia em que vem trovoada As vozes saem do ar e n o de gargantas Ao fundo o rio est cansado N o t dio o que se sente N o m goa o que se sente uma vontade de dormir com outra personalidade de esquecer com melhoria de vencimento N o se sente nada a n o ser um automatismo c em baixo a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no ch o na marcha involunt ria uns p s que se sentem dentro dos sapatos Nem isto se sente talvez roda dos olhos e como dedos nos ouvidos h um aperto de dentro da cabe a Parece uma constipa o na alma E com a imagem liter ria de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescen a sem andar e a ideia de convalescen a evoca as quintas dos arredores mas l para dentro onde s o lares longe da rua e das rodas Sim n o se sente nada Passa se conscientemente a dormir s com a impossibilidade de dar
210. de uma traum tica inadequa o pr pria vida Numa segunda fase a fase que realmente distingue esta esp cie de sonho ele uma aproxima o a uma outra coisa Qual essa coisa Veremos ao longo desta Parte III que a constru o do sonho enquanto aproxima o uma realidade bastante complexa e que dificilmente pode ser resumida em poucas palavras no entanto pensameos que essa coisa poder ser algo similar verdadeira identidade interior do ser ou mesmo um ser para si mesmo que aparece em confronto com a anula o do ser para os outros O que ent o sonhar 1 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 147 N o podemos ver o sonho enquanto uma recusa pura da realidade nem o podemos ver enquanto uma recusa parcial da realidade em certa medida pode parecer que sonho tamb m poderia ser apenas um escape da realidade imanente para uma realidade transcendente O sonho curiosamente apenas outra maneira de viver Vejamos como isso se traduz na linguagem do Livro Tenho que escolher o que detesto ou o sonho que a minha intelig ncia odeia ou a ac o que a minha sensibilidade repugna ou a ac o para que n o nasci ou o sonho para que ningu m nasceu Resulta que como detesto ambos n o escolho nenhum mas como hei de em certa ocasi o ou sonhar ou agir misturo uma coisa com outra O texto anterior d nos uma perspectiva r pida da import ncia desempenhada pelo sonho na vida exterior do autor do Livr
211. deal onde o poeta estaria no centro se bem que nada irradiasse desse centro solit rio H que perguntar ent o at que ponto constru do o modelo de uma sociedade ideal no Livro Penso que podemos desde logo responder negativamente O Livro n o teoriza sobre uma sociedade ideal Nem sequer sobre o papel ideal do homem na sociedade No centro do Livro est o homem solit rio o indiv duo que depende apenas de si pr prio Desde logo isso destr i qualquer no o de uma sociedade perfeita porque qualquer sociedade composta de multid es de indiv duos mesmo que uns se sobreponham a outros dominando os de alguma forma seja com o seu poder ou com as suas ideias Ora o autor do Livro n o parece querer dominar ningu m ele o anti cidad o n o pretendendo ajudar a realidade exterior a evoluir prestando se apenas aos deveres mais b sicos e s rdidos da exist ncia em sociedade o m nimo dos m nimos que lhe permite sobreviver Sendo assim a constru o sociol gica presente no Livro n o idealista longe disso catastroficamente pragm tica na medida em que nos apresenta um homem que n o tem ambi es reais que se confronta a si mesmo de forma fria e aberta que nos apresenta tamb m de maneira fria e aberta os problemas da sociedade em que vive nunca a imaginando diferente para melhor Ent o o que esse mundo ideal e interior que ele sonha Poder ser um mundo religioso ou pelo menos de ordem
212. dem ser entendidas apenas formalmente T m de ser sentidas A 249 Pessoa In dito Lisboa Livros Horizonte 1993 146 250 Pessoa foi bastante longe neste prop sito de sentir tudo de todas as maneiras bastando lembrar que o cerne da sua experi ncia liter ria estar baseado na desmultiplica o de personalidades que o habitavam Cada um era diferente e muitas das vezes oposto do outro proporcionando lhe o acesso demi rgico s tamb m diferentes sensa es de que iria desfrutar conhecendo assim progressivamente o mundo quarta dimens o da sensa o ent o uma dimens o de conte do que se adiciona s restantes tr s dimens es de forma A quarta dimens o da realidade ent o uma dimens o emocional IV Nunca deixarei creio de ser ajudante de guarda livros de um armaz m de fazendas A condi o do autor do Livro define a sua pr pria filosofia enquanto pr xis de si mesma Ele n o tem ambi es vagueia pelo mundo exterior como um mero observador dos fen menos sua volta fen menos que n o pretende tornar seus apenas aproveitar para si mesmo J vimos anteriormente como ele olha para a realidade como sendo uma esp cie de reservat rio de significados e de mat ria prima que depois utilizada pela poesia para fazer arte Em que medida esta atitude anti vida influencia a sua maneira de pensar Acho que decisivo considerar que ele tem uma atitude de passividade relativamente vida exteri
213. despertar esfarrapava se sem contornos no adormecimento das encostas N o fazia frio salvo em ter que recome ar a vida E tudo aquilo toda esta frescura lenta da manh leve era an logo a uma alegria que ele nunca pudera ter O carro descia lentamente a caminho das avenidas medida que se aproximava do maior aglomeramento das casas uma sensa o de perda tomava lhe o esp rito vagamente A realidade humana come ava a despontar Seria certo por uma hora como estas n o chegar nunca realidade humana para que a nossa vida se destina Ficar suspenso entre a n voa e a manh imponderavelmente n o em esp rito mas em corpo espiritualizado em vida real alada aprazia mais do que outra coisa ao nosso desejo de buscar um ref gio mesmo sem raz o para o buscar Sentir tudo subtilmente torna nos indiferentes salvo para o que se n o pode obter sensa es por chegar a uma alma ainda em embri o para elas actividades humanas congruentes com sentir profundamente paix es e emo es perdidas entre conseguimentos de outras esp cies Descrevendo o que parece ser um desembarque o autor do Livro d a entender que a realidade humana a parte intrusa da realidade exterior H uma realidade exterior sem os homens feita de sons de formas de cores Mas a intrus o dos homens que quebra a naturalidade das coisas exteriores que traz as defini es que obriga aos conceitos e afoga com obriga es A sensa
214. do interior rematerealizando se enquanto realidade interior poss vel compreender este processo se entendermos que o autor do Livro conhece a experi ncia dos caf s e dos restaurantes por mais que n o seja por influ ncia directa de Fernando Pessoa talvez ele lhe fale desse ambiente ou o leve mesmo com ele Seja como for a influ ncia dessa realidade exterior parada sobretudo essa realidade dos caf s est muito presente no Livro E compreende se se voltarmos ao in cio da nossa an lise pois o autor do Livro sobretudo um homem que observa os outros que repara neles passando os seus olhos para al m da pr pria exist ncia f sica dos seus corpos Tal como em outros momentos anteriores esta confus o ou paradoxo entre fora e dentro exterior e interior sentido e percepcionado ser e n o ser est no centro de todas as discuss es filos ficas importantes do Livro A grande luta desta teoria po tica essa mesma a da liberta o do homem para uma liberdade suprema a liberdade de n o ter de existir Haver alguma liberdade maior do que essa Antes s sonhada como poss vel acess vel pela morte e mesmo assim com d vidas enormes agora esta possibilidade passa a ser sonhada em vida pela anula o do mundo exterior em favor do mundo interior O que o autor do Livro persegue em ess ncia imposs vel Ele persegue a s ntese dos opostos o homem que existe mas que n o existe que vive mas que renega vid
215. do olha e descreve o que v perde a sensa o de estar vivo H nesta express o uma inteira filosofia que nos levar muitas p ginas a explorar Ou no nosso caso talvez por incapacidade apropriada de s ntese todo um volume Este um homem na beira da n o exist ncia Em parte por desespero em parte por escolha E nenhum fragmento ilustra melhor isso do que um em que ele nos descreve os sons da casa enquanto tenta dormir 155 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 218 Do outro lado de mim l para tr s de onde jazo o sil ncio da casa toca no infinito Oi o cair o tempo gota a gota e nenhuma gota que cai se ouve cair Oprime me fisicamente o cora o f sico a mem ria reduzida a nada de tudo quanto foi ou fui Sinto a cabe a materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra A pr pria orelha sobre a qual me encosto grava se me matematicamente contra o c rebro Pestanejo de cansa o e as minhas pestanas fazem um som pequen ssimo inaud vel na brancura sens vel da almofada erguida Respiro suspirando e a minha respira o acontece n o minha Sofro sem sentir nem pensar O rel gio da casa lugar certo l ao fundo das coisas soa a meia hora seca e nula Tudo tanto tudo t o fundo tudo t o negro e t o frio 156 No texto que reproduzimos em cima toda a exist ncia humana estranha O homem existe enquanto intruso
216. do presente com a gana e a fome de quem n o tem outra casa E como nas nossas sensa es e sobretudo nos nossos sonhos sensa es in teis apenas que encontramos um presente que n o lembra nem o passado nem o futuro sorrimos nossa vida interior e desinteressamo nos com uma sonol ncia altiva da realidade quantitativa das coisas N o somos talvez muito diferentes daqueles que pela vida s pensam em divertir se Mas o sol da nossa preocupa o ego sta est no ocaso e em cores de crep sculo e contradi o que o nosso hedonismo se arrefecei 242 P ginas ntimas e de Auto Interpreta o tica 1966 156 Convalescemos Em geral somos criaturas que n o aprendemos nenhuma arte ou of cio nem sequer o de gozar a vida Estranhos a conv vios demorados aborrecemo nos em geral dos maiores amigos depois de estarmos com eles meia hora s ansiamos por os ver quando pensamos em v los e as melhores horas em que os acompanhamos s o aquelas em que apenas sonhamos que estamos com eles N o sei se isto indica pouca amizade Porventura n o indica O que certo que as coisas que mais amamos ou julgamos amar s t m o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas N o gostamos de espect culos Desprezamos actores e dan armos Todo o espect culo a imita o degradada do que havia apenas de sonhar se Indiferentes n o de origem mas por uma educa o dos sentimentos que v rias experi ncias dolorosas em
217. do vinho Pode se compreender de certo modo como o consumo do vinho uma alternativa compreens o da realidade ou melhor uma oposi o a essa compreens o Beber alhear se da compreens o do mundo porque estar s brio estar b bado das sensa es do mundo h a troca de uma bebedeira exterior por uma bebedeira interior Claramente o alc ol uma grande met fora uma enorme alegoria dentro do pr prio Livro Tanto que a sensa o de euforia e t dio intenso a que o alc ol submete a carne tamb m ela transposta para o mundo interior em que a mesma sensa o alcan ada apenas pelas palavras pelas express es po ticas da grande prosa livre do Livro O melhor exemplo disso o seguinte fragmento 119 Livro do Desasocego Tomo I p g 336 120 Livro do Desasocego Tomo I p g 178 21 Livro do Desasocego Tomo I p g 195 122 Livro do Desasocego Tomo I p g 261 O lcool das grandes palavras e das largas frases que como ondas erguem a respira o do seu ritmo e se desfazem sorrindo na ironia das cobras da espuma na magnific ncia triste das penumbras 123 O desfazamento entre um mundo exterior feito de corpos de presen as e de actos e um mundo interior em que tudo se dilui para uma inexist ncia de individualidade e identidade apenas aparente uma ilus o Na verdade h uma continuidade entre os dois mundos e a ponte que os une chama se sonho a sonhar a realidade que ela se dilui para o mun
218. doxalmente ele n o continue a cumprir os deveres sociais a que diz renunciar 8 Aqui consideramos que ser necess rio apurar uma atitude moral un voca mas bem poss vel que como noutros exemplos na sua obra Fernando Pessoa n o tenha escolhido apenas uma atitude moral para o Livro do Desassossego A sua obra muito rica nestas contradi es que ele pr prio alimentava em virtude da utilidade em argumentar posi es opostas em busca de todas as respostas poss veis Livro do Desasocego Tomo I p g 62 O t dio Trabalho bastante Cumpro o que os moralistas da ac o chamariam o meu dever social Cumpro esse dever ou essa sorte sem grande esfor o nem not vel desintelig ncia Mas umas vezes em pleno trabalho outras vezes no pleno descanso que segundo os mesmos moralistas mere o e me deve ser grato transborda se me a alma de um fel de in rcia e estou cansado n o da obra ou do repouso mas de mim 82 Parece que o seu cumprimento dos deveres sociais se insere numa esfera de estrito cumprimento da pr pria rotina di ria sobretudo no mbito da vida de escrit rio S o actos estritamente necess rios para que a sua vida decorra normalmente sem que ele possa chamar aten o para si pr prio e para a sua diferen a perante todos os outros em seu redor Ser ent o que podemos falar de um corpo moral tal como fal mos num corpo est tico De certa forma parece nos que o corpo moral se incorpo
219. drone que sem vontade pr pria caminha na vida exterior de maneira automatizada e sem ambi es desejos ou emo es Mas veremos que n o bem assim verdade que a vida exterior esvaziada de conte do til em favor do sonho mas o autor do Livro continua a viv la e tem nela diversas emo es marcadas que d o origem a personagens coloridas e marcantes Vejamos alguns exemplos de seguida O Patr o Vasques A imagem do patr o do escrit rio ganha grande import ncia no Livro do Desassossego porque porventura aquela imagem que se encontra mais oposta do funcion rio sem ambi es que o autor do Livro pretende ser tamb m por outro lado uma imagem algo paternal o que faz algum sentido para um homem que ao que se sabe n o teve pai fala s de um tio que o trouxe para Lisboa 36 o que se entende por exemplo na maneira como Jo o Botelho retratou Bernardo Soares no recente Filme do Desassossego 87 Meu pai que vivia longe matou se quando eu tinha tr s anos e nunca o conheci Cf Livro do Desasocego Tomo I p g 361 Sabemos quem era o Patr o Vasques O seu nome era Carlos Eug nio Moitinho de Almeida dono da Casa Moitinho de Almeida na Rua da Prata localizada na baixa da cidade de Lisboa Fernando Pessoa tinha a chave do escrit rio e uma sala s dele o que lhe permitia quase tratar o escrit rio como casa longe de casa A sua caracteriza o do patr o muito curiosa po
220. e o pr prio Livro que escreve Antecipando respostas diremos que esta filosofia se apresenta como uma forma de revolucionar n o s a descri o e compreens o do mundo exterior como tamb m do pr prio mundo interior por isso uma filosofia de 360 que n o renuncia a nada e que n o tem limites Mas e esta a primeira das perguntas essenciais como pode uma filosofia assim existir sobretudo depois do fim da Segunda Guerra Mundial sobejamente conhecida a tend ncia positivista que dominou o pensamento Europeu sobretudo nos anos 40 e 50 e que serviu de base para o surgimento de duas correntes derivativas uma corrente que exponenciou o papel da l gica e da matem tica Filosofia Anal tica e outra que limitada pela l gica negou a exist ncia da metaf sica o Existencialismo N o iremos para j colocar a filosofia do autor do Livro em perspectiva relativamente a estas grandes correntes filos ficas mas esse ser o nosso objectivo final nesta Parte IV que concluir o nosso estudo do Livro do Desassossego Tinhamos desde o in cio precisamente o dever de extrair da prosa do Livro esta filosofia e n o por isso de espantar que terminemos desta forma o nosso pr prio volume Come aremos por dizer que o autor do Livro n o tem em determinado ponto outra op o sen o come ar a aplicar na sua pr pria vida a filosofia que nasceu talvez inconscientemente da sua escrita requintada Houve como j vimos
221. e afasta da realidade e que a v numa perspectiva totalizante pelo uso da est tica Aproximamo nos dos limites da ac o no sonho para tal iremos enumerar as maneiras de bem sonhar que s o amplamente elencadas no Livro do Desassossego Mas antes disso teremos de falar na ltima consequ ncia da atitude de sonhar a inac o Este conceito n o aparece muitas vezes no Livro Ali s aparece apenas tr s vezes mas n o podemos deixar de salientar a sua import ncia para o desenrolar pr cognitivo das maneiras de bem sonhar A consci ncia da inac o enquanto ac o do ntimo ser de primordial import ncia para o sonhador e o autor do Livro dar lhe o devido relevo mesmo que muitas das vezes n o a mencione directamente Este por assim dizer um dos segredos das maneiras de bem sonhar escondido que est por detr s das regras de vida que temos vindo a enunciar Em que consiste a inac o Nada como citar o pr prio Livro do Desassossego A inac o consola de tudo N o agir d nos tudo Imaginar tudo desde que n o tenda para agir Ningu m pode ser rei do mundo sen o em sonho E cada um de n s se deveras se conhece quer ser rei do mundo N o ser pensando o trono N o querer desejando a coroa Temos o que abdicamos porque o conservamos sonhado intacto eternamente luz do sol que n o h ou da lua que n o pode haver 210 N o h que confundir necessariamente sonho com imagina
222. e ao mesmo tempo a sua alma Ou seja ele segue uma estrutura filos fica no seu m todo mas n o cartesianamente rigorosa porque poeticamente este m todo nunca poder ser rigorosamente medido e planificado Vejamos por m que outras regras sucessivas aparecem neste texto cr ptico Pulveriza te em outros tu Desconhece as tuas sensa es Substitui tudo pelo sonho Sonha te para te encontrares l livros 1 grau Torna f sicas as sensa es do sonho construindo romances para ti mesmo 2 grau Torna depois essas sensa es completamente mentais 3 grau Sonha depois tudo em ti s o teu pr prio deus 219 Livro do Desasocego Tomo I p g 63 66 datado presumivelmente de 1914 220 O pasmo que me causa a minha capacidade para a ang stia N o sendo de natureza um metaf sico tenho passado dias de ang stia aguda f sica mesmo com a indecis o dos problemas metaf sicos e religiosos Vi depressa que o que eu tinha por a solu o do problema religioso era resolver um problema emotivo em termos da raz o Cf Op Cit p g 158 Inesperadamente pelo menos para n s este texto parece descrever um processo de forma o da heteron mia De que outra forma se explicaria o sonho ser descrito em forma de evolu o do ser para o mundo para o ser outro atrav s da pulveriza o do eu Agora mais do que apenas uma maneira de fugir realidade e dor o sonho transforma se em algo verdadeiramente operativo criado
223. e labirintos e meias conclus es permite achar por outro lado um dinamismo estranho incorporado na tal filosofia n o existencialista trata se de assumir que esta filosofia em si mesma semelhante ao mundo que quer descrever igualmente absurda e incompleta talvez at falsa porque nunca poder ser aplicada a todos os homens da mesma forma O ritualismo esse revela se na forma repetitiva como aparecem determinados t tulos e temas e tamb m na forma como a pr pria cren a do autor do Livro fundada em bases de distancia o ele parece acreditar num Deus distante num Deus calado Choro sobre as minhas p ginas imperfeitas mas os vindouros se as lerem sentir o mais com o meu choro do que sentiriam com a perfei o se eu a conseguisse que me privaria de chorar e portanto at de escrever O perfeito n o se manifesta O santo chora e humano Deus est calado Por isso podemos amar o santo mas n o podemos amar a Deus 255 Ora se Deus n o interv m n o se manifesta porque perfeito n o podemos acreditar verdadeiramente nele ou ent o acreditamos nele enquanto coisa distante e imaterial Os homens precisam de cren as pr ximas O autor do Livro vai acreditar ent o num relojoeiro que tendo constru do o mecanismo universal da realidade se distanciou dela deixando o homem s cren as mais imediatas sobretudo s cren as ritualistas e quotidianas 255 Livro do Desasocego Tomo p g 501 V Crie
224. e que se quisesse ser visto apenas aceitaria ser visto como o tal Major Algu m que passou pela vida como se a vida n o tivesse passado por ele AP NDICE O Livro mais triste de Portugal Ant nio Nobre figura cimeira do simbolismo Portugu s escreveu o seguinte no seu livro S publicado em 1892 Ouvi estes carmes que eu compus no ex lio Ouvi os v s todos meus bons Portugueses Pelo cair das folhas o melhor dos meses Mas tende cautela n o vos fa a mal Que o livro mais triste que h em Portugal Fernando Pessoa por sua vez em 1913 escreve no Livro do Desassossego E este livro um gemido Escrito ele j o S n o o livro mais triste que h em Portugal 271 Qual a semelhan a entre os dois livros e os dois autores Naturalmente surge nos pelo menos uma ambos apenas publicam um livro escrito em Portugu s em vida Ant nio Nobre publica S Fernando Pessoa publica Mensagem Ambos os livros tiveram impactos diferenciados O livro de Nobre apesar de recebido com alguma desconfian a e at com cr ticas negativas acaba por ser reeditado e traz lhe alguma celebridade de que gozar at sua morte prematura em 1900 Nobre ao lado de Ces rio Verde e Camilo Pessanha acabar por influenciar decisivamente toda a gera o modernista que ergue Pessoa como mestre Pessoa que mal ter tempo para ver a recep o de Mensagem no meio cultural do tempo Que mais os aproxima De certa forma Nobre est
225. e se claro obscuramente se obscuro confusamente se confuso compreender que a gram tica um instrumento e n o uma lei Suponhamos que vejo diante de n s uma rapariga de modos masculinos Um ente humano vulgar dir dela Aquela rapariga parece um rapaz Um outro ente humano vulgar j mais pr ximo da consci ncia de que falar dizer dir dela Aquela rapariga um rapaz Outro ainda igualmente consciente dos deveres da express o mas mais animado do afecto pela concis o que a lux ria do pensamento dir dela Aquele rapaz Eu direi Aquela rapaz violando a mais elementar das regras da gram tica que manda que haja 2 Livro do Desasocego Tomo I p g 323 4 Este fragmento foi publicado na revista Descobrimento n 3 em 1931 o que lhe poder dar um car cter de certa import ncia pois n o foram muitos os fragmentos do Livro a serem publicados em vida de Fernando Pessoa Supomos que parte da import ncia tem a ver com o assunto do texto anal tico e sobre literatura A t tulo de curiosidade diga se que o texto aparece na revista com a autoria de Fernando Pessoa Por Fernando Pessoa embora no t tulo se leia Do Livro do Desasocego composto por Bernardo Soares ajudante de guarda livros na cidade de Lisboa Ser Pessoa apenas quem introduz a figura de Bernardo Soares aos leitores ou querer ele dizer que escreve o Livro atrav s de Bernardo Soares A segunda hip te
226. e sensibilidade fazer sen o inventar os seus amigos ou quando menos os seus companheiros de esp rito Para al m da constru o de uma realidade alternativa que se torna a realidade principal o autor do Livro vai passar a construir tamb m os amigos e companheiros que sente nunca poderem existir no mundo exterior Assim no final do processo tudo est realizado no sonho e agora o sonho pode finalmente substituir se a tudo E este um processo indolor Certamente que n o Prova disso mesmo uma passagem ex gua deixada sem data que diz o seguinte Maneira de bem sonhar Com este sonhar tudo tudo na vida te far sofreres mais Ser a tua cruz 223 O sonhador passa a sofrer muito mais na sua vida quotidiana simplesmente porque continua a existir e a exist ncia uma coisa f sica O mundo anula se sua volta mas continua a ser o seu mundo um s tio onde nada pode ser alcan ado mas onde tudo aparece num primeiro grau como algo que pode teoreticamente ainda ser seu Sonhar tudo simultaneamente um caminho de salva o e de perdi o Salva o porque a fuga eficiente do desespero e da dor de viver perdi o porque afasta o sonhador de toda a realidade e esse afastamento a realiza o de que a felicidade ser imposs vel de alcan ar no mundo exterior Sonhar tudo por isso mesmo um sacrif cio uma cruz E sacrificar a vida comum a vida que todos conhecemos como nica vida poss vel em
227. e a vida imaginada Se a realidade a decad ncia do sonho o sonho tamb m pode ser visto como a decad ncia da realidade A solu o parcial passa pela pr pria ignor ncia do que viver Nenhum de n s tem nome ou exist ncia plaus vel Se pud ssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo rir amos sem d vida de nos julgarmos vivos O frescor aquecido do len ol acaricia nos a ti como a mim decerto os p s que se sentem um ao outro nus Desenganemo nos meu amor da vida e dos seus modos Fujamos a sermos n s N o tiremos do dedo o anel m gico que chama mexendo se lhe pelas fadas do sil ncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento A morte da vida tamb m a morte de todas as sensa es da vida at ltima sensa o simultaneamente a sensa o fundadora que a da pr pria identidade pessoal Porque deixa de haver a necessidade de viver a vida exterior deixa de haver a necessidade de sabermos quem somos realmente O afastamento do homem tamb m um afastamento de si pr prio enquanto personagem exterior do mundo A nossa vida era toda a vida O nosso amor era o perfume do amor Viv amos horas imposs veis cheias de sermos n s E isto porque sab amos com toda a carne da nossa carne que n o ramos uma realidade ramos impessoais ocos de n s outra coisa qualquer ramos aquela paisagem esfumada em consci ncia de si pr pria E assim como ela era duas de real
228. e aceder aqui a algumas imagens do mesmo e partilhar da mesma vis o de Pessoa 185 Cf Supra Parte I I 186 Livro do Desasocego Tomo I p g 396 agressivamente frontal se a verdade n o pode ser acedida no mundo exterior esse mundo exterior deve ser desmarcarado enquanto um mundo falso ou um mundo fingido Tal como o homem representa um papel na natureza a pr pria natureza poder estar a representar um papel porque se apresenta apenas na forma em que n s a tentamos perceber Ou seja a verdade limita se pela maneira como a percepcionamos e esse erro ou pelo menos a consci ncia dele essencial para reformular a maneira como olhamos para a pr pria natureza A consequ ncia imediata desta maneira de olhar para o mundo uma crescente aliena o N voa ou fumo Subia da terra ou descia do c u N o se sabia era mais como uma doen a do ar que uma descida ou uma emana o Por vezes parecia mais uma doen a dos olhos do que uma realidade da natureza Nada era definido nem o indefinido Por isso apetecia chamar fumo n voa por ela n o parecer n voa ou perguntar se era n voa ou fumo por nada se perceber do que era O mesmo calor do ar colaborava na d vida N o era calor nem frio nem fresco parecia compor a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor Dir se ia deveras que uma n voa fria aos olhos era quente ao tacto como se tacto e vista fossem dois modos sens veis do me
229. e alinhamento de quotidianos O que quer isto dizer Que verdade esta que uma pel cula n o erra Que certeza esta que uma lente fria documenta Quem sou para que seja assim Voc ficou muito bem diz de repente o Moreira E depois virando se para o caixeiro de pra a mesmo a carinha dele hein E o caixeiro de pra a concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo Quando o Moreira que afinal se chamava mesmo Moreira e existia lhe diz que ele tinha ficado bem na fotografia confirmado logo de seguida pelo caixeiro de pra a o seu espanto redobrado Como podem os outros reconhec lo na fotografia quando ele pr prio n o se reconhece Este um problema verdadeiramente ontol gico Ele n o se v na fotografia porque nela est apenas o seu corpo est tico N o est ele 75 Livro do Desasocego Tomo I p g 235 6 XI Deus bom mas o diabo tamb m n o mau rever t tulo porque n o est no LD Num dos textos mais divertidos do Livro do Desassossego o autor prescreve conselhos s mulheres mal casadas E diz o seguinte Ser imoral n o vale a pena porque diminui aos olhos dos outros a vossa personalidade ou a banaliza Ser imoral dentro de si cercada do m ximo respeito alheio Ser esposa e m e corporeamente virginal e dedicada e ter por m contactos carnais inexplic veis com todos os homens da vizinhan a desde os merceeiros at aos eis o que maior sabor
230. e ao m ximo dela N o se subordinar a nada nem a um homem nem a um amor nem a uma ideia ter aquela independ ncia long nqua que consiste em n o crer na verdade nem se a houvesse na utilidade do conhecimento dela tal o estado em que parece me deve decorrer para consigo mesma a vida ntima intelectual dos que n o vivem sem pensar Pertencer eis a banalidade Credo ideal mulher ou profiss o tudo isso a cela e as algemas Ser estar livre A mesma ambi o se v o orgulho e paix o um fardo n o nos orgulhar amos se compreend ssemos que um cordel pelo qual nos puxam N o nem liga es connosco Livres de n s como dos outros contemplativos sem xtase pensadores sem conclus o viveremos libertos de Deus o pequeno intervalo que a distrac o dos algozes concede ao nosso xtase na parada Temos amanh a guilhotina Se a n o tiv ssemos amanh t la amos depois de amanh Passeemos ao sol o repouso antes do fim ignorantes 116 Livro do Desasocego Tomo I p g 94 17 Livro do Desasocego Tomo I p g 223 voluntariamente dos prop sitos e dos perseguimentos O sol dourar nossas frontes sem rugas e a brisa ter frescura para quem deixar de esperar 18 118 Livro do Desasocego Tomo I p g 282 XV Se um homem escreve bem s quando est b bado dir lhe ei embebede se Um dos outros aspectos do mundo exterior que contamina o Livro tem a ver com a bebida De certa maneira
231. e aproxima da teoria do Livro de abandono da vida exterior em favor de uma vida sonhada Sobretudo se nos lembrarmos daquele outro famoso princ pio budista Basta pensares para te tornares naquilo em que pensas A mente tudo N s tornamo nos naquilo em que pensamos Esta paz de esp rito portanto uma paz interior uma paz sonhada que depois se realiza no exterior Ora o Livro traz nos uma teoria mais avan ada que n o necessita do mundo exterior dizendo nos que essa paz se realiza no pr prio interior da mente humana N o podemos deixar de identificar a paz de esp rito com a pr pria felicidade sobretudo no caso de Fernando Pessoa evidente a sua necessidade de buscar uma vida mais tranquila mais realizada de acordo com os princ pios que ele queria estabelecer para si pr prio a incapacidade de a realizar exteriormente que o leva a imaginar a realiza o interior mas ele ver esse infort nio apenas como uma maneira de o Destino o guiar precisamente nessa direc o pedindo lhe um alto sacrif cio em retorno de uma grande revela o Chegados fase em que estabelecemos a import ncia pelo menos inicial do corpo est tico devemos passar de seguida a reflectir sobre o pr prio significado da escolha da poesia enquanto linguagem filos fica ferramenta de explana o desta nova proposta de realidade bi partida 9 Livro do Desasocego Tomo I p g 107 IX em um mundo civiliz
232. e at mesmo literiariamente o consumo de alc ol tendia a ser romantizado pelos escritores da viragem do s culo Mas a posi o do autor do Livro em continuidade com a posi o do seu demiurgo distinta pois apresenta nos a bebida enquanto potenciador do acto da escrita Se um homem escreve bem s quando est b bado dir lhe ei embebede se E se ele me disser que o seu f gado sofre com isso respondo o que o seu f gado E uma coisa morta que vive enquanto voc vive e os poemas que escrever vivem sem enquanto O consumo de alc ol algo que normalmente associamos a Fernando Pessoa e esse consumo habitual passa tamb m pelas p ginas do Livro Hoje como me oprimisse a sensa o do corpo aquela ang stia antiga que por vezes extravasa n o comi bem nem bebi o costume no restaurante ou casa de pasto em cuja sobreloja baseio a continua o da minha exist ncia E como ao sair eu o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou se para mim e disse At logo sr Soares e desejo as melhoras 120 Se o criado nota que o poeta deixou metade da garrafa estranha e deseja lhe as melhoras ligando a sua sa de ao consumo inteiro da garrafa Como se a garrafa vazia constitui se uma liga o imediata a uma normalidade quotidiana que quebrada indicaria um rasgo na sa de individual certo que h uma tentativa de abstrair o alc ol dessa necessidade sist mica como por exemplo na pasagem seguinte S
233. e cada vez mais da realidade plena para a realidade imbu da de sensa es interiores at poder atingir finalmente uma realidade plenamente imaginada IV Na tarde em que escrevo o dia de chuva parou Uma alegria do ar fresca de mais contra a pele O dia vai acabando n o em cinzento mas em azul p lido Um azul vago reflecte se mesmo nas pedras das ruas D i viver mas de longe Sentir n o importa Acende se uma ou outra montra Em uma outra janela alta h gente que v acabarem o trabalho O mendigo que ro a por mim pasmaria se me conhecesse No azul menos p lido e menos azul que se espelha nos pr dios entardece um pouco mais a hora indefinida Cai leve fim do dia certo em que os que cr em e erram se engrenam no trabalho do costume e t m na sua pr pria dor a felicidade da inconsci ncia Cai leve onda de luz que cessa melancolia da tarde in til bruma sem n voa que entra no meu cora o Cai leve suave indefinida palidez L cida e azul da tarde aqu tica leve suave triste sobre a terra simples e fria Cai leve cinza invis vel monotonia magoada t dio sem torpor 45 Vimos como progressivamente a vis o do mundo exterior de maneira bel ssima transporta para fragmentos po ticos a vis o projectada de sentimentos interior e simultaneamente uma forma de dar concreta exist ncia a uma teoria filos fica muito elaborada Cada vez que o autor do Livro aborda a descri o do mundo exterior normalmen
234. e costas para os espelhos Sempre que podem sentam se defronte do espelho Falam connosco e namoram se de olhos a si mesmos Por vezes como nos namoros distraem se da conversa Fui lhes sempre simp tico porque a minha avers o adulta pelo meu aspecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas Assim e eles de instinto o reconheciam tratando me sempre bem eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna Podemos argumentar que a vis o est tica na filosofia do Livro n o tem sen o uma base emocional de repulsa pelo pr prio aspecto pessoal uma avers o naturalmente baseada numa falta de auto estima com liga es a traumas de inf ncia que o levaram a isolar se dentro de si mesmo verdade mas como j referimos in meras vezes o sofrimento pessoal do poeta leva o a descobertas inusitadas em outros campos e nem tudo se explica por esse mesmo sofrimento A descoberta de uma filosofia que ultrapassa os obst culos da filosofia anal tica metaf sica n o se pode simplesmente atribuir a traumas de inf ncia A vertente est tica dessa filosofia embora necessariamente baseada num fundo traum tico evoluiu enquanto ideia pelo trabalho efectuado pelo autor do Livro sobre essa mesma ideia inicial E essa ideia colocada na grande m quina filos fica que o Livro ocupa agora o seu lugar por m rito pr prio e n o apenas porque nasceu de um eventual trauma 261 Livro do
235. e de quem o compreende e ama O sublime nele humilde o orgulho ing nuo e h um sabor de inf ncia triste no mais adulto horror do seu t dio e das suas desesperan as N o o encontramos sen o entre o desfolhar das rosas e nos jardins desertos Os seus bra os esqueceram a alegria do gesto e o seu sorriso o rumor de uma festa long nqua em que nada de n s toma parte salvo a imagina o Dos seus versos n o se tira felizmente ensinamento nenhum Ro a rente a muros nocturnos a desgra a das suas emo es Esconde se de alheios olhos o pr prio esplendor do seu desespero s vezes entre o princ pio e o fim de um seu verso intercala se um cansa o um encolher de ombros uma ang stia ao mundo O ex rcito dos seus sentimentos perdeu as bandeiras numa batalha que nunca ousou travar As suas ternuras amuadas por si pr prio as suas pequenas corridas de crian a mal ousada at aos port es da quinta para retroceder esperando que ningu m houvesse visto as suas medita es no limiar e as guas correntes no nosso ouvido a longa convalescen a febril ainda por todos os sentidos e as tardes os tanques 271 Livro do Desasocego Tomo p g 29 da quinta os caminhos onde o vento j n o ergue a poeira o regresso de romarias as f rias que se desmancham t bua a t bua e o guardar nas gavetas secretas das cartas que nunca se mandaram A que sonhos de que Musa exilada pertenceu aquela vida de Poeta Quando ele n
236. e de se defrontar com as exig ncias do estado ou da sociedade s pr prias exig ncias dos seus instintos ele se furtou Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes Fui o nico que de alguma maneira estive na intimidade dele Mas apesar de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo percebi sempre que ele algu m havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou Agrada me pensar que ainda que ao princ pio isto me doesse quando o notei por fim vendo tudo atrav s do nico crit rio digno de um psic logo fiquei do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si a publica o deste seu livro At nisto curioso descobri lo as circunst ncias pondo ante ele quem do meu car cter lhe pudesse servir lhe foram favor veis 23 8 Livro do Desasocego Tomo I p g 142 19 Todos n s que sonhamos e pensamos somos ajudantes de guarda livros num Armaz m de fazendas ou de outra qualquer fazenda em uma Baixa qualquer Cf Livro do Desasocego Tomo I p g 188 20 Nunca deixarei creio de ser ajudante de guarda livros de um armaz m de fazendas Desejo com uma sinceridade que feroz n o passar nunca a guarda livros Cf Livro do Desasocego Tomo I p g 280 21 Se houvesse de inscrever no lugar sem letras de resposta a um question rio a que influ ncias liter rias estava grata a forma o do meu esp
237. e do qual o pr prio autor n o se pretende esconder Ali s ele enfrenta mesmo directamente este sentimento que ele identifica como sendo de alguma artificialidade 141 Livro do Desasocego Tomo I p g 88 90 Parecer a muitos que este meu di rio feito para mim artificial de mais Mas de meu natural ser artificial Com que hei de eu entreter me depois sen o com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais De resto n o cuidadosamente os escrevo E mesmo sem cuidado limador que os agrupo Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada Sou um homem para quem o mundo exterior uma realidade interior Sinto isto n o metafisicamente mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade Anossa frivolidade de ontem hoje uma saudade constante que me r i a vida Sou um homem para quem o mundo exterior uma realidade interior Sinto isto n o metafisicamente mas com os sentidos usuais com que colho a realidade 42 O que esta artificialidade Em certa medida ela aparece porque o autor do Livro se encontra deslocado do pr prio mundo sobre o qual tem de escrever A artificialidade tem a ver com a incapacidade de viver naturalmente num mundo que n o o seu e no qual ele vive apenas por necessidade absoluta de o converter noutra coisa qualquer Sou um homem para quem o mundo exterior uma realidade interior diz ele Esta frase singela sintetiza tudo o que dissemos anteriormente que ele
238. e ele se coloca como um observador absoluto da realidade que analisa Ao se colocar nessa posi o de observador puro que n o age ele sabe estar o mais distante poss vel da realidade Estar nessa posi o estar s no mundo porque Ver estar distante A sua vis o do mundo estilizada e indiferente Fala nos de uma cidade quase como nos falaria de um quadro pendurado numa galeria descrevendo indirectamente aquilo que o artista viu pela primeira vez H que destacar ainda duas express es essenciais Ver claro parar Analisar ser estrangeiro O que quer o autor do Livro dizer com estas duas express es Ver claro parar indica nos que enquanto actor no mundo o homem nunca poder compreender realmente a sua posi o nesse mesmo mundo preciso parar de viver E parar de viver parar para observar Quem vive n o observa realmente mesmo que veja Observar neste sentido estrito ver claramente Por isso que de seguida ele diz que analisar ser estrangeiro n o pertencer mesma mole de pessoas que vive a vida sem consci ncia da mesma Ao observador puro reservado assim um estatuto particular de p rea de algu m que n o pertence a lado nenhum sobretudo perto daquilo que ele quer compreender Trata se portanto de uma posi o essencial para a compreens o racional do mundo mas tamb m uma posi o desconfort vel e ingrata que exige a solid o completa Quem v
239. e esvazia de vida que esvazia a sua exist ncia a sua realidade em favor do sonho Algu m que como indicamos no t tulo a este livro leva uma vida sonhada como se andasse pelo mundo mas sem que os seus p s tocassem alguma vez no ch o 17 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 144 HI Suportava aquela vida nula com uma indiferen a de mestre Numa outra passagem dedicada ao pref cio Pessoa escreve O meu conhecimento com Vicente Guedes formou se de um modo inteiramente casual Encontr vamo nos muitas vezes no mesmo restaurante retirado e barato Conhec amo nos de vista desca mos naturalmente no cumprimento silencioso Uma vez que nos encontr mos mesma mesa tendo o acaso proporcionado que troc ssemos duas frases a conversa seguiu se Pass mos a encontrarmo nos ali todos os dias ao almo o e ao jantar Por vezes sa amos juntos depois do jantar e passe vamos um pouco conversando Vicente Guedes suportava aquela vida nula com uma indiferen a de mestre Um estoicismo de fraco alicer ava toda a sua atitude mental A constitui o do seu esp rito condenara o a todas as nsias a do seu destino a abandon las a todas Nunca encontrei alma de quem possu sse tanto Sem ser por um ascetismo qualquer este homem abdicara de todos os fins a que a sua natureza o havia destinado Naturalmente constitu do para a ambi o gozava lentamente o n o ter ambi es nenhumas 8 Na realidade quem esta personagem imaginada
240. e feito de ac o exterior mpeto e procura do outro ou seja fuga activa de si mesmo em busca de uma exterioridade diferente da nossa Dois tr s dias de semelhan a de princ pio de amor Tudo isto vale para o esteta pelas sensa es que lhe causa Avan ar seria entrar no dom nio onde come a o ci me o sofrimento a excita o Nesta antec mara da emo o h toda a suavidade do amor sem a sua profundeza um gozo leve portanto aroma vago de desejos se com isso se perde a grandeza que h na trag dia do amor repare se que para o esteta as trag dias s o coisas interessantes de observar mas inc modas de sofrer O pr prio cultivo da imagina o prejudicado pelo da vida Reina quem n o est entre os vulgares Afinal isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir me que esta teoria n o o que um complexo barulho que fa o aos ouvidos da minha intelig ncia quase para ela n o perceber que no fundo n o h sen o a minha timidez a minha incompet ncia para a vida 48 Livro do Desasocego Tomo l p g 90 Livro do Desasocego Tomo I p g 96 50 Livro do Desasocego Tomo I p g 261 O fragmento anterior sugere que o amor pode ser aceite numa dimens o de antec mara ou seja sem se chegar a realizar ficando apenas na etapa da antecipa o do desejo inicial Na realidade esta uma esp cie de sonho de amor o amor morto de ac o o amor sonhado que nunca se concretiza Ser ape
241. e fosse assim e que tivesse essa atitude H que imagin lo enquanto uma m quina de sonhos Ele aceita o que recebe pelos sentidos mas prefere os sentidos mais nobres rejeitando o toque e o sabor das coisas preferindo o cheiro e a vis o das mesmas O seu distanciamento um distanciamento Reis mas muito mais cuidadoso mais planeado mas simultaneamente intuitivo Acreditar num mundo que apenas existe na medida em que n s o observamos uma posi o aparentemente idealista aproximando se do esse est percipi de Berkeley mas n o pensamos que possa ser reduzida a uma posi o racional sem mais O pensamento do autor do Livro n o no sentido de reduzir toda a realidade ao pensamento declarando o solipismo do eu Ele procura isso sim reduzir toda a realidade a um s mbolo de si pr pria para a reproduzir dentro de si atrav s do sonho Neste sentido a identifica o do ser interior com a realidade exterior um processo de apropria o da realidade exterior Ele n o procura compreender ele procura apropriar A sua Natureza ent o uma Natureza apropri vel N o mais do que apenas outra parte da constru o de um mundo interior igual ao mundo exterior embora ligeiramente fora de fase O seu mundo paralelo interior possui uma Natureza que ele consegue ligar aos seus pr prios sentimentos algo imposs vel na realidade simples exterior Ele n o se perde nas suas sensa es como Campos nem as r
242. e interior um pouco dif cil de conceber para algu m que n o tenha experimentado esta sensa o de aliena o absoluta de tudo deixar de ter import ncia no mundo exterior mas ela plenamente poss vel Existem muitas pessoas para quem ap s situa es de gravidade traum tica diferenciada a realidade exterior deixou de consistir a realidade principal tendo ela trocado o exterior pelo interior tendo se fechado nessa realidade interior sem dar acesso a ningu m a essa mesma condi o Esta pulveriza o da personalidade antes de mais uma dissolu o do ser para o mundo A realidade exterior torna se demasiado dolorosa para ser vivida e medida em que o autor do Livro se recolhe na sua realidade interior ele deixa de se conhecer enquanto um ser que habita o mundo e que necessita de ter uma m scara nesse mesmo mundo N o por acaso que ele a certo ponto fala dos espelhos O homem n o deve poder ver a sua pr pria cara Isso o que h de mais terr vel A Natureza deu lhe o dom de n o a poder ver assim como de n o poder fitar os seus pr prios olhos S na gua dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto E a postura mesmo que tinha de tomar era simb lica Tinha de se curvar de se baixar para cometer a ignom nia de se ver O criador do espelho envenenou a alma humana 221 A no o da nossa pr pria exterioridade aqui levada ao seu extremo simb lico da reflex o no espelho Quanto menos no o tive
243. e modo a extrair a realidade da pr pria realidade como se de facto ele exumasse a realidade tirando lhe a vida e decaindo essa vida em gotas para dentro de si pr prio Este exumar a vida s pode ser feito pelo sonho o sonho retira a realidade da pr pria realidade E s assim se compreende como o pr prio fragmento anterior aparentemente apenas descritivo chamado de sonho triangular O sonho o bisturi que abre a pele da realidade para que lhe tiremos a carne os ossos os rg os para que tudo fique na mesma mas diferente cheio de espuma O resto n o dentro de vasilhas na pir mide do fara mas num sitio irreal bem mais pr ximo o ntimo Poder se falar nesta dimens o numa geografia das sensa es ou uma geografia da consci ncia Ali s estas s o express es usadas pelo autor do Livro em diversos fragmentos e que adivinhAam uma posi o pr xima daquela que n s pr prios tentamos propor que toda a realidade interior feita da mesma mat ria apenas transformada pelo sonho Em ess ncia no entanto tudo igual Todo o mundo igual mas sonhado numa mistura entre fora e dentro ao ponto de que tudo o que percebido pelas sensa es sonhado e tornado interior mesmo que para todos os outros continue a ser exterior H que entender que esta filosofia uma filosofia extremamente individualista mas apenas porque toda a filosofia s pode ser individualist
244. e n s tem nome ou exist ncia plaus vel Se pud ssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo rir amos sem d vida de nos julgarmos vivos O frescor aquecido do len ol acaricia nos a ti como a mim decerto os p s que se sentem um ao outro nus Desenganemo nos meu amor da vida e dos seus modos Fujamos a sermos n s N o tiremos do dedo o anel m gico que chama mexendo se lhe pelas fadas do sil ncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento 1 Escrito em 1913 o fragmento anterior por ser um documento de juventude do autor do Livro ganha ainda mais import ncia Tamb m porque foi um dos poucos fragmentos publicados na revista guia Importante sobretudo porque desenha desde muito cedo a imagem de um homem separado da realidade exterior mas que n o renuncia ao elemento feminino embora pare a renunciar ideia cl ssica do amor Ele preconiza uma nova ideia de amor Ainda entre dois seres humanos mas em que um deles imaginado N o necessariamente imaginado desde raiz sem qualquer exist ncia exterior mas pelo menos imaginado a partir da sua exist ncia real para um mundo interior Ou seja quem ama imagina o seu amor a desenrolar se no seu pr prio mundo interior na sua realidade sonhada mas parte sempre da realidade exterior ela continuar sempre a ser a fonte de todos os sonhos e por isso mesmo n o renunciada por completo N o valer a pena reproduzir todo o fragmento intitulado
245. e nada quer alcan ar a n o ser a anula o de si pr pria O Livro do Desassossego tem sido visto mesmo por muitos estudiosos como uma esp cie de anti livro ou de livro estagnado em si mesmo um di rio l cido Pensamos que ele muito mais do que apenas uma colec o de fragmentos diar sticos simultaneamente depressivos e iluminados Devemos compreender que o tom do Livro o tom da pr pria vida interior de Fernando Pessoa que se agiu na sua pr pria vida no final da mesma chegou terr vel conclus o de que nada de bom advinha dessa ac o Articular o desejo por uma vida desapaixonada e culta ao relento das ideias um desejo verdadeiramente sincero de algu m cansado de falhar e sobretudo cansado de existir O Livro um acto romanceado de desist ncia sim mas tamb m um acto planeado de desist ncia n o um suspiro mas um plano intencional Como se mata a vida Atrav s do sacr ficio da ac o matando a ac o que o autor do Livro consegue matar a import ncia do exterior E substituindo a ac o aparece como intermedi rio o t dio N o o t dio que substitui directamente a ac o mas ele age como ferramente para a aniquila o da ac o Progressivamente atrav s de uma atitude de t dio perante as coisas o autor do Livro desinteressa se da ac o compreende a futilidade de querer o mesmo dizer entende a falsidade do mundo e a impossibilidade do acesso verdade no exterior
246. e nos ensina a negar a viva em favor da verdade da vida sonhada precisamente em linha com o que acabamos de anunciar Vive a tua vida N o sejas vivido por ela H nesta pequena frase um complexo entendimento do processo humano O autor do Livro considera que nenhum de n s vive realmente que apenas somos vividos pela vida que pensamos levar Viver realmente negar a pr pria vida e assumir uma verdade interior perante a impossibilidade da verdade exterior preciso entender tudo isto na posi o do indiv duo do solit rio A vida um acto primeiro e depois um acto social izante algo que apenas decorre em comunidade em partilha com os outros a vida por isso um acto deliberado social izante Quando deixamos de agir e deixamos de compartilhar a vida com os outros o que acontece vida em si mesma A resposta bvia ela continua a ocorrer n s conseguimos v la da nossa posi o isolada O pr prio facto da vida n o parar quando n s paramos na vida suficiente para o autor do Livro colocar a vida enquanto coisa estranha ao ind viduo que a vive Trata se de um processo estranho pr pria exist ncia humana que toma essa exist ncia e lhe d um significado apenas se essa exist ncia se relaciona com outras em comunidade A vida enquanto fen meno comunit rio anula se a si mesma quando observada desde fora porque se revela vida apenas enquanto houver partilha entre quem a vive O que aconteceria
247. e o campo da cidade bem verdade que existem diversas passagens que comparam as duas realidades mas a preocupa o subjacente parece antes dirigir se a compreender a continuidade entre o campo e a cidade Isto importante na medida em que o autor do Livro essencialmente um homem da cidade que ocasionalmente sai da cidade e acha nessa sa da sentimentos de grande n vel contrastante Por outro lado a assump o da realidade do campo na cidade tamb m uma opera o de proximidade de familiaridade Muitas das vezes a no o do campo na cidade invocada enquanto ferramenta de compreens o do caos citadino em favor da simplicidade campesina No texto que reproduzimos em cima vis vel essa compara o simplificada na medida em que o autor do Livro nos compara o despertar da cidade com o despertar do campo Segundo ele o despertar da cidade mais enternecedor simplesmente porque mais complexo no campo o dia nasce e nada mais parece acontecer enquanto que na cidade o nascer do dia vem agregado com um certo sentimento de mist rio e inesperado Esta compara o entre campo e cidade n o inocente O autor do Livro considera se um citadino tamb m porque a cidade uma implementa o intelectual que se sobrep e ao campo que constru da pelo homem sobre a natureza e enquanto constru o intelectual ela pode e deve mesmo ser pensada por quem a observa Todos os seus textos sobre
248. e quando muda o seu sonho age no seu mundo interior que imaginado a partir da realidade exterior A sua atitude fora de si pr prio nula mas apenas no sentido em que ele n o ter desejos posses ou sequer o desejo de posse A anula o do mundo exterior n o nada de novo o Budismo prop e esta solu o h mil nios mas a diferen a fundamental que o autor do Livro pretende anular o mundo exterior n o para alcan ar um vazio de pensamento mas antes para atingir um pensamento pleno sem o mundo exterior Em rigor ele um ermita dentro da cidade um Buda que continua a viver a sua vida exterior como se nada se passasse pois tudo acontece dentro do seu pensamento dentro da sua mente Sonhar o mundo poder ser entendido assim como um passo mais al m do pensamento do mundo E pensar o mundo para o transformar em sonho interior compreendendo o desta forma No sentido em que compreender aqui dar uma utilidade ao mundo Em rela o ac o j vimos como o autor do Livro desenha para si mesmo uma rotina ideal uma vida sem ambi es e sem amigos que o deixa plenamente desligado da realidade exterior esta atitude mon stica exterior que lhe permite exponenciar a import ncia do mundo interior Mas ele continua a viver nele continua a ter um emprego a relacionar se se bem que superficialmente com os outros N o podemos deixar de identificar aqui a pr pria vida de Fernando Pessoa nem Pessoa poderia falar
249. e transforma esse desespero esse afastamento Que tenho eu a ver com a vida no princ pio de um grande plano alternativo o plano da constru o da sua pr pria realidade interior Uma realidade que ter tudo a ver com ele pois ele pr prio XIV O despertar de uma cidade seja entre n voa ou de outro modo sempre para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os campos Renasce muito mais h muito mais que esperar quando em vez de s dourar primeiro de luz obscura depois de luz h mida mais tarde de ouro luminoso as 6 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 311 relvas os relevos dos arbustos as palmas das m os das folhas o sol multiplica os seus poss veis efeitos nas janelas nos muros nos telhados nas janelas tanto nos muros cores diferentes nos telhados tons v rios grande manh diversa a tantas realidades diversas Uma aurora no campo faz me bem a aurora na cidade bem e mal e por isso me faz mais que bem Sim porque a esperan a maior que me traz tem como todas as esperan as aquele travo long nquo e saudoso de n o ser realidade A manh do campo existe a manh da cidade promete Uma faz viver a outra faz pensar E eu hei de sempre sentir como os grandes malditos que mais vale pensar que viver 177 Curiosamente e em oposi o por exemplo a Alberto Caeiro e mesmo a Ricardo Reis a vis o da natureza no autor do Livro distancia se da preocupa o em diferenciar terminalment
250. ealidade exterior da cidade com a interposi o dos sons humanos intrusos menores na pera maior que se desenrola entre o eu e o natureza Natureza aqui entenda se toda a Natureza sem excep o e n o apenas aquela Natureza de Caeiro a dita Natureza natural Esta s ntese serve para demonstrar tamb m o rid culo da pr pria figura humana Ele n o tem pejo em usar se a si pr prio enquanto demonstrador activo desse rid culo na medida em que nos descreve abundantemente a sua atitude perante a realidade exterior Os homens entre si n o se apercebem das suas pr prias atitudes Tal apenas parece surgir quando as atitudes acontecem solitariamente por isso que ele percorre a avenida do quarto curto em passos largos e decididos cumprindo com o devaneio in til um sonho igual aos de toda a gente ele resume se a todos simbolizando os matando os transformando os em algo que j n o existe sen o apenas na sua pr pria realidade interior Todas estas observa es s o incrivelmente importantes e simultaneamente mortais Ao descrever a realidade exterior enquanto realidade distante e fria o autor do Livro toma uma posi o em nome de todos os homens Ele a humanidade E enquanto humanidade ele toma a decis o solene de recusar continuar a existir O seu t dio existencial muito mais do que apenas um t dio uma cessa o de existir um expirar profundo que n o traz um inspirar posterior Ele quan
251. ealidade simb lica Dizer que ele acabaria sem esta dimens o era o mesmo que dizer que ele n o abre a consci ncia a novos factos Trata se precisamente de um problema de consci ncia de pensamento abstracto 81 de notar ainda neste mesmo texto a no o de moralidade que aparece subitamente Embora n o a estranhemos dentro de uma leitura globalizante do Livro n o poderemos deixar de destacar a forma intensamente fria como ela nos apresentada a sua moral acaba por se resumir a um laisser faire a um n o intervencionismo que vai de m o dada com a tal no o de transeunto de tudo A realidade passa lhe literalmente ao lado e ele faz os poss veis por intervir o menos poss vel nela para se tornar ao m ximo uma coisa fora da realidade imanente Se Caeiro tinha pena dos m sticos por pensarem demasiado na realidade o autor do Livro encontra se na peculiar posi o de ser mais Caeiro que Caeiro na medida em que na sua opini o devemos ter pena ou mesmo abomina los porque eles acreditam sinceramente que devem e podem influenciar outras pessoas e mesmo o mundo Qualquer atitude activa no mundo deplor vel na medida em que o mundo n o nosso apenas o mundo que imaginamos o nosso mundo e o nico mundo onde devemos esperar agir At mesmo as suas mem rias mais intensas as da inf ncia s o exteriorizadas por completo Ele diz mesmo os negritos s o como sempre nossos N o tenho saudades sen o lit
252. ealidade sorridente e triste Todo o mist rio do mundo desce at ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua Ah como as coisas quotidianas ro am mist rios por n s Como superf cie que a luz toca desta vida complexa de humanos a Hora sorriso incerto sobe aos l bios do Mist rio Que moderno que tudo isto soa E no fundo t o antigo t o oculto t o tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto 36 Numa fase inicial do Livro anos 1910 15 o autor tende a escrever descri es menos desligadas do seu corpo f sico Tende igualmente a colocar se expressamente enquanto observador que relata aquilo que observa sem que lhe seja ainda intuitivo retirar se de imediato da cena para que exista apenas aquilo que ele escreve as suas sensa es Neste sentido poderemos falar de um per odo de adapta o ou de evolu o desta teoria filos fica porque ao longo do tempo os textos que cont m descri es elaboradas v o deixar de contrar com a presen a expressa do seu narrador enquanto figura f sica No fragmento que reproduzimos em cima com data presum vel de 1913 vemos um exemplo claro disto mesmo Do terra o deste caf olho tremulamente para a vida diz o autor do Livro H uma depend ncia f sica que se cola descri o propriamente dita que ainda demasiado intelectualizada e por isso mesmo demasiadamente dependente do corpo f sico de quem a escreve o eu que escreve e n o o eu que perc
253. ealidade tem certamente o efeito de nos imaginarmos a n s pr prios enquanto maiores do que a pr pria realidade Por efeito da maneira como o autor do Livro se retira da vida passando a imagin la todos os seus sonhos passam a ser superiores pr pria vida que os sustenta A realidade exterior compara se palidamente realidade interior muito mais rica e variada Interiormente ele um vencedor em tudo porque todas as ideias s o poss veis nenhum sonho demasiado grande para falhar E o confronto de tudo isto com a realidade exterior pode tornar se esmagadoramente cruel E do alto da majestade de todos os sonhos ajudante de guarda livros na cidade de Lisboa Claro que h que aceitar a inevitabilidade desta sensa o de estranheza o que ele chama de majestade sombria de esplendor desconhecido O sonhador opera na solid o e no desconhecimento dos outros precisamente este afastamento que o permite ser um sonhador e qualquer experi ncia de aproxima o se pode tornar desastrosa para esse prop sito necess rio que ele persista mesmo que isso lhe traga um grande sofrimento Ele entende que esse sofrimento adv m simplesmente de ele ser em apar ncia como os outros e habituado como eles a ter apenas uma vida exterior Torna se claro que esta vida de sonhador tamb m uma vida de mart rio Pelo menos enquanto o sonhador n o assume em si mesmo o sil ncio que apregoa na sua escrita do sonho Este sil ncio por m
254. ectos podem existir sem espa o s enquanto ideias no sonho trata se de uma invers o completa da realidade em pensamento Claro que o pensamento continuar a n o poder existir sem realidade imanente mas de certa forma toda a exist ncia poder perder o seu significado a sua import ncia O que passar a importar realmente o sonho a idealiza o do real Na nossa opini o trata se de uma mudan a paradigm tica na forma de ver a realidade indo muito al m de todas as correntes filos ficas do seu tempo O existencialismo renegou de certa maneira as categorias plat nicas a metaf sica em favor do refor o da energia vital mas trazendo ao mesmo tempo uma no o de homem condenado a ser livre e simultaneamente condenado a um mundo absurdo que ele nunca iria compreender Ora o Livro parece apresentar uma solu o j p s existencialista Aqui nos sugerido que um homem com vida nula com uma vida plenamente sonhada n o precisa das categorias plat nicas das ideias porque as incorpora em si mesmo no seu sonho mas incorpora ao lado delas tamb m tudo o resto toda a exist ncia O mundo para ele n o absurdo mesmo que o seja porque toda a sua vida est dentro do seu sonho e ele o senhor absoluto do seu sonho ele o sonhador um homem de ac o dentro do seu sonho um verdadeiro e pr prio imperador ou mesmo Deus de si mesmo demasiado cedo para avaliar a gravidade destes princ pios mas ainda muito
255. eduz ao essencial como em Caeiro Ele olha para as sensa es como uma ferramente para transportar para dentro de si pr prio a realidade exterior Tudo o que percepcionado sobretudo o que percepcionado de maneira nobre pode ser incorporado em sonho num mundo interior numa outra realidade mim tica mas essencialmente replicada da realidade percebida Haver sempre uma confus o entre este mundo interior e a realidade imanente Isto deve se ao facto do autor do Livro n o viver inteiramente em sonho Isso seria imposs vel porque o sonho n o lhe permite uma exist ncia corp rea o pr prio sonho ref m da realidade exterior mas 138 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 66 7 apenas na medida da sua estrita sobreviv ncia No entanto a recorrente identifica o entre dentro e fora ocorre devido a esta depend ncia que no entanto se verificar menos e menos medida em que o poeta percorre a sua experi ncia atrav s dos anos Veremos que nos textos mais tardios haver cada vez mais a distin o entre a sensa o pura e o sentimento puro como dois l quidos de densidade diferente dentro do mesmo recipiente v treo Eis outro exemplo de um texto descritivo confuso de juventude Sonho triangular A luz tornara se de um amarelo exageradamente lento de um amarelo sujo de lividez Haviam crescido os intervalos entre as coisas e os sons mais espa ados de uma maneira nova davam se desligadamente
256. eis Sofro principalmente do mal de poder sofrer Falta me qualquer coisa que n o desejo e sofro por isso n o ser propriamente sofrer O cais a tarde a maresia entram todos e entram juntos na composi o da minha ang stia As flautas dos pastores imposs veis n o s o mais suaves que o n o haver aqui flautas e isso lembrar mas Os id lios long nquos ao p de riachos doem me esta hora an loga por dentro A figura do autor do Livro junto do rio Tejo naquela grande pra a a maior de Lisboa que acaba precisamente onde a gua come a convida a sentimentos de fronteira entre a realidade e o sonho da realidade Se ele se isola no pensamento das coisas e tamb m na medita o das coisas a sua coloca o precisamente nessa fronteira entre o rio fluido incerto em mudan a e a cidade fixa rotineira sempre igual S o claras as for as que se debatem dentro dele entre a impaci ncia ligada vontade de agir e a in rcia ligada inac o A sua ang stia feita sobretudo desse desajustamento entre ser e pensar que ele equilibra em vez de deixar a balan a da vida pender definitivamente para um ou outro lado A grande trag dia do Livro mesmo este desencontro entre a vida e o homem entre o desejo de felicidade e a impossibilidade de concretizar os desejos humanos por mais simples este estado de insatisfa o horrendo e completo que leva o autor do Livro a desistir da vida em favor do sonho Ele assume em
257. elas Considero o texto anterior de suprema import ncia para conhecermos o ntimo deste homem H que ver que ele sonha como todos n s com a liberta o das suas obriga es Mas de seguida ele sabe claramente que ao libertar se delas seria apenas para se enredar noutras diferentes Despiria um trajo para vestir outro Todos temos o patr o Vasques diz ele O s mbolo do Vasques apresenta se com grande dimens o por todo o Livro enquanto elemento opressor mas igualmente inspirador O Vasques 26 Livro do Desasocego Tomo I p g 154 2 Livro do Desasocego Tomo I p g 191 92 acaba por representar quase a humanidade m dia aquele homem sadio agrad vel de vez em quando brusco mas sem lado de dentro Ou seja algu m que na maior parte do tempo est completamente insconsciente da vida o contr rio do seu empregado que o observa desde longe Dentro do absurdo da vida compreens vel que Pessoa escolha para quem o seu fil sofo consumado sim porque Mora era mais te rico e apenas nos chegou em rascunho uma profiss o menor Como se essa profiss o n o o definisse porque em ltima inst ncia nenhuma profiss o define o homem sobretudo o homem tocado pelo g nio Certamente era nisso que Pessoa acreditava ou queria acreditar olhando para o seu pr prio fracasso exterior Seja como for a profiss o menor ao autor do Livro simboliza o seu compromisso pela aceita o nobre do destino
258. ele aborda um dos fen menos intrinsecamente exteriores e sociais o amor Amo com o olhar e nem com a fantasia Porque nada fantasio dessa figura que me prende N o me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decerto n o tem de mais para dizer N o me interessa saber quem que faz que pensa a criatura que me d para ver o seu aspecto exterior Para mim uma criatura n o tem alma A alma s com ela mesma Assim vivo em vis o pura o exterior animado das coisas e dos seres indiferente como um deus de outro mundo ao conte do esp rito deles Aprofundo o ser pr prio s em extens o e quando anseio a profundeza em mim e no meu conceito das coisas que a procuro Que pode dar me o conhecimento pessoal da criatura que assim amo em d cor N o uma desilus o porque como nela s amo o aspecto e nada dela fantasio a sua estupidez ou mediocridade nada tira porque eu n o esperava nada sen o o aspecto que n o tinha que esperar e o aspecto persiste Mas o conhecimento pessoal nocivo porque in til e o in til material nocivo sempre Saber o nome da criatura para qu E a primeira coisa que apresentado a ela fico sabendo O conhecimento pessoal precisa ser tamb m de liberdade de contempla o a que o meu g nero de amar deseja N o podemos fitar contemplar em liberdade quem conhecemos pessoalmente O que sup rfluo a menos para o artista porque perturbando o diminui o efeito O
259. em contraposi o com a sua pr pria vida N o h prolongamentos evidentes entre o dentro e o fora mas antes uma dura oposi o entre o dia e a noite levando para o campo de an lise os meta significados dessas mesmas palavras no seu vocabul rio particular N o se trata de uma codifica o lingu stica elaborada apenas compreens vel para quem leia toda a obra Pessoana mas devemos insistir que a compreens o destes textos s pode ser feita em conjunto com os outros que comp em o pr prio Livro do Desassossego que escrito numa linguagem muito particular e particularmente filos fica Qual o desejo do autor do Livro Na impossibilidade de renunciar ao dia em favor da noite talvez dormir de dia Dormir ser long nquo sem o saber estar distante esquecer com o pr prio corpo ter a liberdade de ser inconsciente um ref gio de lago esquecido estagnado entre frondes rvores nos vastos afastamentos das florestas Ter a liberdade de ser inconsciente O que isso sen o usufruir do pr prio sonho enquanto acordado Na verdade este princ pio um princ pio fundador da sua filosofia o desejo extremo de nos abstrairmos dos nossos pr prios corpos da realidade exterior em proveito da forma o de uma nova realidade imaginada Como dormir simboliza a morte do dia dormir de dia simboliza o triunfo do sonho na realidade VII Sim vejo nitidamente com a clareza com que os rel mpagos da raz o destacam do
260. encialistas diziam era que a vida era absurda precisamente por ter um fim definitivo para al m do qual ningu m vislumbrava nada sen o o vazio o nada A pr pria obra capital do maior dos existencialistas Jean Paul Sartre intitulada precisamente Ser e Nada ilustra bem este obsess o com esta vertente ontol gica da exist ncia O autor do Livro tem plena consci ncia disto quando escreve por a vida ser absurda que aceitando que tudo passa mais vale sonhar a vida Claro que o sonho ele pr prio n o pode ser eterno Mas ao menos o sonho d ao homem que sonha o alcance a uma vida potencialmente melhor sua vida e n o vida que o vive a ele A experi ncia directa o subterf gio ou o esconderijo daqueles que s o desprovidos de imagina o Lendo os riscos que correu o ca ador de tigres tenho quanto de riscos valeu a pena ter salvo o do mesmo risco que tanto n o valeu a pena ter que passou Os homens de ac o s o os escravos involunt rios dos homens de entendimento As coisas n o valem sen o na interpreta o delas Uns pois criam coisas para que os outros transmudando as em significa o as tornem vidas Narrar criar pois viver apenas ser vivido 2 Aqui o narrar bem pode ser um sin nimo de sonhar Deste modo dando preponder ncia total ao sonho o autor do Livro renega ac o Os homens de ac o s o os escrevos involunt rios dos homens de entendimento escreve ele
261. enhora do Sil ncio Neste fragmento que na realidade se desdobra em v rios o autor do Livro imagina novamente uma figura feminina e concretiza muitas das ideias que s o vislumbradas no texto Na Floresta do Alheamento nomeadamente o esvaziamento do conte do f sico da mulher o sonho do sexo e do amor o contacto f sico ntimo mas n o sexual a concep o de uma ideia de mulher semelhan a da m e ou do arqu tipo feminino primordial que incorrupt vel e imut vel Tu s do sexo das formas sonhadas do sexo nulo das figuras Mero perfil s vezes mera atitude outras vezes outras gesto lento apenas s momentos atitudes espiritualizadas em minhas Nenhum fasc nio do sexo se subentende no meu sonhar te sob a tua veste vaga de madona dos sil ncios interiores Os teus seios n o s o dos que se pudesse pensar em beijar se O teu corpo todo ele carne alma mas n o alma corpo A mat ria da tua carne n o espiritual mas esp rito s a mulher anterior Queda escultura ainda daquele barro que para so O meu horror s mulheres reais que t m sexo a estrada por onde eu fui ao teu encontro As da terra que para serem t m de suportar o peso movedi o de um homem quem as pode amar que n o se lhe desfolhe o amor na antevis o do prazer que serve o sexo Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela uma mulher noutra posi o de c pula Quem n o se enoja de ter m e por te
262. ento N o h forma mais crua de denegrir o sentimento amor do que qualific lo de sexual E isto que em certo modo o autor do Livro tenta fazer para recusar a necessidade do mesmo Quando acabar isto tudo estas ruas onde arrasto a minha mis ria e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as m os da noite por entre os meus farrapos Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afei o As vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar Mas o vento arrasta se pela rua fora e as folhas caem no passeio Ergo os olhos e vejo as estrelas que n o t m sentido nenhum E de tudo isto fico apenas eu uma pobre crian a abandonada que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos Tenho frio de mais Estou t o cansado no meu abandono Vai buscar Vento a minha M e Leva me na Noite para a casa que n o conheci Torna a dar me Sil ncio imenso a minha ama e o meu ber o e a minha can o com que eu dormia 8 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 192 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 277 Mas por outro lado ele muitas vezes clama por esse amor que nunca teve Amor em diversas formas desde logo o amor maternal que mais tarde se reflecte no amor por uma mulher Nunca pretendi ser sen o um sonhador A quem me falou de viver nunca prestei aten o Pertenci sempre ao que n o est onde estou e ao que
263. epciona Claramente este eu t m ainda uma necessidade de se afirmar na realidade imanente e apenas concebe a realidade enquanto oposi o e n o continuidade sua pr pria exist ncia f sica E uma oposi o entre o eu e os outros e n o necessariamente uma oposi o entre o interior e o exterior O querer adivinhar significados na realidade que se observa n o confirm la enquanto continua o de um mundo interior j presente de antem o Antes se nota que o observador est perdido na afirma o do seu papel no mundo ele pergunta mesmo sobre as suas aspira es perante o mundo sua volta H apenas a relevar que ele se sente j um estranho perante o mundo exterior e este distanciamento que lhe permitir a cria o desse tal mundo interior contraposto mas igualmente rico Se quis ssemos comparar este texto descritivo de juventude a outros mais tardios ver amos que essa compara o teria de pender a balan a para os ltimos nos quais j n o encontramos uma preocupa o doentia em querer perceber onde o t dio muito mais profundo invadindo tudo e esvaziando tudo de significado 6 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 20 fragmento com data presumida de 1913 Z O t dio que o autor do Livro vive na sua juventude apenas um t dio introdut rio momentos passageiros em que ele ao pensar a realidade exterior se desloca para uma perspectiva mais alta em rela o a t
264. epois que as ltimas chuvas passaram para o sul e s ficou o vento que as varreu regressou aos mont es da cidade a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendurada a saltar nas cordas esticadas por paus m dios nas janelas altas dos pr dios de todas as cores Tamb m fiquei contente porque existo Sa de casa para um grande fim que era afinal chegar a horas ao escrit rio Mas neste dia a pr pria compuls o da vida participava daquela outra boa compuls o que faz o sol vir nas horas do almanaque conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra Senti me feliz por n o poder sentir me infeliz Desci a rua descansadamente cheio de certeza porque enfim o escrit rio conhecido a gente conhecida nele eram certezas N o admira que me sentisse livre sem saber de qu Nos cestos poisados beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender sob o sol eram de um amarelo grande Contento me afinal com muito pouco o ter cessado a chuva o haver um sol bom neste Sul feliz bananas mais amarelas por terem n doas negras a gente que as vende porque fala os passeios da Rua da Prata o Tejo ao fundo azul esverdeado a ouro todo este recanto dom stico do sistema do Universo Vir o dia em que n o veja isto mais em que me sobreviver o as bananas da orla do passeio e as vozes das vendedeiras solertes e os jornais do dia que o pequeno estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua Bem sei que as banana
265. equenos recados incomodam no profundamente De qualquer viagem ainda que pequena regresso como de um sono cheio de sonhos uma confus o t rpida com as sensa es coladas umas s outras b bado do que vi evidente que existe aqui uma perspectiva completamente diferente das viagens Para qu viajar com o corpo se podemos viajar com imagina o Mesmo a viagem f sica transformada em viagem mental imbuindo de sonhos at o movimento real exterior colando as sensa es umas s outras O esp rito viaja atrav s da mat ria e se assim podemos viajar apenas contemplativamente pensando sonhando Julgo que Fernando Pessoa prova ele mesmo desta realidade de um homem que nunca saindo de Lisboa na sua idade adulta chegou a Lisboa definitivamente com 17 anos consegue escrever uma obra t o vasta como a de um escritor que tivesse viajado por todo o mundo em busca de inspira o As suas viagens foram sempre espirituais atrav s de livros e sobretudo atrav s da sua pr pria imagina o Essa mesma imagina o que lhe tinha dado j desde tenra idade as primeiras personalidades liter rias distintas de si pr prio Seja como for a viagem passa a ser cristalizada tamb m ela transformada em s mbolo Desta vez em s mbolo do movimento da ac o E este s mbolo que transformado subtilmente pelo autor do Livro porque ele o manipula no sentido de o alimentar com diferentes conte dos singulares 38 Cf
266. er parte do caos para o compreender Fernando Pessoa n o estranho a este tipo de desafios embora o desafio do Livro seja aquele desafio mais alto mais filos fico relacionado com o pr pro ser o desafio de existir e de n o existir Guardemos na mem ria esta primeira refer ncia n o exist ncia pois voltaremos a ela mais tarde Por agora e olhando ainda para o desejo de fuga podermos dizer que esse desejo n o verdadeiramente sincero mas ainda um efeito do autor do Livro ter de continuar a existir Talvez haja afinal no pr prio Livro um processo m nimo fases distintas do progresso em direc o a uma solu o final que retire toda e qualquer ang stia e que em ess ncia se incorpora num sil ncio absoluto como nas fases finais de Caeiro Reis e Campos Embora a escrita do Livro possa servir de catalizador aos sonhos como j vimos tamb m deveremos desde j indicar que a pr pria ac o da escrita uma ac o e por isso oposta ao sonho que deca quando se torna ac o como veremos quando falarmos mais sobre este conceito dentro da perspectiva do Livro No fragmento anterior que inclui este desejo de fuga o pr prio autor do Livro nos diz que a ang stia da fuga na realidade uma ilus o porque ele nunca poder fugir de si pr prio Fala se ent o e sobretudo de um descontentamento com origens interiores um n o estar satisfeito interior que se manisfesta numa ang stia exterior Mas mais do que iss
267. erariamente Lembro a minha inf ncia com l grimas mas s o l grimas r tmicas onde j se prepara a prosa Lembro a como uma coisa externa e atrav s de coisas externas lembro s as coisas externas Isto refor a ainda mais o que temos vindo a dizer que o Livro se funda numa divis o singular entre fora e dentro entre interioridade e exterioridade N o uma divis o f cil de fazer em certos pontos pois como j vimos poder haver uma sobreposi o entre realidade interior e realidade exterior sobretudo na forma como ele constr i a no o de realidade interior mas podemos tom la por certa Quanto s emo es ligadas mem ria elas s o tamb m tornadas exteriores para que se terminem todas as liga es com o mundo real Aqui a prosa serve de filtro para esta opera o s o l grimas r tmicas onde j se prepara a prosa diz o autor do Livro como que esclarecendo que a mem ria n o tem de residir enquanto coisa interior Tamb m o amor que uma clara amea a de liga o do mundo exterior negado na medida em que ele afirma categoricamente nunca amei ningu m 182 H entre o homem que sente e a realidade sentida um grande abismo como h um enorme abismo entre os pr prios homens Desconhecemos a realidade como nos desconhecemos uns aos outros e nos desconhecemos a n s pr prios 181 Provavelmente o Livro poder ser lido de duas maneiras 1 por aqueles que apenas reflectem no sen
268. erer dizer que tudo o que n o ele n o lhe pode pertencer tudo lhe estranho porque em nada ele pode ter influ ncia directa importante Veja se a compara o que ele faz com Amiel o tamb m conhecido diarista do Journal Intime apelidando o de sonhador d bil quando diz que a paisagem um estado de alma Ele diz isso precisamente porque essa uma vis o simplista da realidade a vis o de algu m que apenas observa o exterior e o qualifica de acordo com uma sensa o A paisagem s por si n o pode ser 183 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 390 um estado de alma porque exterior Tudo o que exterior n o nosso No sentido estrito apenas as paisagens interiores s o estados de alma porque apenas elas nos pertencem por completo Penso que o autor do Livro comete inicialmente este tipo de erro nos seus textos de misturar os estados de alma interiores com as paisagens exteriores mas chegado a esta fase ele parece esquecer a sua pr pria obra de juventude observando uma paisagem propriamente dita que ele chega a estas conclus es O seu olhar lan ado desde o miradouro de S o Pedro de Alc ntara de onde parte o elevador da Gl ria 184 para a grande cidade a espalhar se pela baixa at ao Rio Tejo a vis o avassaladora do exterior que o faz pensar no seu pr prio significado e como ele se relaciona com essa vis o Ele d se como pouco importante e prefere se mantido nessa insignific ncia
269. escrever nem para fazer arte mesmo Escrevo porque esse o fim o requinte supremo o requinte temperamentalmente il gico da minha cultura de estados de alma Se pego numa sensa o minha e a desfio at poder com ela tecer lhe a realidade interior a que eu chamo ou A Floresta do Alheamento ou a Viagem Nunca Feita acreditai que o fa o n o para que a prosa soe l cida e tr mula ou mesmo para que eu goze com a prosa ainda que mais isso quero mais esse requinte final ajunto como um cair belo de pano sobre os meus cen rios sonhados mas para que d completa exterioridade ao que interior para que assim realize o irrealiz vel conjugue o contradit rio e tornando o sonho exterior lhe d o seu m ximo poder de puro sonho estagnador de vida que sou burilador de inexactid es pajem doente da minha alma Rainha lendo lhe ao crep sculo n o os poemas que est o no livro aberto sobre os meus joelhos da minha Vida mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio e ela fingindo que ouve enquanto a Tarde l fora n o sei como ou onde dulcifica sobre esta met fora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz t nue e ltima dum misterioso dia espiritual 26 A filosofia do Livro uma filosofia absurda que por isso mesmo n o tem de chegar verdade para ser realizada Basta que enfrentemos o absurdo do mundo com uma filosofia igualmente absurda S assim se entende que a materialidade do sonho seja simultanea
270. espasmar para que d em uma no o concreta e pr xima do que busco dizer O autor do Livro indica como o primeiro passo da educa o sentimental portanto de uma educa o do sentimento do resultado pr ximo das sensa es exteriores o sentir as coisas m nimas extraordin ria e desmedidamente Qual o objectivo desta maximiza o das coisas m nimas sobretudo no confronto com a an lise global do que temos vindo a dizer nesta nossa an lise Julgo que o significado evidente e tem a ver precisamente com o que j dissemos aqui O sonho essencialmente a quebra ou a morte da ac o no mundo e tamb m a cessa o do desejo no mundo Ora no ponto em que a ac o morre e o desejo tamb m morre n o devemos procurar obter nada no mundo exterior Para n o desejarmos o mais deveremos ficar pelo menos a maximiza o aparentemente rid cula das coisas m nimas que nos ir permitir aceder ao controlo de todo o desejo em si mesmo neste sentido que ele depois nos indica alguns exemplos sobretudo o exemplo do tomar uma ch vena de ch e encontrar nesse ritual simples a vol pia extrema que o homem normal s pode encontrar nas grandes alegrias O significado destas pequenas ironias vai para al m dessas mesmas ironias O autor do Livro diz nos que poss vel experimentar as sensa es para al m do que pensamos ser poss vel atrav s de uma exponencia o do m nimo ao m ximo
271. essam como se n o existissem porque o destino delas alheio ao do autor do Livro O destino delas chega mesmo a ser alheio a elas 146 Livro do Desasocego Tomo I p g 163 com transcri o plena no Tomo II p gs 743 46 Curiosamente h neste texto uma diferen a de dois par grafos os dois finais entre a vers o editada em 1929 em A Revista e a que ficou manuscrita originalmente O editor da Edi o Cr tica n o aventa uma explica o para o facto mas n s ousar amos dizer que Fernando Pessoa achou mais pura e s bria a edi o do texto sem os dois par grafos finais um pouco mais ca sticos e menos generalistas Claramente a vis o do Livro do Desassossego que ele pretendia passar ainda em vida era a de um livro iminentemente est tico priviligiando por isso os trechos com grande coer ncia a este n vel sobretudo aqueles em que ele d prefer ncia a grandes arrancadas em prosas e n o entra em pequenos di logos ou frases curtas e mais incisivas pr prias a tal inconsci ncia da vida de que ele tanto fala Tanta esta inconsci ncia que ele descreve o rebuli o dos outros na cidade enquanto salada colectiva da vida Na realidade e para o observador todo o movimento humano absurdo e inconsequente uma verdadeira confus o indistinta em que todos existem sem saberem as suas fun es ou sequer porque existem Apenso devemos deixar um pequeno fragmento que penso poder elucidar melhor os pontos anter
272. esta quest o essencial o que acontece exist ncia f sica do autor do Livro Para come armos referiramos um trecho importante a este respeito que curiosamente e cronologicamente aparece em sequ ncia com os restantes nesta parte II Assim como quer o saibamos quer n o temos todos uma metaf sica assim tamb m quer o queiramos quer n o temos todos uma moral Tenho uma moral muito simples n o fazer a ningu m nem mal nem bem N o fazer a ningu m mal porque n o s reconhe o nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe de que n o me incomodem mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo Vivemos todos neste mundo a bordo de um navio sa do de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem N o fazer bem porque n o sei o que o bem nem se o fa o quando julgo que o fa o Sei eu que males produzo se dou esmola Sei eu que males produzo se educo ou instruo Na d vida abstenho me E acho ainda que auxiliar ou esclarecer em certo modo fazer o mal de intervir na vida alheia A bondade um capricho temperamental n o temos o direito de fazer os outros v timas de nossos caprichos ainda que de humanidade ou de ternura Os benef cios s o coisas que se infligem por isso os abomino friamente Se n o fa o o bem por moral tamb m n o exijo que mo fa am Se adoe o o que mais me pesa que obrigo algu m a trat
273. este ajudante de guarda livros evoluiu ao longo da sua vida que o pr prio livro que escreve Chega no entanto a uma fase em que assume o verdadeiro significado de ter ambi es Para n o descermos aos nossos pr prios olhos basta que nos habituemos a n o ter nem ambi es nem paix es nem desejos nem esperan as nem impulsos nem desassossegos Para conseguir isto lembremo nos sempre que estamos sempre em presen a nossa que nunca estamos s s para que possamos estar vontade E assim dominaremos o ter paix es e ambi es porque paix es e ambi es s o desescudarmo nos n o teremos desejos nem esperan as porque desejos e esperan as s o gestos baixos e deselegantes nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipita o uma indelicadeza para com os olhos dos outros e a impaci ncia sempre uma grosseria O aristocrata aquele que nunca esquece que nunca est s por isso as praxes e os protocolos s o apan gio das aristocracias Interiorizemos o aristocrata Arranquemo lo aos sal es e aos jardins passando o para a nossa alma e para a nossa consci ncia de existirmos Estejamos sempre diante de n s em protocolos e praxes em gestos estudados e para os outros 25 Um dos outros pontos facilmente ignorados tem a ver com a tend ncia ritualista que est presente na vida do autor do Livro Os rituais t m a ver com a assump o de uma realidade que n o pode ser controlada e que sendo absurda deve ser assumida nes
274. este sobretudo pela sua falta de ambi o pelas coisas materiais e quotidianas Al m disso o homem superior nunca se dedica a um objectivo concreto Tr s coisas tem o homem superior que ensinar se a esquecer para que possa gozar no perfeito sil ncio a sua superioridade o rid culo o trabalho e a dedica o 234 muito curioso um ponto em particular se o homem superior n o se dedica vida normal o que faz ele Ele abdica Mas mais do que abdicar ele segue uma rotina est ril J vimos anteriormente neste mesmo estudo que o autor do Livro abdica sim mas n o deixa de viver a sua vida quotidiana n o deixa de ter uma liga o concreta vida real em oposi o sua vida imaginada Esta esterilidade da vida quotidiana apenas quer dizer que ele a esvaziou de significado Ele continua a viv la sim mas n o a vive com objectivos N o pretende evoluir na carreira n o pretende fazer amigos n o quer uma mulher uma fam lia Na verdade como se ele tivesse desistido de viver como se se tivesse tornado um ermita com a importante distin o de que ele continua a viver ele um ermita que n o se isolou na montanha que continuou na cidade A nica atitude digna de um homem superior o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece in til o h bito de uma disciplina que se sabe est ril e o uso fixo de normas de pensamento filos fico e metaf sico cuja import ncia se sente ser nula Persisti
275. favor de uma outra vida irreal imaginada mas complemente nossa completamente individual VI O sonho domina j o vimos todo o Livro do Desasossego a sua chave mestra o que abre e fecha todos os seus significados No entanto o sonho n o o princ pio e o fim do Livro simplesmente porque depois de assumido o seu papel de extrema relev ncia ainda necess rio estabelecer em que medida o sonho se insere na verdadeira praxis do que anunciado meramente em teoria A quest o da praxis t o ou mais importante do que a quest o do m todo Mas como se pratica uma teoria que na sua ess ncia esvazia a vida humana e a torna uma mera m scara de si mesma Penso que esta seja uma quest o essencial sobretudo porque qualquer filosofia de grande magnitude deve poder transpor para a realidade imanente por muito metaf sica que possa ser Como seria de esperar o esclarecimento do que esta praxis feito de maneira po tica por Fernando Pessoa O texto essencial para a compreens o da transposi o ideal real intitula se Na 222 Livro do Desasocego Tomo p g 451 223 Livro do Desasocego Tomo p g 470 Floresta do Alheamento 22 e um texto relativamente recente na historiografia do pr prio Livro do Desassossego O texto muito longo e n o ser necess rio transcrev lo por completo pelo que nos bastar escolher as passagens mais relevantes Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo
276. figura paternal omnipotente e invis vel qual o verdadeiro significado da nossa vida Existem duas vias A de acreditar que as escolhas que fazemos materialmente t m um significado intr nseco que n s constru mos a nossa pr pria realidade dobrando o mundo perante a nossa vontade ou ent o podemos dizer que o mundo nunca se molda realmente aos nossos desejos e que por isso n o podemos acreditar que essa possa ser a nossa nica realidade Em ess ncia todas as vias filos ficas acabam por ser uma fuga do medo de n o termos respostas concretas Mesmos a l gica uma fuga quando nos diz que n o devemos fazer certas perguntas 69 Ver por exemplo a sua escrita autom tica que revela uma grande falta de auto estima sobretudo ligada ao seu aspecto exterior nariz cara etc Livro do Desasocego Tomo I p g 398 porque elas n o fazem sentido dentro da estrutura da linguagem que escolhemos usar A procura da verdade pode ser ela pr pria uma fuga dessa procura como no caso bvio da posi o l gica O que queremos real ar de certo modo a valia inicial de todas as proposi es N o nos caber certamente a discuss o de todas as fraquezas e qualidades desta teoria que Fernando Pessoa apresentou caoticamente aos seus leitores futuros apenas queremos apresent la dentro do poss vel estruturando a tamb m de forma a que ela possa ser entendida pelo n mero m ximo desses mesmos leitores N o abordamos de
277. formada numa outra realidade j interior Esta opera o extraordinariamente passiva embora parece comportar em si mesma um n mero inimagin vel de opera es menores Passiva e superficial visto que n o resulta em nada N o temos certo um conceito de valia que apliquemos obra que produzimos Produzimo la certo para nos distrair por m n o como o preso que tece a palha para se distrair do Destino sen o da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Este transporte da realidade exterior para a realidade interior operada ent o atrav s da contempla o est tica ou melhor pelas sensa es capturadas pelo corpo est tico Nesta fase o autor do Livro n o se refere explicitamente sua realidade interior mas antes fala da nossa intima subst ncia Mas podemos sem mais equiparar ambas as express es enquanto referindo se mesma coisa Por agora devemos refor ar a import ncia dessa interposi o do corpo est tico enquanto receptor e transmissor da realidade mas dando a entender que ele pr prio apenas isso uma ferramenta condutora nada mais nada menos perdendo o corpo f sico toda a import ncia sen o enquanto o recept culo dos sentidos que capturam a realidade para depois ela ser incorporada internamente e transformada pelo sonho Compreende se que a prosa seja o elemento preponderante para que esta transforma o ocorra porque a prosa a forma de
278. gem interior e exterior at que finalmente parece parar mais para o fim da vida e a sua abordagem ac o de viajar simultaneamente necess ria e assustadoras Ele sabe da necessidade da viagem enquanto processo evolutivo mas teme sobretudo o momento da chegada As suas descri es s o tamb m excessivamente lentas e demoradas quase impressionistas sobretudo quanto nos fala das viagens de barco Se em lvaro de Campos ficou a mem ria das viagens de inf ncia de Fernando Pessoa emocionantes mas tamb m imensamente traum ticas no Livro aparecem sobretudo impress es invertidas relativas ao acto de viajar A viagem no Livro transfigura se de uma viagem f sica para uma viagem mental 3 A vida uma viagem experimental feita involuntariamente uma viagem do esp rito atrav s da mat ria e como o esp rito que viaja nele que se vive H por isso almas contemplativas que t m vivido mais intensa mais extensa mais tumultuariamente do que outras que t m vivido externas O resultado tudo O que se sentiu foi o que se viveu Recolhe se t o cansado de um sonho como de um trabalho vis vel Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito Ao longo dos textos do Livro assistimos realidade de um homem que abomina o movimento pelo menos aquele que sai fora da sua rotina di ria do escrit rio das poucas ruas por onde passa e dos restaurantes s vezes tem de viajar aos arredores a servi o e esses p
279. gnificados na pr pria trag dia da vida N o de estranhar que o Livro seja constituido essencialmente por fragmentos porque o acto de reparar tamb m ele um acto fragment rio Um acto que pode muito bem ser praticado por cada um dos leitores do Livro para melhor o puderem compreender Basta terem um peda o de papel lev lo convosco durante um dia e repararem em algo algo que despoleta o pr prio acto de escrita O acto da escrita de um fragmento nascido de algo em que reparamos por ess ncia r pido e muitas das vezes cat rtico Pode haver uma torrente de pensamentos que aproveitam a fresta aberta pela ideia inicial do fragmento Pensamentos esses que n o pens vamos estarem l Esta assim uma escrita torrencial impulsiva que n o pode ser preparada de antem o Recuando um pouco compreendemos como Pessoa apenas escrevia para o Livro quando estava na disposi o certa ou errada depende da perspectiva H outro ponto a considerar quando falamos ainda introdutoriamente sobre a escrita do Livro o ponto de vista do observador enquanto actor da realidade que observa Na f sica qu ntica h um princ pio fascinante chamado princ pio do observador que nos diz que imposs vel observar um fen meno sem o alterar substancialmente O pr prio acto de observar de reparar diria Pessoa modificaria o fen meno que estaria a ser observado tornando imposs vel ao observador ver a real natureza do mesmo Em termo
280. hificar as sensa es Mas Campos depois de tentar o extremo retorna ao essencial dorm ncia das sensa es inf mas do cansa o do t dio O universo n o real esta afirma o da liberdade de deixar de ter de compreender todo o universo Basta que compreendamos as nossas pr prias sensa es individuais dele pois de modo alqu mico o que est em baixo reflecte se no que est em cima a base igual ao topo N o temos por isso de compreender toda a realidade nem tem toda a realidade de se expressar atrav s de sensa es percepcionadas pelo sujeito activo Existe um n mero infinito de realidades individuais o pr prio sonhar intimamente individual e nisso releva a sua principal natureza HI Fal mos do in cio do processo de sonhar a realidade e da forma como o autor do Livro nos leva para uma vis o invidualista desse mesmo processo Devemos agora perceber a import ncia de um dos principais sintomas desse processo o t dio J neste volume distinguimos o t dio do Livro comparativamente ao chamado t dio existencialista 201 Existe todo um c digo lingu stico no Livro do Desassossego que torna desde logo imposs vel abordar esta quest o de uma forma leve e de passagem Mas podemos mesmo resumir em tr s palavras o significado emp rito deste t dio sonho indiferen a est tica 200 Pessoa In dito Livros do Horizonte p g 141 201 Cf Supra p g 90 Na base do t dio est o son
281. ho bom de entender porque assim o acto pensado de deslocar a ac o humana do mundo exterior para o mundo interior que faz nascer no ind viduo a sensa o plena de inutilidade da ac o exterior Essa inutilidade leva inevitavelmente indiferen a trata se de uma indiferen a baseada na consci ncia plena de que n o podemos mudar o mundo Este mudar o mundo tem a ver n o com um desejo idealista mas com o desejo de realmente compreender o mundo para ent o o mudar O autor do Livro diz nos muitas vezes que a falta de compreens o do mundo que torna imposs vel que o possamos mudar ou seja interagir com ele Numa dimens o superior isto tem a ver com a pr pria consci ncia da mentira do mundo ou seja o homem n o conhece o mist rio a verdade e como tal torna se imposs vel saber qual o rumo correcto a tomar ou se existe mesmo algum rumo a ser tomado Perante esta constata o o melhor torna se optar por n o agir no mundo Vemos esta posi o no fragmento seguinte A impossibilidade de agir foi sempre em mim uma mol stia com etiologia metaf sica Fazer um gesto foi sempre para o meu sentimento das coisas uma perturba o um desdobramento no universo exterior mexer me deu me sempre a impress o que n o deixaria intactas as estrelas nem os c us sem mudan as Por isso a import ncia metaf sica do mais pequeno gesto cedo tomou um relevo at nito dentro de mim Adquiri perante agir um escr pulo de
282. i minha vida uma orienta o est tica A pr xis da filosofia que pretendemos extrair do Livro uma pr xis intensamente individual O pr prio autor do Livro refor a variad ssimas vezes este facto Devemos regressar noavemente quest o da est tica e da forma como ela coordena uma filosofia radicalmente individualista com uma vida quotidiana ss preciso entender em que medida o autor do Livro elabora uma nova proposi o em termos de interac o homem mundo Partiremos para essa an lise do seguinte fragmento Nunca encontrei argumentos sen o para a in rcia Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consci ncia sombria da minha in rcia de abdicador Procurar modos de in rcia apostar me a fugir a todo o esfor o quanto a mim a toda a responsabilidade social talhei nessa mat ria de a est tua pensada da minha exist ncia Deixei leituras abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo est tico da vida Do pouco que lia aprendi a extrair s elementos para o sonho Do pouco que presenciava apliquei me a tirar apenas o que se podia em reflexo distante e errado prolongar mais dentro de mim Esforcei me porque todos os meus pensamentos todos os cap tulos quotidianos da minha experi ncia me fornecessem apenas sensa es Criei minha vida uma orienta o est tica E orientei essa est tica para puramente individual Fi la minha apenas Apliquei me depois no decurso procurado do meu hedonismo interior a
283. i que cara um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido Este excerto anterior remete nos visualmente para um dos passeios de el ctrico que Pessoa fazia muitos deles em certa altura da sua vida em conjunto com Oph lia transformavam se em viagens mesmo por outros continentes e nos quais ele se ocupava de se abstrair da sua pr pria condi o para assumir plenamente a condi o de mero observador H outro excerto que mostra essa mesma experi ncia quando ele vai meramente a andar na rua Descendo hoje a Rua Nova do Almada reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim Eram as costas vulgares de um homem qualquer o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte 8 Livro do Desasocego Tomo p g 141 Livro do Desasocego Tomo I p gs 361 62 10 queria ir ao mesmo tempo ndia e a Pombal escrevia Pessoa a Oph lia em carta de 24 9 1929 referindo se s aventuras pseudo er ticas praticadas s escondidas com a sua namorada No l xico das cartas trocadas entre ambos os pombos ou pombinhos eram refer ncias aos seios de Oph lia e a ndia uma refer ncia aos seus genitais ocasional Levava uma pasta velha debaixo do bra o esquerdo e punha no ch o no ritmo de andando um guarda chuva enrolado que trazia pela curva na m o direita Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem Senti nele a ternura que se sente pela comu
284. i com saudade o patr o Vasques o escrit rio da Rua dos Douradores e a monotonia da vida quotidiana ser para mim como a recorda o dos amores que me n o foram advindos ou dos triunfos que n o haveriam de ser meus O patr o Vasques Vejo de l hoje como o vejo hoje de aqui mesmo estatura m dia atarracado grosseiro com limites e afei es franco e astuto brusco e af vel chefe parte o seu dinheiro nas m os cabeludas e lentas com as veias marcadas como pequenos m sculos coloridos o pesco o cheio mas n o gordo as faces coradas e ao mesmo tempo tensas sob a barba escura sempre feita a horas Vejo o vejo os seus gestos de vagar en rgico os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora recebo a perturba o da sua ocasi o em que lhe n o agrado e a minha alma alegra se com o seu sorriso um sorriso amplo e humano como o aplauso de uma multid o Ser talvez porque n o tenho pr ximo de mim figura de mais destaque do que o patr o Vasques que muitas vezes essa figura comum e at ordin ria se me emaranha na intelig ncia e me distrai de mim Creio que h s mbolo Creio ou quase creio que algures em uma vida remota este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que hoje O guarda livros Moreira Em menor grau outras figuras do escrit rio encontram o seu lugar no Livro Entre eles o guarda livros Moreira superior directo do autor do Livro Que de vezes o pr prio sonho f til
285. i qualquer import ncia que a vida exterior possa ter para ele O acto de recusar a exterioridade um acto ca tico e revolucion rio mas apenas para os outros porque para o sujeito esse acto um acto lento e cheio de t dio Viver uma vida desapaixonada e culta ao relento das ideias lendo sonhando e pensando em escrever uma vida suficientemente lenta para estar sempre beira do t dio bastante meditada para se nunca encontrar nele Viver essa vida longe das emo es e dos pensamentos s no pensamento das emo es e na emo o dos pensamentos Estagnar ao sol douradamente como um lago obscuro rodeado de flores Ter na sombra aquela fidalguia da individualidade que consiste em n o insistir para nada com a vida Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores que um vento inc gnito ergue pelo ar da tarde e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso indistinta entre coisas maiores Ser isto com um conhecimento seguro nem alegre nem triste reconhecido ao sol do seu brilho e s estrelas do seu afastamento N o ser mais n o ter mais n o querer mais A m sica do faminto a can o do cego a rel quia do viandante inc gnito as passadas no deserto do camelo vazio sem destino 26 Os homens sempre consideraram essencial agir perante a vida para atingirem os seus objectivos Ora a filosofia do Livro uma filosofia da inac o onde nenhum objectivo deve ser alcan ado Mas como se defende uma vida qu
286. ia Uns inteligentes outros est pidos s o todos igualmente est pidos Uns velhos outros jovens s o da mesma idade Uns homens outros mulheres s o do mesmo sexo que n o existe Este fragmento n o pode deixar de nos lembrar de Ricardo Reis e da forma como aquele heter nimo olhava os outros Havia em Reis um distanciamento maior em rela o aos outros homens como se eles vivessem numa realidade f sica completamente diferente da dele Reis era um ermita de si mesmo enquanto que o autor do Livro embora extremamente solit rio escolheu n o se isolar fisicamente dos outros homens Ele ao contr rio de Reis ou de Caeiro caminha entre eles entre nos lugares mais s rdidos e reais como os escrit rios ou os restaurantes hora de almo o verdade que h nele uma atitude de grande distanciamento mas n o em primeira an lise um distanciamento f sico Este homem junta se a eles para os compreender para olhar para eles e para atrav s deles para tudo o que eles podem significar Esta conviv ncia com o seu objecto de estudo o que demarca o Livro de outras obras de Fernando Pessoa como as Odes de Reis ou o Guardador de Rebanhos de Caeiro Nesses livros os seus autores s o imaginados longe de uma civiliza o que vista enquanto factor de contamina o Eles s o os fundadores da sua pr pria realidade mesmo que tragam conceitos reciclados de outros autores O autor do Livro por seu lado deseja uma re
287. iar da cama onde ignoro me parece o dia de um grande acontecimento meu que n o terei coragem para enfrentar Cada dia se o sinto erguer se do leito das sombras com um cair de roupas da cama pelas ruas e pelas vielas vem chamar me a um tribunal Vou ser julgado em cada hoje que h E o condenado perene que h em mim agarra se ao leito como m e que perdeu e acaricia o travesseiro como se a ama o defendesse dos garotos A sesta feliz do bicho grande sombra de rvores o cansa o fresco do esfarrapado entre a erva alta o torpor do negro na tarde morna e long nqua a del cia do bocejo que pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento fazendo sono o sossego do repouso na cabe a encostando p ante p as portas da janela na alma o afago an nimo de dormir Dormir ser long nquo sem o saber estar distante esquecer com o pr prio corpo ter a liberdade de ser inconsciente um ref gio de lago esquecido estagnado entre frondes rvores nos vastos afastamentos das florestas Um nada com respira o por fora uma morte leve de que se desperta com saudade e frescura um ceder dos tecidos da alma massagem do esquecimento Ah e de novo como o protesto reatado de quem se n o convenceu oi o o alarido brusco da chuva chapinhar no universo aclarado Sinto um frio at aos ossos supostos como se tivesse medo E agachado nulo humano a s s comigo na pouca treva que ainda me resta choro Sim choro choro de solid o e de vid
288. icamente abrupta do mo o Sinto que o poderia matar por me interromper o que eu n o estava pensando Olho o voltando me com um sil ncio cheio de dio escuto antecipadamente numa tens o de homic dio latente a voz que ele vai usar para me dizer qualquer coisa Ele sorri do fundo da casa e d me as boas tardes em voz alta Odeio o como ao universo Tenho os olhos pesados de supor 8 Um outro pormenor interessante a real ar o acto f sico que ocorre e que d passagem do existir ao contemplar No autor do Livro esta passagem intuitiva porque ele quase n o tem vida Mas para quem pretendesse compreender como que ele se coloca nesse estado quase meditativo ele pr prio explica Isola se me o esp rito de metade da mat ria Investigo com a imagina o Ou seja o acto contemplativo como suspeit vamos um acto puro do sonho da imagina o No fragmento anterior vemos como o simples acto de chegar janela se pode transformar num complicado processo filos fico de an lise das coisas em si mesmas Um momento de distra o o que proporciona esse estado de esp rito distra o da vida quotidiana ou melhor a capacidade de sair dessa mesma rotina quotidiana para a distra o Dormir sobre os cotovelos revela que o estado contemplativo se aproxima de um estado de sono efectivo se bem que continuemos acordados sono apenas na medida em que abandonamos o corpo a carne em favor do sonho do esp rito O
289. ico permanente cheio de inquieta o Este estado quer queiramos quer n o um estado de morte para a vida H que recordar aqui uma passagem de um poema de Campos parte de A Passagem das Horas Ali Ali vai a conclus o Ali fechado e selado Ali debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara Vai o que pena como n s Vai o que sentiu como n s Vai o n s Ali sob um pano cru acro e horroroso como uma ab bada de c rcere Ali ali ali E eu 128 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 434 Vejamos como este poema liga perfeitamente com o anterior fragmento do Livro Poderiam mesmo ser os dois a observa o imaginada de um morto dentro do seu caix o A vis o da morte em ambos os textos uma vis o da morte enquanto conclus o enquanto final de alguma coisa Campos sente a de maneira mais intensa e n o consegue pensar para al m do que v J o autor do Livro vai conseguir ir mais al m imaginando uma forma da morte o libertar ainda em vida Ele poder n o acreditar intensamente em Deus parece ter lhe mesmo alguma indiferen a se bem que considere que plaus vel que ele exista 29 mas por outro lado ele acredita intensamente na morte enquanto passo necess rio para uma outra fase uma fase superior do homem uma fase mais nobre do homem A posi o religiosa dele est assim intimamente ligada a essa no o da morte em vida Deus imposs vel de conhecer porque se manifesta apen
290. ico triste A crian a ficou mas emudeceu Vejo como via mas por detr s dos olhos vejo me vendo e s com isto se me obscurece o sol e o verde das rvores velho e as flores murcham antes de aparecidas Sim outrora eu era de aqui hoje a cada paisagem nova para mim que seja regresso estrangeiro h spede e peregrino da sua presenta o forasteiro do que vejo e ou o velho de mim J vi tudo ainda o que nunca vi nem o que nunca verei No meu sangue corre at a menor das paisagens futuras e a ang stia do que terei que ver de novo uma monotonia antecipada para mim Edebru ado ao parapeito gozando do dia sobre o volume v rio da cidade inteira s um pensamento me enche a alma a vontade ntima de morrer de acabar de n o ver mais luz sobre cidade alguma de n o pensar de n o sentir de deixar atr s como um papel de embrulho o curso do sol e dos dias de despir como um traje pesado beira do grande leito o esfor o involunt rio de ser 1 O texto anterior cronologicamente posterior ao que citamos no in cio deste n XVIII releva um pouco do que fal vamos H novamente o afastamento extremo entre o ser que observa e a realidade que observada O observador liga a aurora esperan a mas na realidade n o espera nada est desiludido com a pr pria realidade exterior e n o s com a sua vida dentro da realidade exterior Ele assume que a liga o exterioridade lhe adv m da consci ncia Lembro
291. idade enquanto realidade sonhada Sem a poesia n o haveria nenhuma forma de interpretar esta realidade pois o sujeito est deslocalizado fora do mundo imanente deixando por isso de poder agir sobre ele H que dar forma a uma nova ac o mas uma ac o transcendente uma mera ac o em sonho em suma uma inac o O nosso racioc nio corre o risco de parecer demasiado complexo e isso n o de todo o que pretendemos que ele seja H que entender que h em Pessoa uma grande simplicidade e uma grande complexidade que andam de m o em m o A grande simplicidade a forma como Pessoa foi for ado a deixar o mundo activo para se refugiar no sonho Ele f lo por ser um inadaptado um rf o algu m que nunca chegou a conhecer a normalidade que milh es de seres humanos conhecem sem o saberem Esta condi o torna muitos homens amargos suicidas ausentes mesmo loucos Mas Pessoa porventura protegido pelo seu g nio aproveita de certo modo esta condi o a seu favor Ou pelo menos o que ele pensa ao manipul la sem grande no o do verdadeiro perigo que ela representa para ele A grande complexidade em resumo tudo o que se seguiu aceita o da condi o pelo g nio A obra de Pessoa inegavelmente alqu mica porque uma obra manipulat ria dos elementos constituintes desta condi o desta doen a do abandono da inadapta o da extrema solid o Mas f cil de ver como podemos at con
292. idade que era a ilus o assim ramos n s obscuramente dois nenhum de n s sabendo bem se o outro n o ele pr prio se o incerto outro viveria A idealiza o da realidade torna poss vel a maximiza o dos s mbolos trazidos do exterior A vida no sonho reduzida sua ess ncia e mesmo na falta de fen menos toda a vida O mesmo acontece com todas as sensa es nomeadamente o amor Na falta da exist ncia do ser o ser para o sonho assume em si mesmo todos os significados e potencia todas os s mbolos vivem se por isso horas imposs veis imposs veis no sentido da impossibilidade do sonho se reproduzir na vida real Mas paradoxalmente ou talvez n o nessa impossibilidade que eles eram quem realmente sentiam ser horas cheias de sermos n s Esta cont nua transi o entre real e ideal entre sonho e realidade ou mesmo entre sonho e sonho do sonho marca todos os grandes textos po ticos do Livro e desvendam parcialmente a din mica operativa do sonhador que oscila sempre entre a captura dos s mbolos exteriores e a sua reactualiza o para a realidade imaginada e interior de real ar que o pr prio ser n o escapa a esta opera o O autor do Livro diz expressamente ramos impessoais ocos de n s outra coisa qualquer N o ser nada ent o poder ser tudo poder assumir a pr pria exist ncia de outros s mbolos como se a exist ncia interior pudesse assumir qualquer forma
293. ido em que o centro do mesmo um homem que nega a validade da exist ncia exterior A quest o que resta Pessoa consegui realizar o seu sistema Ao longo das an lises que fizemos de outros heter nimos cheg mos conclus o de que esses heter nimos falharam parcialmente o objectivo global de atingir a verdade O ser tudo de todas as maneiras mais do que um sentimento sensacionalista de arte era um prop sito de filosofia de reunir materialmente as verdades parciais numa nica verdade total porque a maneira de aceder realidade era atrav s das sensa es e a nica forma de aceder de todas as formas 267 Livro do Desasocego Tomo I p g 80 1 268 Na T bua Bibliogr fica publicada em 1928 pela revista Presen a Pessoa diz As obras heter nimas de Fernando Pessoa s o feitas por at agora tr s nomes de gente Alberto Caeiro Ricardo Reis lvaro de Campos Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas Forma cada uma uma esp cie de drama e todas elas juntas formam outro drama realidade era imaginar uma variedade infinita de indiv duos ou pelo menos uma variedade finita que pudesse englobar a infinitude de atitudes perante a materalidade Talvez o fim seja infrut fero e irrealiz vel E certo que o autor do Livro nos sugere que isso mesmo que acontece quando se escreve leia se quando se sonha Porque n o acrediteis que eu escrevo para publicar nem para
294. iente para usar o sonho como uma ferramente de conhecimento Um outro fragmento de 1914 portanto pouco posterior e tamb m o mais longo Um ltimo fragmento muito curto n o est datado Seguindo a ordem da edi o cr tica come aremos a nossa an lise pelo fragmento seguinte Maneira de bem sonhar Adia tudo Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer tamb m amanh Nem mesmo necess rio que se fa a qualquer coisa amanh ou hoje Nunca penses no que vais fazer N o o fa as Vive a tua vida N o sejas vivido por ela Na verdade e no erro no gozo e no mal estar s o teu pr prio ser S poder s fazer isso sonhando porque a tua vida real a tua vida humana aquela que n o tua mas dos outros Assim substituir s o sonho vida e cuidar s apenas em que sonhes com perfei o Em todos os teus actos da vida real desde o de nascer at ao de morrer tu n o ages s agido tu n o vives s vivido apenas Torna te para os outros uma esfinge absurda Fecha te mas sem bater com a porta na tua torre de marfim E a tua torre de marfim s tu pr prio E se algu m te disser que isto falso e absurdo n o o acredites Mas n o acredites tamb m no que eu te digo porque se n o deve acreditar em nada Despreza tudo mas de modo que o desprezar te n o incomode N o te julgues superior ao desprezares A arte do desprezo nobre est nisso 216 O menor dos fragmentos de 1913 traz apenas a
295. im mas por que me preocupa um s mbolo uma raz o O que O patr o Vasques Lembro me j dele no futuro com a saudade que sei que hei de ter ent o Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa fruindo um sossego onde n o farei a obra que n o fa o agora e buscarei para a continuar a n o ter feito desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim Ou estarei internado num asilo de mendicidade feliz da derrota inteira misturado com a ral 88 O filho do patr o Vasques Luis Pedro Moitinho de Almeida veio a publicar um livro em 1985 intitulado Fernando Pessoa no cinquenten rio da sua morte onde revela este facto e outros pormenores interessantes sobre a vida de escrit rio de Pessoa 89 Cf Jos Paulo Cavalcanti Fernando Pessoa uma quase autobiografia p g 306 e segs Record 2011 90 Livro do Desasocego Tomo I p g 382 91 Livro do Desasocego Tomo I p g 248 92 Livro do Desasocego Tomo I p g 352 93 N o claro o porqu da escolha da Rua dos Douradores Mas uma hip tese ser porque Pessoa almo ava regularmente na Casa Pessoa uma casa de pasto localizada nessa rua provavelmente passando l alguns per odos de tempo a escrever Cf Cavalcanti Op Cit p gs 308 9 dos que se julgaram g nios e n o foram mais que mendigos com sonhos junto com a massa an nima dos que n o tiveram poder para vencer nem ren ncia larga para vencer do avesso Seja onde estiver recordare
296. iores A consci ncia da inconsci ncia da vida o mais antigo mart rio intelig ncia 4 claro que o autor do Livro aquele que mais sofre com esta consci ncia da inconsci ncia ele que se martiriza com a maneira como os outros vivem a vida quotidianamente enquanto ele tem de pensar a vida esta incapacidade de viver que o persegue e o coloca fora de fase com o resto da humanidade Debru o me de uma das janelas de sacada do escrit rio abandonado ao meio dia sobre a rua onde a minha distrac o sente movimentos de gente nos olhos e os n o v da dist ncia da medita o Durmo sobre os cotovelos onde o corrim o me d i e sei de nada com um grande prometimento Os pormenores da rua parada onde muitos andam destacam se me com um afastamento mental os caixotes apinhados na carro a os sacos porta do armaz m do outro e na montra mais afastada da mercearia da esquina o vislumbre das garrafas daquele vinho do Porto que sonho que ningu m pode comprar Isola se me o esp rito de metade da mat ria Investigo com a imagina o A gente que passa na rua sempre a mesma que passou h pouco sempre o aspecto flutuante de algu m n doas de movimento vozes de incerteza coisas que passam e n o chegam a acontecer A nota o com a consci ncia dos sentidos antes que com os mesmos sentidos A possibilidade de outras coisas E de repente soa de detr s de mim no escrit rio a vinda metafis
297. is o exterior da sua constru o Ainda mais quando ela foi deixada incompleta Incompleta certo mas apenas em quest es de pormenor porque est tudo l para queira ver Existem conceitos que s o conceitos puros desta filosofia po tica como o t dio a inac o o sonho que poder o ser desenvolvidos mais tarde nesta nossa an lise Mas por agora fica a consci ncia do papel representado pela linguagem po tica neste jogo imenso Sem a prosa po tica n o haveria possibilidade de escapar aos limites da l gica subjacente aos jogos de linguagem Mas atrav s da prosa o investigador pode colocar quest es absurdas que continuam a ser v lidas na l gica da linguagem porque se trata da linguagem po tica que muito mais permite 67 Di rio de 1906 dia 27 de Mar o 68 in Procura da Verdade Oculta 2 Edi o p g 52 Europa Am rica X Nunca tive uma ideia nobre da minha presen a f sica Partindo da import ncia do corpo est tico podemos remodelar a nossa imagem do autor do Livro Ele um homem que est completamente desligado da sua pr pria apar ncia ao ponto de n o se reconhecer em fotografias ou em reflexos Embora este sentimento possa e deva ser estudado tendo em conta o pr prio perfil psicol gico de Fernando Pessoa sabemos bem da sua pr pria avers o ao seu aspecto sobretudo revelada na sua escrita autobiogr fica n o devemos recusar a import ncia deste princ pio en
298. is vel a presen a da mesma mais uma vez a estranh ssima presen a da organiza o das coisas Trata se de uma an lise do real operada em compara o com os princ pios forjados para a sua pr pria realidade interior E curiosamente tamb m uma an lise cruzada com outros princ pios j bem nossos conhecidos os princ pios naturais Ele diz nos que estranho que as coisas tenham esta organiza o sobretudo quando vemos que a Natureza n o a tem pelo menos n o da mesma forma Esta estranheza tem a ver tamb m com a consci ncia das coisas Os outros s o uma presen a ineg vel em toda a obra Pessoana e s o estes outros a base da pr pria estranheza nos seus escritos e na sua vida Esses outros vivem as suas vidas sem sentirem a sensa o de estranheza como meros transmissores de uma doen a mortal que nunca os chega a infectar Reparo no homem e vejo que t o inconsciente como um c o ou um gato diz nos o autor do Livro Na realidade ele est a construir uma separa o entre ele pr prio e os outros entre a sua consci ncia profunda e dolorosas das coisas e a igualmente chocante e profunda insconsci ncia das coisas que os outros possuem A ordem do mundo adv m dessa insconci ncia como um reflexo da humanidade em se organizar Ele adivinha depois a figura de Deus na ordem estranha das coisas uma vis o muito curiosa pois em certa medida Deus est envolvido no mesmo colapso que
299. is na sua condi o de alienado racionalizando o porqu dessa aliena o e procurando dar lhe um sentido uma miss o a ltima op o poderia ser ainda uma op o de derrota absoluta de depress o e suic dio perante uma realidade que rejeita completamente o ser Para o autor do Livro a op o foi claramente a op o de racionalizar a sua condi o 206 Ele existe no mundo exterior mas t o desligado desse mesmo mundo que a realidade exterior se desenrola como um sonho no qual nada verdadeiro H sobretudo a sensa o plena da irrealidade do pr prio corpo da pr pria exist ncia carnal207 Esta irrealidade do ser est intimamente ligada sensa o posterior de t dio pois a inexist ncia de um corpo leva inexist ncia de uma vontade de agir ao t dio em si mesmo Mas onde aparece a est tica A est tica aparece em tudo que tenha a ver com afastamento Aparece no afastamento relativamente figura da mulher avers o aos espelhos ou ent o dimens o espiritual do pr prio trabalho manual ou do movimento f sico O autor do Livro diz a certo ponto que a arte livra nos da sordidez de sermos 208 Poder amos acrescentar que o ideal dele seria projectar para si pr prio uma vida puramente est tica e por isso mesmo plenamente visual sem sordidez absolutamente nenhuma de ser Mas n o por raz es art sticas ou de nobreza superior antes por raz es bastante simples de se afastar da pr pria dor de estar sozinho
300. j n o parte sequer daquilo que observa mas sim algo removido dessa realidade O simples facto de observar remove o instantaneamente Podemos concluir ent o que para um sonhador forte todas as paisagens ser o interiores porque primeiro definidas enquanto estados de alma Sendo assim cumprir o uma fun o por parte de quem as sonha e n o se prestar o apenas a deslocar e a alieanar quem as contempla A atitude do observador da realidade exterior por isto mesmo afirmativa S negando a nossa import ncia no exterior podemos afirmar a nossa import ncia no interior ser a esta atitude existencial que chamaremos de n o existencialismo precisamente pela nega o da import ncia em colocar todo o peso da exist ncia no corpo f sico e na materialidade XVII Na parte final do Livro do Desassossego o autor revela uma posi o definitivamente mais firme no que toda classifica o do mundo exterior sobretudo no que toca oposi o fora dentro Testemunho disso mesmo a passagem seguinte O mundo exterior existe como um actor num palco est l mas outra coisa 86 A percep o do mundo torna se uma quest o importante na filosofia do Livro Em que medida as nossas sensa es s o verdadeiras Em que medida aquilo que percepcionamos nos d acesso a uma faceta sequer da verdade imanente das coisas A quest o da verdade sempre foi importante para a filosofia mas aqui ela abordada de maneira 184 Pode s
301. jovens haviam perdido a cren a em Deus pela mesma raz o que os seus maiores a haviam tido sem saber porqu E ent o porque o esp rito humano tende naturalmente para criticar porque sente e n o porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para suced neo de Deus Perten o por m quela esp cie de homens que est o sempre na margem daquilo a que pertencem nem v em s a multid o de que s o sen o tamb m os grandes espa os que h ao lado Por isso nem abandonei Deus t o amplamente como ele nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improv vel poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Humanidade sendo uma mera ideia biol gica e n o significando mais que a esp cie animal humana n o era mais digna de adora o do que qualquer outra esp cie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivisc ncia dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabe as de animais Assim n o sabendo crer em Deus e n o podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela dist ncia de tudo a que comummente se chama a Decad ncia A Decad ncia a perda total da inconsci ncia porque a inconsci ncia o fundamento da vida O cora o se pudesse pensar pararia A quem como eu assim vivendo n o sabe ter vida que resta sen o como a meus poucos pares a ren ncia por modo e a con
302. l A sua exist ncia exterior enquanto corpo est tico em conclus o de apar ncia extremamente dolorosa e inst vel N o parece haver uma completa aceita o do processo de transforma o que se inevit vel seria talvez a qualquer ponto futuro ainda revers vel Pelo menos a sensa o que fica do que se l acerca deste assunto Que o desejo ltimo um desejo de paz de tranquilidade e que na busca dessa tranquilidade elabora se uma grande filosofia da exist ncia mas que essa filosofia poderia muito bem desabar se o corpo est tico ganhasse subitamente nova import ncia na realidade exterior Ou seja a teoria filos fica n o parece capaz de ganhar consist ncia suficiente para fazer esquecer completamente a exist ncia exterior Talvez seja este ponto de apoio a exist ncia do corpo est tico a zona mais fr gil de todo o sistema filos fico 7 Livro do Desasocego Tomo I p g 324 74 Livro do Desasocego Tomo I p g 314 que Pessoa nos prop e Mas compreensivelmente ele tinha de propor e n o h nenhuma maneira de negarmos a sua import ncia na constru o desse mesmo sistema Nada ilustra melhor este p ndulo fr gil entre fora e dentro do que a reac o do autor do Livro fotografia que lhe tiram no escrit rio uma fotografia de grupo Nunca tive uma ideia nobre da minha presen a f sica mas nunca a senti t o nula como em compara o com as outras caras t o minhas conhecidas naquel
303. l a pr pria vida absurda Um homem feliz n o escreveria o Livro do Desassossego N o Mas um homem feliz n o conseguira tamb m observar a realidade de fora A infelicidade neste caso o choque pessoal que despoleta a deslocaliza o do sujeito para fora da realidade que o p e fora de fase com tudo o resto e de certa maneira o predisp e a ser uma esp cie de frente avan ada de todos n s N o pertencer tamb m n o estar vinculado a significando isto que o autor do Livro n o tem temor algum em traduzir as coisas tal e qual as v e as considera intimamente O seu testemunho poder parecer algo que n o nos pertence algo apenas para ser apenas contemplado como coisa estranha e ocasional mas h algo mais do que apenas estranheza na sua escrita h o desafio colocado a n s aos outros o desafio de nos colocarmos tamb m fora da realidade para conseguirmos compreender a vida que vivemos e sobretudo o significado da vida que vivemos XII Que me pode dar a China que a minha alma n o me tenha j dado E se a minha alma m o n o pode dar como m o dar a China se com a minha alma que verei a China se a vir Poderei ir buscar riqueza ao Oriente mas n o riqueza de alma porque a riqueza de minha alma sou eu e eu estou onde estou sem Oriente ou com ele 172 Se a viagem representa o expoente m ximo do afastamento para o exterior a viagem continua ela pr pria a representar uma outra fun
304. lativamente ao mundo exterior Este um facto ineg vel que n o nos cansamos de refor ar ao longo da nossa pr pria an lise No entanto este afastamento ganha uma nova dimens o quando ele come a a considerar o mundo de maneira diferente enquanto algo alien gena que apenas se contempla de forma pura No fragmento anterior o autor do Livro caminha pela cidade de maneira quase inconsciente e tamb m de forma inconsciente que ele se apercebe que o seu passeio o leva a pensar na sua vida O meu pr prio abstracto observar era uma nega o ainda diz ele Esta frase tem um tremendo significado ontol gico a nega o n o s da realidade exterior mas tamb m da validade dessa realidade para o ser para o mundo O simples facto de ele apenas observar distancia o da realidade exterior coloca o no papel de observador e enquanto observador ele n o pode participar dessa mesma realidade exterior Ora o papel de observador parecia ter sido assumido apenas ocasionalmente porque ocasionalmente que ele descreve a realidade exterior No entanto o fragmento parece revelar que o observador ao desempenhar o seu papel est cada vez mais a negar a realidade que observa como se o acto de observar fosse tamb m ele progressivo anulando cada vez mais aquilo que se observa Pode parecer estranho considerar que a observa o da realidade leva sua nega o mas veremos que n o assim De facto a pr pria observa o da realidade to
305. le que v se isolasse de tudo em seu redor para passar a ser pelo menos na vida exterior apenas um observador ou reparador Nunca ser demais real ar que aqui como noutros textos de Pessoa clara a distin o entre o eu e os outros O eu reserva para si todo o significado das coisas muitas das vezes por exclus o enquanto os outros representam simbolicamente a mole humana sem vontade sem determina o e sobretudo sem for a pr pria como se a pr pria identidade do eu surgisse nesta contraposi o simples entre quem olha e quem visto O pr prio acto de ser visto pode ser desde logo considerado de certa forma plebeu menor Quem n o repara nos outros corre o risco enorme de passar a ser apenas visto por eles e de se tornar ele mesmo um outro Claro que isto se resume tamb m necessidade da consci ncia de si pr prio O homem que vive apenas a sua vida sem consci ncia disso um dos outros N o h qualquer d vida quanto a isso Ali s Fernando Pessoa refor a continuamente a necessidade de afirmar essa consci ncia para afirma o da pr pria individualidade e identidade Um homem que deixe de ter consci ncia de si pr prio afunda se na nulidade da mole humana deixando de viver para passar a ser vivido Penso que importante salientar que todo o processo do Livro decorre neste mbito de reparar Reparar nos outros nos pormenores nos si
306. lelo entre n o viajar e n o ser um revolucion rio Mas n o quer dizer que decida n o viajar decida n o agir tout court Quem decide n o agir no mundo exterior decide agir no mundo interior sendo que o conceito de inac o n o o mesmo que n o ac o A inac o a ac o transposta para o mundo interior para o tal conceito do mundo No mundo interior a ac o poder ser consequente pois n o o homem a ser vivido pela vida mas o homem a viver uma vida que imaginou como sua e que na realidade apenas poder ser a sua pois ser s ela a imagin la assim Nesta acep o o acto um acto verdadeiramente puro de liberta o pois o homem deixa de depender do mundo exterior para passar a depender apenas da sua pr pria vontade interior No extremo todos os homem podem mudar o mundo porque mudam os seus pr prios mundos interiores e ou a percep o que t m do seu mundo exterior H portanto uma infinidade de mundos exteriores imaginados interiormente que mudam infinitamente de acordo com as imagina es individuais Mais do que motivados pelo desejo de mudan a estes homens estariam motivados pelo desejo de liberdade de consci ncia pura do mundo e da procura da verdade Isto n o negar o mundo como fazem os ascetas e os m sticos que o autor do Livro repugna mas aceit lo interiormente engan lo para que ele deixe de nos recusar e passe a ser nosso para que o controlemos n s XIII D
307. lguma vez fazer porque essa a nica realidade que podemos conhecer exteriormente e n s somos em ess ncia seres de exterioridade e nessa exterioridade seres sociais A nega o do Mundo tamb m n o o podemos esquecer a nega o da sociedade a desconstru o da necessidade de existirmos e interagirmos uns com os outros Qual o verdadeiro significado do mundo depois desta afirma o catastr fica O autor do Livro vai 188 Livro do Desasocego Tomo I p g 400 01 propor nos um significado individual que simultaneamente paradoxal o homem deve existir apenas em fun o do seu pr prio mundo exterior mas deve faz lo exteriormente Como N o h uma resolu o na filosofia Pessoana a este n vel O homem tem de sofrer para vingar a sua vis o do mundo e apenas natural que assim seja E o sofrimento m ximo que lhe pedido a sua morte para o mundo a morte do ser para o mundo Deixemos apenas um pensamento final que confirma esta distin o entre o homem que sabe esta verdade e os homens que a desconhecem Reparo tamb m que entre a vida dos homens e a dos animais n o h outra diferen a que n o a da maneira como se enganam ou a ignoram N o sabem os animais o que fazem nascem crescem vivem morrem sem pensamento reflexo ou verdadeiramente futuro Quantos homens por m vivem de modo diferente do dos animais Dormimos todos e a diferen a est s nos sonhos e no grau e qualidade de sonhar 18
308. lgumas das regras iniciais da Maneira de bem sonhar E elas s o Adia tudo N o fa as Vive a tua vida n o sejas vivido por ela Substitui o sonho vida Fecha te mas sem bater com a porta na tua torre de marfim Temos vindo a ver como o sonho representa simbolicamente a quebra da rela o f sica com o mundo mas de um modo intelectual Ou seja ao sonhar o sonhador substitui o mundo exterior pelo mundo interior mas continua de certa forma a ser o mesmo mundo H por isso essencialmente uma grande quebra de continuidade entre o que o passado e o que o futuro 216 Livro do Desasocego Tomo I p g 48 datado presumivelmente de 1913 de um homem que decide come ar a sonhar Essa quebra feita na vida e feita de maneira dram tica pois tudo na vida deixa de ter significado E deixa de ter significado porque o sonhador tem a plena consci ncia de que nada pode ser conhecido na vida exterior A verdade em si mesma uma impossibilidade da ac o mas n o do sonho As regras adia tudo e n o fa as s o regras de negatividade que marcam esta mesma quebra com a vida passada que era uma vida de ac o em que o homem queria conquistar e descobrir a verdade no mundo exterior Adiar tudo perceber que nada pode ser alcan ado e que por essa mesma raz o a ac o no mundo exterior infrut fera e in til Adiar uma forma de reconhecer interiormente essa mesma futilidade e ganhar
309. lhes as manifesta es de feitio Foi esse tra o curioso que primeiro me deu interesse por ele Passei a v lo melhor Verifiquei que um certo ar de intelig ncia animava de certo modo incerto as suas fei es Mas o abatimento a estagna o da ang stia fria cobria t o regularmente o seu aspecto que era dif cil descortinar outro tra o al m desse Soube incidentalmente por um criado do restaurante que era empregado do com rcio numa casa ali perto evidente que Pessoa aqui se descrevia a si pr prio Mas o mais interessante n o a projec o que o autor faz para o suposto criador do Livro antes ele dizer explicitamente que houve um tra o curioso que o atraiu para essa figura imaginada e por outro lado t o real Esse tra o foi o tal homem reparar extraordinariamente para as pessoas com um interesse especial como que interessando se por elas sem querer fixar lhes as fei es O grande segredo do Livro para al m da sua inerente beleza po tica este afastamento intencional de tudo O Livro escrito n o na primeira ou na terceira pessoa mas numa pessoa ainda mais distante na voz de algu m que apenas observa ou melhor que repara e nada mais do que isso de essencial import ncia caracterizar o autor do Livro enquanto observador ali s o pr prio Livro um livro de observa es e enquanto tal um livro sobre a teoria do afastamento Este homem estranho calado sem amigos que se
310. linguagem po tica mais expansiva mais descritiva mais dada ao pormenor O sonhador repara essencialmente nos pormenores como se pode constatar pela ampla quantidade de fragamentos do Livro que falam de pequenas coisas em que o autor do Livro repara e que primeira vista n o se constituem como elementos de grande import ncia filos fica ou experencial Mas ele repara nos pormenores de uma forma que n o poderia ser representada simbolicamente pela linguagem coloquial que usamos no nosso dia a dia Apenas a linguagem po tica neste caso a prosa poder servir de ferramenta ideal para essa transposi o simb lica das sensa es apreendidas pelo corpo est tico Porqu Devemos parar e reflectir sobre esta necessidade pois ela estar no centro da raz o do pr prio Livro do Desassossego ter de existir O grande problema da filosofia do fim do S culo XX duplo por um lado o existencialismo traz a ideia da morte de Deus e do abandono do homem s suas pr prias escolhas num mundo inerentemente absurdo e em que nada faz sentido por outro e em seguimento o aparecimento de correntes l gicas sobretudo ligadas an lise do significado da linguagem come am a limitar aquilo que a pr pria filosofia deve ter como perguntas essenciais A chamada filosofia da linguagem aproveitou se do vazio deixado pelas teorias existencialistas para operar um regresso ao positivismo l gico s certezas Com esse preciso objectiv
311. liviar de viver que t o mon tona como a mesma vida mas s em lugar diferente Sim esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas a solu o de todos os enigmas salvo o existirem enigmas que o que n o pode ter solu o 28 O patr o Vasques representa a vida por fora Ora h que perguntar o que representa a vida por dentro Por enquanto ainda nada embora saibamos que essencialmente essa vida ser uma vida sonhada Por agora basta nos apreender que o exterior est extremamente bem definido ao contr rio do que seria de esperar por parte de algu m que pretende renunciar a tudo e que ao fim ao cabo se acaba por confundir com o pr prio Livro que escreve O autor do Livro desempenha o seu papel como um puro actor da vida exterior E o melhor exemplo disso a seguinte passagem em que ele nos conta o epis dio da fotografia de grupo O s cio capitalista aqui da firma sempre doente em parte incerta quis n o sei por que capricho de que intervalo de doen a ter um retrato do conjunto do pessoal do escrit rio E assim anteontem alinh mos todos por indica o do fot grafo alegre contra a barreira branca suja que divide com madeira fr gil o escrit rio geral do gabinete do patr o Vasques Ao centro o mesmo Vasques nas duas alas numa distribui o primeiro definida depois indefinida de categorias as outras almas humanas que aqui se re nem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo ltim
312. lu do precisamente porque n o a abordamos de maneira correcta enquanto ci ncia do pensamento H v rias formas de abordar a quest o O autor do Livro escreve sobre a forma como o papel da filosofia ou genericamente da express o humana pode ser considerado um problema de utilidade quando nos fala do papel da arte e do artista Um artista comunica nos alguma coisa e essa coisa algo profundamente incomunic vel se quisermos inef vel A arte consiste em fazer os outros sentir o que n s sentimos em os libertar deles mesmos propondo lhes a nossa personalidade para especial liberta o O que sinto na verdadeira subst ncia com que o sinto absolutamente incomunic vel e quanto mais profundamente o sinto tanto mais incomunic vel Para que eu pois possa transmitir a outrem o que sinto tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele isto que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto que ele lendo as sinta exactamente o que eu senti E como este outrem por hip tese de arte n o esta ou aquela pessoa mas toda a gente isto aquela pessoa que comum a todas as pessoas o que afinal tenho que fazer converter os meus sentimentos num sentimento humano t pico ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti 37 O fragmento em cima traduz um entendimento que numa primeira an lise n o se aplica necessariamente a uma filosofia stritcto sensu N o penso que seja normal considerar
313. m constroem as coisas e os que narram tornam nas vivas como se a pr pria realidade tivesse duas dimens es a dimens o da ac o e a dimens o do sonho da ac o Existem aqueles que est o t o presos realidade que apenas a conseguem viver e n o a compreendem Depois h os outros os artistas que olhando para a realidade a conseguem transmutar em arte em compreens o A realidade pode existir em dois estados muito distintos 1 est tico que serve apenas para o quotidiano 2 din mico que incorpora uma dimens o interpretativa e de viv ncia superior Podemos contrapor que na verdade a dimens o art stica da realidade n o tem propriamente utilidade pr tica E assim A arte n o iminentemente pr tica Ali s algu m dedicado apenas observa o da realidade atrav s da arte deixaria de viver a realidade que passa apenas a observar neste ponto que o autor do Livro se acaba por destacar tomando um emprego baixo e comum uma rotina quoditiana s bria e insignificante conjuntamente com uma atitude art stica desconhecida e subterr nea Ele um artista para dentro de si mesmo e n o para o exterior Ningu m que o conhecesse o reconheceria enquanto artista apenas enquanto um empregado de escrit rio e esta distin o entre fora e dentro de enorme import ncia Dizemos que ele n o teve ambi es mas mentimos Ele teve ambi es mas apenas de in cio Ali s ele falhou O Livro mostra que esta personagem
314. m incolor das almas mon tonas subindo um momento superf cie em palavras velhas e gestos gastos descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da express o humana Revolu o Mudan a O que eu quero deveras com toda a intimidade da minha alma que cessem as nuvens tonas que ensaboam cinzentamente o c u o que eu quero ver o azul come ar a surgir de entre elas verdade certa e clara porque nada nem quer 7 O segundo este O nico viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escrit rio que havia numa outra casa onde em tempos fui empregado Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades pa ses e companhias de transportes tinha mapas uns arrancados de peri dicos outros que pedia aqui e ali tinha recortadas de jornais e revistas ilustra es de paisagens gravuras de costumes ex ticos retratos de barcos e navios la s ag ncias de turismo em nome de um escrit rio hipot tico ou talvez em nome de qualquer escrit rio existente possivelmente o pr prio onde estava e pedia folhetos sobre viagens para a It lia folhetos de viagens para a ndia folhetos dando as liga es entre Portugal e a Austr lia N o s era o maior viajante porque o mais verdadeiro que tenho conhecido era tamb m uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar Tenho pena de n o saber o que feito dele ou na verdade suponho somente que deveria ter pena na realidade n o a tenho
315. m vulgaridade humana pelo banal quotidiano do chefe de fam lia que vai para o trabalho pelo lar humilde e alegre dele pelos prazeres alegres e tristes de que for osamente se comp e a sua vida pela inoc ncia de viver sem analisar pela naturalidade animal daquelas costas vestidas Desvio os olhos das costas do meu adiantado e passando os a todos mais quantos v o andando nesta rua a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo Tudo isto o mesmo que ele todas estas raparigas que falam para o atelier estes empregados jovens que riem para o escrit rio estas criadas de seios que regressam das compras pesadas estes mo os dos primeiros fretes tudo isto uma mesma inconsci ncia diversificada por caras e corpos que se distinguem como fantoches movidos pelas cordas que v o dar aos mesmos dedos da m o de quem invis vel Passam com todas as atitudes com que se define a consci ncia e n o t m consci ncia de nada porque n o t m consci ncia de ter consci ncia Uns inteligentes outros est pidos s o todos igualmente est pidos Uns velhos outros jovens s o da mesma idade Uns homens outros mulheres s o do mesmo sexo que n o existe Estes excertos extremamente belos d o nos no entanto a perceber a vis o de um homem essencialmente afastado da humanidade Ele repara nos outros mas n o os considera seus semelhantes como se ele enquanto aque
316. ma esp cie de reclus o para quem n o merit rio da poesia o autor do Livro considera precisamente o oposto para ele a poesia um est dio transit rio para a prosa um est dio onde a linguagem se desprende das suas grilhetas e se torna mais liberta sem restri es de m trica ou objecto O autor do Livro n o tem propriamente preocupa es est ticas exteriores Ele pode lamentar se acerca da sua pr pria vida mas nunca chega a considerar se indigno enquanto objecto po tico na sua pr pria escrita Isto pode ser relevante na medida em que nos revela um escritor que n o tem determinados objectivos com a sua escrita a sua escrita reveladora de um objectivo superior que o da sua pr pria descoberta Ele n o usa a escrita para descobrir o mundo mas antes para se descobrir a si pr prio Por n o ter mais nada ele reduz se escrita Neste sentido a prosa tudo o que ele Escrevo triste no meu quarto quieto sozinho como sempre tenho sido sozinho como sempre serei E penso se a minha voz aparentemente t o pouca coisa n o encarna a subst ncia de milhares de vozes a fome de dizerem se de milhares de vidas a paci ncia de milh es de almas submissas como a minha ao destino quotidiano ao sonho in til esperan a sem vest gios Nestes momentos meu cora o pulsa mais alto por minha consci ncia dele Vivo mais porque vivo maior Sinto na minha pessoa uma for a religiosa uma esp cie de ora o uma semelhan
317. ma obra de Shakespear uma das preferidas de Pessoa que ele pretendia mesmo publicar na sua editora Olisipo Our revels now are ended These our actors As I foretold you were all spirits and Are melted into air into thin air And like the baseless fabric of this vision The cloud capp d tow rs the gorgeous palaces The solemn temples the great globe itself Yea all which it inherit shall dissolve And like this insubstantial pageant faded Leave not a rack behind We are such stuff As dreams are made on and our little life Is rounded with a sleep A Tempestade Acto IV Cena I Compare se a passagem com esta outra do Livro As coisas s o a mat ria para os meus sonhos por isso aplico uma aten ao distraidamente sobreatenta a certos detalhes do Exterior Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas Porque a vis o do sonhador n o como a vis o do que v as coisas No sonho n o h o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que h na realidade S o importante que o sonhador v A realidade verdadeira dum objecto apenas parte dele o resto o pesado tributo que ele paga mat ria em troca de existir no espa o Semelhantemente n o h no espa o realidade para certos fen menos que no sonho s o palpavelmente reais Um poente real imponder vel e transit rio Um poente de sonho fixo e eterno
318. mais um fragmento Penso muitas vezes em como eu seria se resguardado do vento da sorte pelo biombo da riqueza nunca houvesse sido trazido pela m o moral de meu tio para um escrit rio de Lisboa nem houvesse ascendido dele para outros at este p ncaro barato de bom ajudante de guarda livros com um trabalho como uma certa sesta e um ordenado que d para estar a viver Sei bem que se esse passado que n o foi tivesse sido eu n o seria hoje capaz de escrever estas p ginas em todo o caso melhores por algumas do que as nenhumas que em melhores circunst ncias n o teria feito mais que sonhar que a banalidade uma intelig ncia e a realidade sobretudo se est pida ou spera um complemento natural da alma 29 Livro do Desasocego Tomo I p g 235 36 30 Usamos este termo deliberadamente lembrando a fotografia que Pessoa enviou sua tia Anica em 1914 com a legenda sua muito querida tia oferece esta provis ria representa o vis vel de si pr prio com um abra o t o grande quanto a sua de quem despondera o o seu sobrinho amigo genial e obrigado Fernando 31 Existem aqui claras compara es com Fernando Pessoa que em certa medida odiava tirar a sua fotografia sendo que muitas das que temos dele s o da inf ncia ou foram tiradas na rua por vendedores ambulantes Livro do Desasocego Tomo I p g 104 Devo ao ser guarda livros grande parte do que posso sentir e pensar como a nega o e a fuga do
319. mbolo dos s mbolos e todos os elementos dessa realidade exterior s o eles pr prios s mbolos mesmo aqueles em rela o aos quais poder amos ter algumas d vidas Essas derradeiras d vidas ser o confrontadas no cap tulo seguinte 107 Livro do Desasocego Tomo I p g 433 curiosa aqui tamb m a apari o do dono da tabacaria Seria o Alves da Tabacaria de Alvaro de Campos 108 Livro do Desasocego Tomo I p g 171 XIV Duas vezes gozei a dor da humilha o de amar A par das viagens o amor que surgir como a maior amea a constitui o da realidade interior feita completamente pelo sonho Porqu Porque o amor em ess ncia aquilo que nos liga mais intensamente a outra pessoa na realidade exterior Trata se de certo modo da ant tese da atitude solit ria que proposta pelo autor do Livro e como ant tese assume se como uma verdadeira amea a a essa ideia solit ria O autor do Livro chegou a amar algu m Sim Ele pr prio nos confirma isso Duas vezes naquela minha adolesc ncia que sinto long nqua e que por assim senti la me parece uma coisa lida um relato ntimo que me fizessem gozei a dor da humilha o de amar Do alto de hoje olhando para tr s para esse passado que j n o sei designar nem como long nquo nem como recente creio que foi bom que essa experi ncia da desilus o me acontecesse t o cedo N o foi nada salvo o que passei comigo No aspecto exter
320. mente a realiza o f sica do amor apenas uma ilus o e torna se quase incompreens vel porque no sonho n o poss vel haver materialidade visto que a materalidade a pr pria oposi o ao estado do sonho A nossa vida n o tinha dentro ramos fora e outros Desconhec amo nos como se houv ssemos aparecido s nossas almas depois de uma viagem atrav s de sonhos T nhamo nos esquecido do tempo e o espa o imenso empequenara se nos na aten o Fora daquelas rvores pr ximas daquelas latadas afastadas daqueles montes ltimos no horizonte haveria alguma coisa de real de merecedor do olhar aberto que se d s coisas que existem Na clepsidra da nossa imperfei o gotas regulares de sonho marcavam horas irreais Nada vale a pena meu amor long nquo sen o o saber como suave saber que nada vale a pena O movimento parado das rvores o sossego inquieto das fontes o h lito indefin vel do ritmo ntimo das seivas o entardecer lento das coisas que parece vir lhes de dentro a dar m os de concord ncia espiritual ao entristecer long nquo e pr ximo alma do alto sil ncio do c u o cair das folhas compassado e in til pingos de alheamento em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em n s como uma p tria recordada tudo isto como um cinto a desatar se cingia nos incertamente Ali vivemos um tempo que n o sabia decorrer um espa o para que n o havia pensar em poder
321. mente concreta e imaginada Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas Porque a vis o do sonhador n o como a vis o do que v as coisas No sonho n o h o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que h na realidade S o importante que o sonhador v A realidade verdadeira dum objecto apenas parte dele o resto o pesado tributo que ele paga mat ria em troca de existir no espa o Semelhantemente n o h no espa o realidade para certos fen menos que no sonho s o palpavelmente reais Um poente real imponder vel e transit rio Um poente de sonho fixo e eterno Quem sabe escrever o que sabe ver os seus sonhos nitidamente e assim ou ver em sonho a vida ver a vida imaterialmente tirando lhe fotografias com a m quina do devaneio sobre a qual os raios do pesado do til e do circunscrito n o t m ac o dando negro na chapa espiritual 70 Temos de aceitar que esta filosofia n o uma filosofia estritamente ligada a quest es de conhecimento mas antes a quest es de exist ncia quest es ontol gicas Antes de podermos conhecer temos de definir como existimos isso que verdadeiramente importa Quem somo e como somos e sobretudo como vivemos a nossa vida ou somos vividos por ela A no o de consci ncia de extrema import ncia Apenas os seres que sonham s o seres conscientes na medi
322. mente dela atrav s de uma s rie de eventos que dificilmente podem ser retrovertidos O afastamento do mundo exterior pode parecer uma coisa calculada mesmo planeada mas n o o minimamente Vemos ao longo das nossas an lises que Fernando Pessoa foi colocado perante esta realidade desde muito cedo a sua deslocaliza o come a na sua inf ncia com a morte do pai e a mudan a da fam lia para a frica do Sul embora mesmo antes disso existem algumas evid ncias do seu estado de esp rito isolado e triste Certo que chegada a sua idade adulta ele est completamente alienado da realidade exterior porque se tornou um inadaptado social um introvertido Normalmente estes sentimentos de introvers o podem resultar em diversas atitudes pode haver uma decis o de os combater activamente tornando se o indiv duo for osamente mais social e por isso mesmo mais ligado 203 Livro do Desasocego Tomo I p g 344 46 204 H ainda outro texto em que apresentada uma defini o do t dio que n o aprentamos em extenso por raz es bvias de duplica o mas nesse texto a certo ponto o autor do Livro define o t dio como a sensa o carnal da vacuidade prolixa das coisas Uma defini o sint tica que achamos curiosa e que n o pod amos deixar de referir Cf Op Cit p g 397 8 205 Livro do Desasocego Tomo p g 350 realidade exterior combatendo os seus antecedentes psicol gicos ou ent o ele pode regredir ainda ma
323. mo Livro f cil de ver sobretudo nesta fase da nossa an lise que esses elementos s o basicamente o t dio o afastamento a inac o e o sonho J fal mos de todos mas eles agora aparecem em conjunto num texto que se pode considerar fundador n o de menos real ar tamb m que ele foi publicado em vida por Pessoa na revista A guia em Agosto de 1913 E quem esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia Para que que tenho um momento de mo perguntar Eu nem sei quer lo saber A alcova vaga um vidro escuro atrav s do qual consciente dele vejo essa paisagem e a essa paisagem conhe o a h muito e h muito que com essa mulher que desconhe o erro outra realidade atrav s da irrealidade dela Sinto em mim s culos de conhecer aquelas rvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver Passe vamos s vezes bra o dado sob os cedros e as olaias e nenhum de n s pensava em viver A nossa carne era nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte D vamo nos as m os e os nossos olhares perguntavam se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilus o do amor O nosso sonho de viver ia adiante de n s alado e n s t nhamos para ele um sorriso igual e alheio combinado nas almas sem nos olharmos sem sabe
324. mo acto essencial ao desenvolvimento do seu mundo interior pois mais do que uma mera ferramente de express o do sonho a escrita po tica acaba por contribuir para a constru o estruturada desse mesmo mundo sobretudo em oposi o com a realidade exterior e imanente O autor do Livro procura uma experi ncia humana totalmente desprovida de significado exterior Curiosamente ou talvez n o ele escolhe como corpo f sico o corpo de um trabalhador do com rcio um ajudante de guarda livros com uma fun o menor e rotineira actualiza livros de contabilidade com quantidades e descri es de materiais vendidos ou armazenados facilmente substitu vel na doen a ou mesmo na morte ou seja totalmente prescind vel Mas nem tudo f cil neste projecto pelo contr rio Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira Sou o intervalo entre o que sou e o que n o sou entre o que sonho e o que a vida fez de mim a m dia abstracta e carnal entre coisas que n o s o nada sendo eu nada tamb m Quantas vezes contudo em pleno meio desta insatisfa o sossegada me n o sobe pouco a pouco emo o consciente o sentimento do v cuo e do t dio de pensar assim Quantas vezes n o me sinto como quem ouve falar atrav s de sons que cessam e recome am a amargura essencial desta vida estranha vida humana vida em que nada se passa salvo na consci ncia dela Quantas vezes despertando de mim n o entrevejo do e
325. mos a din mica filos fica como sendo uma din mica art stica mas neste nosso estudo e nesta particular fase final tal inevit vel A filosofia do Livro uma arte Porqu Porque para ultrapassar os obst culos da l gica que limita a linguagem pela fun o temos de recorrer a uma forma indirecta de comunicar O fil sofo n o existencialista n o fala da realidade tal como a v nem propriamente um metaf sico Podemos duvidar de todas as suas caracter sticas menos de uma ele tem de ser um poeta A filosofia pode ser til Pensamos que sim e o Livro do Desassossego tem uma chave essencial para diferenciar a filosofia na passagem do S culo XX para o S culo XXI o sonho o sonho em conjunto com a vis o da filosofia enquanto arte liter ria que vai permitir ultrapassar os obst culos da chamada filosofia anal tica e da filosofia da linguagem que limitaram o que poderia ser dito e o que poderia ser pensado filosoficamente A arte na filosofia serve tamb m para separar os dois mundos de que temos vindo a falar o fora e o dentro Ah compreendo O patr o Vasques a Vida A Vida mon tona e necess ria mandante e desconhecida Este homem banal representa a banalidade da Vida Ele tudo para mim por fora porque a Vida tudo para mim por fora E se o escrit rio da Rua dos Douradores representa para mim a vida este meu segundo andar onde moro na mesma Rua dos Douradores representa para mim a Arte
326. mposs vel reuni o de todas as sensa es poss veis de todas as coisas Ser um objecto plenamente est tico no mbito do Livro n o estar comprometido com a vida exterior ser nela apenas uma coisa que percepcionada simplesmente pelos outros mas que n o quer revelar mais do que o estritamente necess rio O sujeito nesta teoria n o tem nunca uma imagem exterior de si pr prio precisamente por desvalorizar o exterior este sentimento que encontramos no famoso e j referido texto sobre a fotografia de escrit rio Sofri a verdade ao ver me ali porque como de supor foi a mim mesmo que primeiro busquei Nunca tive uma ideia nobre da minha presen a f sica mas nunca a senti t o nula como em compara o com as outras caras t o minhas conhecidas naquele alinhamento de quotidianos E posteriormente em outros textos que falam dos espelhos O homem n o deve poder ver a sua pr pria cara Isso o que h de mais terr vel A Natureza deu lhe o dom de n o a poder ver assim como de n o poder fitar os seus pr prios olhos S na gua dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto E a postura mesmo que tinha de tomar era simb lica Tinha de se curvar de se baixar para cometer a ignom nia de se ver O criador do espelho envenenou a alma humana 2 2 Um particularmente ir nico compara a atitude dos seus companheiros de caf que se olhavam e se namoravam a si pr prios ao espelho enquanto ele se virava d
327. n o passar nunca a guarda livros 168 Deixar finalmente de pensar por cansa o e n o ter ambi es eis o que poderia ser um resumo perfeito de quem o autor do Livro num texto j relativamente tardio 1930 167 Ver por exemplo os fragmentos 275 276 e 277 in Ob Cit 168 Livro do Desasocego Tomo I p g 279 80 Z Tudo rua na vida o mesmo que dizer que tudo na vida exterior e por isso mesmo cansa o O que cansa realmente olhar sem compreender querer viver sem conseguir viver No intervalo das coisas h pelo menos o descanso das coisas n o terem qualquer import ncia e de tudo continuar a ser igual dia ap s dia no absurdo de haver dias seguidos o mesmo absurdo de que a pr pria rotina da vida feito O n o ter ambi es tamb m revela bem como o autor do Livro n o deseja viver da vida mais do que precisa viver A sua vida feita do estritamente necess rio para que ele continue a sobreviver e a dedicar se sem que ningu m o saiba sua obra durante a noite no seu quarto pobre Ele parece regozijar se embora de maneira amarga com estas contradi es e sobretudo com a grande contradi o de se imaginar um grande escritor desconhecido Ele pr prio o diz num outro fragmento E do alto da majestade de todos os sonhos ajudante de guarda livros na cidade de Lisboa A gl ria nocturna de ser grande n o sendo nada A majestade sombria de esplendor desconhecido 16 Imaginar a r
328. nas esta esp cie de amor a aceite na grande teoria do Livro Ele n o chega nunca a amar porque nunca ousa passar dessa etapa contemplativa do amor S uma vez fui verdadeiramente amado Simpatias tive as sempre e de todos Nem ao mais casual tem sido f cil ser grosseiro ou ser brusco ou ser at frio para comigo Algumas simpatias tive que com aux lio meu poderia pelo menos talvez ter convertido em amor ou afecto Nunca tive paci ncia ou aten o do esp rito para sequer desejar empregar esse esfor o Resta me apenas uma gratid o a quem me amou Mas uma gratid o abstracta pasmada mais da intelig ncia do que de qualquer emo o Tenho pena que algu m tivesse tido pena por minha causa disso que tenho pena e n o tenho pena de mais nada Ele v o amor enquanto algo que prende um homem vida exterior N o se importou por isso de ser amado mas ele insiste em n o amar Isto porque ser amado n o uma ac o per si mas ser amado j Nunca diz que amou porque isso seria destruir esta teoria est tica do amor porque na realidade se trata de uma teoria plenamente est tica sem ac o contemplativa N o o amor mas os arredores que vale a pena A repress o do amor ilumina os fen menos dele com muito mais clareza que a mesma experi ncia H virgindades de grande entendimento Agir compensa mas confunde Possuir ser possu do e portanto perder se S a ideia atinge sem se estragar
329. ndes poetas e grandes artistas mulheres formosas crian as que fazem o que querem Manda quem n o sente Vence quem pensa s o que precisa para vencer O resto que a vaga humanidade geral amorfa sens vel imaginativa e fr gil e nao mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena at que a pe a de fantoches acabe o fundo chato de quadrados sobre o qual se erguem as pe as de xadrez at que as guarde o Grande Jogador que iludindo a reportagem com uma dupla personalidade joga entretendo se sempre contra si mesmo 12 E curioso indicar no segundo fragmento que reproduzimos em cima que o mesmo come a com a seguinte express o O mundo de quem n o sente Ou seja sentir demasiado estar demasiado 210 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 428 211 Livro do Desasocego Tomo p g 252 212 Livro do Desasocego Tomo p g 379 afastado da possibilidade de ser um homem de ac o Ser por esta raz o que o autor do Livro n o se vai considerar ao contr rio do que seria de esperar um dos grandes poetas e grandes artistas Ele n o pensa s o que precisa para vencer n o motivado pela dimens o crua e superficial da realidade n o destinado ao sucesso fino e inconsequente no mundo exterior Sente se por isso mesmo apenas um pano de fundo para o necess rio destaque que dado aos outros aos que conseguem vencer porque mesmo que menores do que ele podem ao menos ignor
330. ndida com a figura da m e em Fernando Pessoa Mas dada a hist ria pessoal do poeta n o podemos claro deixar de referir este facto Realmente poder haver provas concludentes que o poeta olhava com distanciamento as mulheres devido ao seu trama com a sua pr pria m e sobretudo o facto de ele se sentir abandonado por ela depois da morte do seu pai Isto poderia de certo modo ir de encontro imagem da imagem da mulher como objecto idealizado e distante feito s mbolo ou beb como nas cartas com Oph lia que n o deve ser tocado ou possu do H um vago n mero de muitos meses que me v olh la olh la constantemente sempre com o mesmo olhar incerto e sol cito Eu sei que tem reparado nisso E como tem reparado deve ter achado estranho que esse olhar n o sendo propriamente t mido nunca esbo asse uma significa o Sempre atento vago e o mesmo como que contente de ser s a tristeza disso Mais nada E dentro do seu pensar nisso seja o sentimento qual seja com que tem pensado em mim deve ter perscrutado as minhas poss veis inten es Deve ter explicado a si pr pria sem se satisfazer que eu sou ou um t mido especial e original ou uma qualquer esp cie de qualquer coisa aparentado com o ser louco Eu n o sou minha Senhora perante o facto de olh la nem estritamente um t mido nem assentemente um louco Sou outra coisa primeira e diversa como sem esperan a de que me creia lhe vou expor Quantas ve
331. ndo s o posts di rios num di rio online da consci ncia activa Esta vis o do mundo enquanto coisa distante que se sonha interior determinante na filosofia do Livro N o o momento ainda de a abordarmos na profundidade que ela nos exige mas por agora sabemos que existe que assim Basta que tenhamos por agora a no o de que o afastamento t o grave t o intenso que leva at divis o da interioridade em diversas facetas em diversas dimens es Agora preciso distinguirmos esta posi o como uma posi o que defende um afastamento completo mas um afastamento que se complementa com uma viv ncia concreta dessa mesma realidade que afastamos Em diversos momentos no Livro vemos a tentativa de equival ncia da posi o de afastamento a um poss vel comportamento greg rio de ermita de m stico N o verdade O autor do Livro continuar a viver a sua vida mesmo que esteja terrivelmente afastado dela mas ele mant m as suas rotinas o seu quotidiano o seu dia a dia isto tamb m que distancia a sua posi o da pr pria posi o dos m sticos Ele continua a ser o mesmo enquanto que a sua mudan a uma mudan a revolucion ria que ocorrer interiormente por dentro que ele muda e n o por fora porque dentro que residem todas as suas verdadeiras ambi es A atitude de afastamento que uma atitude m stica Mas apenas isso uma atitude n o propriamente todo um tipo de vida E
332. ningu m passa 40 O estado de esp rito em que o autor do Livro escreve conduzente ao sonho desmaterealiza o da vida exterior para a vida interior Nesta medida tudo o que se intromete nesse processo operativo de contempla o objectiva repudidado Essas intromiss es podem ser t o simples como algu m que visto come ar a falar ou a interagir com o autor do Livro Ele prefere mil vezes imaginar o que seria esse som essa conversa do que ouvi la realmente Ele prefere o sonho da realidade pr pria realidade Porqu J o dissemos antes o objectivo desenhar um mundo em que n s podemos vencer em que n s podemos ser inteiramente felizes Um mundo do qual n o somos apenas uma parte inf ma mas a totalidade Um mundo que n s pr prios Ser por esta insist ncia doentia no sonho que aparecer o conceitos como o t dio ou a inac o Eles nascem tamb m operativamente Um a um iremos analis los mas penso que desde j conseguimos compreender a sua import ncia para um homem que n o quer existir a ac o n o importante mesmo nefasta suja in til Toda a sua atitude fora do sonho de um profundo t dio porque o t dio reflecte essa for a negativa de uma vida que nunca nos permite atingir os nossos objectivos HI Progressivamente os textos capitulam para um estilo mais pr ximo do da an lise que podemos encontrar noutros heter nimos de Pessoa A descri
333. no do assunto ntimo legi es humanas de homens t m passado pelas mesmas torturas Mas Cedo de mais obtive por uma experi ncia simult nea e conjunta da sensibilidade e da intelig ncia a no o de que a vida da imagina o por m rbida que pare a contudo aquela que calha aos temperamentos como o meu As fic es da minha imagina o posterior podem cansar mas n o doem nem humilham s amantes imposs veis tamb m imposs vel o sorriso falso o dolo do carinho a ast cia das car cias Nunca nos abandonam nem de qualquer modo nos cessam 109 H com certeza an lises Freudianas poss veis de fazer ao fragmento que destac mos anteriormente mas preferimos focar nos em alguns pontos essenciais do mesmo Nomeadamente h que destacar 1 o sentimento um sentimento de adolesc ncia 2 parece ter sido um sentimento n o correspondido ou pelo menos n o expresso ou seja interior A humilha o poder ter o sentido de n o ter sido correspondido ou ent o simplesmente ter a ver com o facto de quem ama ter de se humilhar porque busca a felicidade fora de si mesmo correndo um grande risco de n o a obter Curiosamente ele parece dizer nos que continua a amar mas tornou o pr prio amor um fen meno de imagina o important ssimo compreender este facto de que o autor do Livro embora primeira vista pare a suprimir os seus puls es biol gicos continua de facto a usufruir deles mas em forma de s mbolo
334. no infinito mas antes no infinitesimal O que quer isto dizer O infinito o desdobramento natural da ac o porque o homem desconhece a verdade no mundo e almejar por a conhecer No interior n o h uma verdade misteriosa apenas a verdade do eu e por isso a realidade interior feita de pormenores enquanto a realidade exterior feita de totalidades Vemos em modo de conclus o que a contraposi o entre ac o e inac o tem o claro objectivo de nos confrontar com os resultados tamb m opostos de ambas as atitudes A ac o resulta num desejo de infinito que nunca satisfeito e que mant m o homem preso numa realidade que ele nunca poder verdadeiramente compreender A inac o por outro lado marca uma viragem de paradigma a ac o do int mo um int mo que sonhado por cada um de n s medida que constru mos a nossa pr pria realidade em que tudo faz sentido e em que tudo pode ser poss vel Poder parecer que a inac o ter um papel algo aned tico a desempenhar se emparelhada a uma imagina o que poder somente construir um mundo irreal e inconsequente H um grande perigo de compreendermos mal o papel da inac o na pr pria realidade exterior que o autor do Livro n o nos diz que recusa toda a realidade exterior para viver apenas na sua realidade interior A sua filosofia desenrola se de forma a demonstrar a validade da contraposi o entre o eu e os outros de
335. nor que me parece de todo decisivo verdade que h na maioria dos grandes artistas um qualquer pormenor maior ou menor que acaba por despoletar a sua criatividade e o seu g nio Na maior parte dos casos esse pormenor um pormenor traum tico seja a pobreza a morte a solid o a separa o etc O artista no sentido mais amplo poss vel de criador tender a potenciar esses elementos na sua obra tornando a universal precisamente por isso Ora em certa medida isto que Fernando Pessoa come a por fazer Falando particularmente do Livro do Desassossego ele obviamente um produto da sua experi ncia pessoal que se torna universal tocando em temas que s o familiares modernidade a solid o o absurdo o t dio a falta de valores a aliena o etc Mas e aqui chamamos a sua aten o ser que o Livro se esgota aqui Certo que a maioria das obras de arte se esgota na produ o desta universalidade representativa o artista constr i uma representa o simb lica da realidade na sua obra e a obra p ra ali sem evoluir para al m desse simbolismo Todos os grandes romances os grandes quadros as grandes sinfonias s o s mbolos que se apropriaram de sensa es de temas importantes de partes da civiliza o que cristalizam de forma ideal e em forma de reflexo A nossa hip tese que o Livro n o se esgota no seu simbolismo enquanto livro O afastamento foi racionalizado sim mas essa racionaliza o
336. nossa terra est nas m os de homens de mentalidade de escravos que se encontram dominadores de crist os disfar ados de esp ritos libertos de 229 Livro do Desasocego Tomo I p g 21 230 Livro do Desasocego Tomo I p g 340 41 gente que do mando nem sequer tem a clareza de alma para mandar Nenhum homem superior pode colaborar na obra nacional O nico escr pulo do portugu s hoje deve ser fazer obra para a civiliza o em geral tentando a nica coisa poss vel levantar a sua P tria no conceito da Europa pelo alevantado dos pensamentos pelo novo e justo dos conceitos que p e em escrito 231 Embora o texto que reproduzimos em cima possa ser considerado muito ligado a uma realidade pr pria do seu tempo ele tem algo de universal ele fala sobre a ac o dos homens de pensamento que deslocados para o futuro trabalham para o bem da civiliza o em geral e n o para o bem da civiliza o do seu tempo Ou seja eles projectam se para o futuro De que outra forma se distingue este homem superior que o homem sonhador E o Homem superior n o tem necessidade de nenhuma mulher N o precisa de posse sexual para a sua vol pia Mas a mulher mesmo superior n o sente isto a mulher essencialmente sexual 232 Ao homem superiormente inteligente n o resta hoje outro caminho que o da abdica o O homem superior abdica de tudo o que essencial para o homem normal Distingue se ent o d
337. nquanto realidade imposta e alienigena H outro texto a seguir que exemplifica este distanciamento de forma magn fica Do lado do oriente entrevista a cidade ergue se quase a prumo falso assalta estaticamente o Castelo O sol p lido molha de um aureolar vago essa mole s bita de casas que para aqui o oculta O c u de um azul humidamente esbranqui ado A chuva de ontem talvez se repita hoje mas mais branda O vento parece leste talvez porque aqui mesmo de repente cheira vagamente ao maduro e verde do mercado pr ximo Do lado oriental da Pra a h mais forasteiros que do outro Como descargas alcatifadas as portas onduladas descem para cima n o sei porqu assim a frase que me transmite aquele som talvez porque fazem mais esse som ao descer por m agora sobem Tudo se explica De repente estou s no mundo Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual Estou s no mundo Ver estar distante Ver claro parar Analisar ser estrangeiro Toda a gente passa sem ro ar por mim Tenho s ar minha volta Sinto me t o isolado que sinto a dist ncia entre mim e o meu fato Sou uma crian a com uma palmat ria mal acesa que atravessa de camisa de noite uma grande casa deserta Vivem sombras que me cercam s sombras filhas dos m veis hirtos e da luz que me acompanha Elas me rondam aqui ao sol mas s o gente A vis o do autor do Livro quase se poderia considerar atomista ou mesmo qu ntica na medida em qu
338. nsa o definida enquanto nica realidade Ou seja n o poss vel pensar a realidade apenas senti la uma posi o anti racional Para sentir tudo no entanto era preciso ser tudo e todos Isto porque as sensa es s o pr prias de cada indiv duo n o s o categorias gerais e ou universais Cada sensa o pertence nos e ent o cada um de n s tem a sua pr pria realidade porque sente particularmente cada um dos seus fen menos Lembremos aqui o exemplo de lvaro de Campos que para sentir tudo se colocava no corpo e na mente de tudo isto particularmente evidente nas grandes odes de Campos 25 A sensa o al m de ser a base componente da realidade tamb m aquela qualidade que assegura que a pr pria realidade existe Quando Pessoa diz as coisas existem como existem apenas porque n s assim as sentimos desenha um axioma perto do esse est percepi o ser ser percepcionado de Berkeley aproximando se aparentemente do idealismo subjectivo Mas n o Pessoa diz que as coisas s existem se s o sentidas e n o percepcionadas Julgo haver aqui uma diferen a de monta que preciso real ar Algo pode ser percepcionado e n o sentido se n o houver a presen a da emo o do sentimento Sentir diferente de percepcionar tal como diferente de pensar Ali s o esquema de Pessoa at bastante claro ao dizer que as coisas podem existir formalmente em tr s dimens es mas n o po
339. nte como se ele dissesse que todos aqueles homens fazem um sentido no seu todo mas nenhum sentido um a um O sentido comunit rio o sentido da global da humanidade enquanto que o sentido individual discipiendo porque desaproveitado N o interessa conhecer cada uma daquelas almas porque elas n o s o verdadeiras elas n o falam por si pr prias pois n o exprimem uma sincera individualidade E mesmo que a exprimissem ela seria imposs vel de conhecer pois ao homem est vedado o verdadeiro conhecimento do outro 152 Livro do Desasocego Tomo I p g 205 6 Se no fragmento em cima chega ao culminar um processo de simboliza o da realidade exterior focada nos outros h um outro fragmento que representa o esfor o de simboliza o da pr pria realidade em si mesma genericamente referido como Paisagem de chuva E por fim vejo o por mem ria sobre a escurid o dos telhados lustrosos a luz fria da manh t pida raia como um supl cio do Apocalipse outra vez a noite imensa da claridade que aumenta E outra vez o horror de sempre o dia a vida a utilidade fict cia a actividade sem rem dio E outra vez a minha personalidade f sica vis vel social transmiss vel por palavras que n o dizem nada us vel pelos gestos dos outros e pela consci ncia alheia Sou eu outra vez tal qual n o sou Com o princ pio da luz de trevas que enche de d vidas cinzentas as frinchas das portas das janelas t o longe
340. ntos pict rios disassocidados de significados verdadeiros ocos e simb licos Todos os dias iguais uma repeti o pegadas das mesmas personagens como um drama que consiste apenas no cen rio A realidade aterradora imposs vel fugir ao exterior Por outro lado tentar dominar o exterior esperar demasiado n o o excedo dentro do real parece apontar para um cansa o da ac o em que ele enquanto espectador puro n o consegue agir e repudi lo inconsequente porque sonhe o que sonhe fico sempre onde estou H aqui a afirma o clara da condi o do homem enquanto ser aprisionado na realidade e sem fuga poss vel dela a n o ser para dentro de si pr prio Seja como for e numa primeira an lise o que nos interessa desde logo compreender que a rela o do autor do Livro com os objectos da sua exterioridade no m nimo superficial Tudo se lhe afigura como um cen rio isto marca a sua atitude fria perante o exterior perante os outros e tudo o que os outros significam para ele Ele n o pertence a essa exterioridade e claro que ele n o pretende fazer parte dela intencionalmente pelo contr rio ele quer afastar se ainda mais dela quer distanciar se E uma maneira de o fazer tornando a em s mbolo H outro exemplo deste distanciamento logo a seguir no Livro A manh meio fria meio morna alava se pelas casas raras das encostas no extremo da cidade Uma n voa ligeira cheia de
341. ntromiss o do pensamento na ac o O que importa compreender a import ncia desta posi o O autor do Livro vive mas como se n o vivesse e v sem interagir gt 2 A sua conduta exterior de tal modo reduzida e simb lica que o 251 Livro do Desasocego Tomo I p g 352 252 Podemos discutir se ele n o interage realmente visto que continua a ter uma vida quotidiana O ponto importante e n o deve ser ignorado Pensamos no entanto que a sua interac o com o mundo exterior t o diminuta e sobretudo resultado pr tico ele viver uma vida com a qual n o se chega a comprometer verdade que ele acaba por n o tirar nada da vida mas a vida tamb m n o tira nada dele J referimos este fragmento mas n o podemos deixar de o relembrar A experi ncia directa o subterf gio ou o esconderijo daqueles que s o desprovidos de imagina o Lendo os riscos que correu o ca ador de tigres tenho quanto de riscos valeu a pena ter salvo o do mesmo risco que tanto n o valeu a pena ter que passou Os homens de ac o s o os escravos involunt rios dos homens de entendimento As coisas n o valem sen o na interpreta o delas Uns pois criam coisas para que os outros transmudando as em significa o as tornem vidas Narrar criar pois viver apenas ser vivido 53 Penso que com as camadas interpretativas que temos vindo a construir se torna agora mais claro o significado do segundo par grafo Os que vive
342. nunca pude ser Tudo o que n o meu por baixo que seja teve sempre poesia para mim Nunca amei sen o coisa nenhuma Nunca desejei sen o o que nem podia imaginar vida nunca pedi sen o que passasse por mim sem que eu a sentisse Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho long nquo Nas minhas pr prias paisagens interiores irreais todas elas foi sempre o long nquo que me atraiu e os aquedutos que se esfumavam quase na dist ncia das minhas paisagens sonhadas tinham uma do ura de sonho em rela o s outras partes da paisagem uma do ura que fazia com que eu as pudesse amar A minha mania de criar um mundo falso acompanha me ainda e s na minha morte me abandonar N o alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e pe es de xadrez com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo mas tenho pena de o n o fazer e alinho na minha imagina o confortavelmente como quem no inverno se aquece a uma lareira figuras que habitam e s o constantes e vivas na minha vida interior Tenho um mundo de amigos dentro de mim com vidas pr prias reais definidas e imperfeitas E curios ssimo ver no fragmento interior que ele sabe que o mundo que constr i falso Falso na acep o de que tudo o que n o exterior n o real E exteriormente falso mas interiormente verdadeiro H por isso mesmo vidas reais dentro do mundo falso O sonho identifica se aqui tamb m com a dist ncia dessa falsidade interior
343. o Ah compreendo O patr o Vasques a Vida A Vida mon tona e necess ria mandante e desconhecida Este homem banal representa a banalidade da Vida Ele tudo para mim por fora porque a Vida tudo para mim por fora E se o escrit rio da Rua dos Douradores representa para mim a vida este meu segundo andar onde moro na mesma Rua dos Douradores representa para mim a Arte Sim a Arte que mora na mesma rua que a Vida por m num lugar diferente a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver que t o mon tona como a mesma vida mas s em lugar diferente Sim esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas a solu o de todos os enigmas salvo o existirem enigmas que o que n o pode ter solu o Repare se que o autor do Livro mora na mesma rua do escrit rio a dos Douradores como se a rua simboliza se a exist ncia plena sendo que o escrit rio tem a dimens o exterior social e o seu apartamento a dimens o interior pessoal 3 Mas voltando ao Patr o Vasques o autor do Livro oferece nos para terminar uma impress o total dessa figura num fragmento extenso O patr o Vasques Tenho muitas vezes inexplicavelmente a hipnose do patr o Vasques Que me esse homem salvo o obst culo ocasional de ser dono das minhas horas num tempo diurno da minha vida Trata me bem fala me com amabilidade salvo nos momentos bruscos de preocupa o desconhecida em que n o fala bem a algu m S
344. o o que o simples p o a cozer l dentro na padaria funda como naquela tarde long nqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um al vio n o sei bem de qu E esta a minha moral ou a minha metaf sica ou eu Transeunte de tudo at de minha pr pria alma n o perten o a nada n o desejo nada n o sou nada centro abstracto de sensa es impessoais espelho ca do sentiente virado para a variedade do mundo Com isto n o sei se sou feliz ou infeliz nem me importa A moral do autor do Livro expressamente definida como nem fazer o bem nem o mal Mas como j vimos n o se trata de uma mera amoralidade porque ele continua a fazer ju zos morais exteriores e a reconhecer de algum modo a exist ncia de uma moral distinta da sua Talvez uma moral social da comunidade em que ele habita mas em que n o age directamente 0 H claramente uma evolu o do comunit rio que est corrompido para o individual que nunca se corrompe por n o chegar a ser ac o Neste sentido compreens vel a atitude plenamente est tica que chega ao ponto de contaminar a atitude moral O que antes era moral est tico hoje para n s O que era social hoje individual 81 Ou seja como noutros aspectos da sua vida a sua moral pelo menos a vertente exterior est transformada numa coisa plenamente est tica sem conte do activo Mas isso n o quer dizer que para
345. o s origens das palavras e da l ngua A po tica enquanto linguagem do inef vel define a nova filosofia ela que nos permite captar tudo no mundo e fora do mundo para dentro de n s pr prios Nela tudo faz sentido porque tudo imaginado partindo do imanente o sonho da realidade que comunicado e n o a realidade do sonho e por isso n o poss vel impor limites ao que dito O sonho liberta finalmente a linguagem para a fun o primordial de comunica o das sensa es humanas que nada mais s o que a apreens o da realidade atrav s da intui o Pode se contrapor que esta filosofia tamb m destr i tudo em seu redor que destr i sobretudo a import ncia das liga es humanas enquanto destr i o mundo exterior Sim uma filosofia solit ria est tica e de enorme peso para quem a elabora e compreende pois se assume a solid o do homem traz a esse mesmo homem a responsabilidade de negar essa solid o interiormente A constru o do mundo interior uma miss o dura e que poder n o fazer sentido para todos os que a empreendem Ali s mesmo poss vel que esta filosofia seja apenas a filosofia do autor do Livro e que n s n o dev ssemos tentar sistematiz la Poder um sistema existir apenas para um homem A quest o fica no ar e apenas justo que terminemos com ela pois n o nos caber a n s transformar a vida do autor do Livro que foi o pr prio Livro em nada que se assemelhe vis o de um Mestre El
346. o Ele mistura o sonho com a ac o Pelo menos isso que ele diz H que considerar que mesmo dentro de uma s obra Pessoa pode ser muitas vezes contradit rio e este caso n o uma excep o Noutro fragmento ele ir dizer que necess rio negar a vida para viver por inteiro sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro ter experi ncia de todas as coisas de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos e sendo isto imposs vel a vida s subjectivamente pode ser vivida por inteiro s negada pode ser vivida na sua subst ncia total S o estes dois fragmentos inconcili veis Julgo que n o O autor do Livro apenas nos diz que a vida vivida em duas dimens es subjectiva e objectivamente Subjectivamente de forma exteriorizada a vida imposs vel porque nos vedado o acesso a todas as sensa es e nisto o acesso ao que seria a verdade do mundo Ora como a verdade do mundo inacess vel resta nos optar pela nega o desse mesmo mundo Como Sonhando a realidade que nos imposs vel compreender por inteiro Este sonhar j o t nhamos dito anteriormente profundamente operativo um sonhar deliberado com um objectivo muito concreto Objectivar a vida torna la compreens vel ao indiv duo e tamb m deixar de ser vivido por ela para a passar a viver realmente Como veremos de seguida um dos estandartes da Maneira de Bem Sonhar o m todo do Livro qu
347. o Tomo 1 p g 163 Amo pelas tardes demoradas de ver o o sossego da cidade baixa e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bul cio A Rua do Arsenal a Rua da Alf ndega o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alf ndega cessa toda a linha separada dos cais quedos tudo isso me conforta de tristeza se me insiro por essas tardes na solid o do seu conjunto Vivo uma era anterior quela em que vivo gozo de sentir me coevo de Ces rio Verde e tenho em mim n o outros versos como os dele mas a subst ncia igual dos versos que foram dele Por ali arrasto at haver noite uma sensa o de vida parecida com a dessas ruas De dia elas s o cheias de um bul cio que n o quer dizer nada de noite s o cheias de uma falta de bul cio que n o quer dizer nada Eu de dia sou nulo e de noite sou eu N o h diferen a entre mim e as ruas para o lado da Alf ndega salvo elas serem ruas e eu ser alma o que pode ser que nada valha ante o que a ess ncia das coisas H um destino igual porque abstracto para os homens e para as coisas uma designa o igualmente indiferente na lgebra do mist rio Mas h mais alguma coisa Nessas horas lentas e vazias sobe me da alma mente uma tristeza de todo o ser a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensa o minha e uma coisa externa que n o est em meu poder alterar Ah quantas vezes os meus pr pri
348. o a filosofia da linguagem prop s que nada fosse perguntado ou pensado O grande te rico desta filosofia Ludwig Wittgenstein um fil sofo Alem o disc pulo de Bertrand Russell em Cambridge que com o seu Tractatus pretende estabelecer claros limites ao pensamento humano Ele marca a clara divis o entre o que pode ser pensado gesagt e aquilo que pode ser meramente mostrado gezeigt Ou seja os problemas ditos filos ficos s o afinal meros problemas de linguagem Se quisermos indagar sobre a exist ncia de Deus Wittgenstein vai perguntar antes de mais nada se essa pergunta faz sentido se l gica se ultrapassa ou n o a pr pria l gica da linguagem As implica es desta teoria foram enormes e afectaram profundamente a filosofia moderna ao ponto de hoje em dia estarmos ainda numa esp cie de p ntano em que n o foi descoberta nenhuma nova ordem de pensamento que possa ultrapassar este limite l gico linguagem Embora Pessoa esteja envolvido na discuss o filos fica do seu tempo nascimento do existencialismo no Continente Europeu e das escolas Anal ticas no Reino Unido aquilo a que chamaremos o seu sistema filos fico algo dramaticamente diferente do que seria de esperar pois n o parece vir em continuidade de nenhuma dessas correntes Fernando Pessoa apresenta nos de forma algo ca tica certo um sistema filos fico p s existencialista e p s anal tico E o sistema de Pessoa um sistema como seria de esper
349. o a vida revela lhe que nada resolve o sentido absurdo do quotidiano N o por fugirmos de n s pr prios que alcan amos uma outra realidade superior Isto justifica de certo modo que ele continue a ser recluso de si mesmo na cidade e n o num deserto long nquo Este homem continuar a ter um ritual di rio exterior tamb m por marcada convic o de que de nada vale fugir da vida porque n o fugir amos realmente dela E assim que aparecem na sua escrita outras situa es e personagens que vale a pena real ar e que j n o personagens do escrit rio mas de uma outra realidade exterior interm dia O Barbeiro Ant nio Manass s O autor do Livro cita v rias vezes a personagem bem humorada do barbeiro Seria provavelmente o senhor Ant nio Manass s barbeiro com loja na Rua Coelho da Rocha que muitas vezes ia fazer a barba a Fernando Pessoa inclusive no ltimo dia que o poeta morou nessa rua antes dele ir para o Hospital dos Franceses onde viria a falecer Uns governam o mundo outros s o o mundo Entre um milion rio americano com bens na Inglaterra ou Su a e o chefe socialista da aldeia n o h diferen a de qualidade mas apenas de quantidade Abaixo destes estamos n s os amorfos o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare o mestre escola John Milton o vadio Dante Alighieri o mo o de fretes que me fez ontem o recado ou o barbeiro que me conta anedotas o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me de
350. o de auxiliar e inicial At as artes menores ou as que assim podemos chamar se reflectem m rmuras na prosa H prosa que dan a que canta que se declama a si mesma H ritmos verbais que s o bailados em que a ideia se desnuda 61 Este princ pio tem grandes implica es que exploraremos a fundo tamb m nomeadamente na maneira como a linguagem po tica n o limitada nas suas formula es como o a linguagem normal de todos os dias A liberdade acrescida que o pensador encontra na poesia permite lhe ultrapassar determinadas proposi es l gicas que na viragem do S c XX determinaram que o objecto da filosofia fosse reduzido a muito pouco ou quase nada sinuosamente numa sensualidade transl cida e perfeita E h tamb m na prosa subtilezas convulsas em que um grande actor o Verbo transmuda ritmicamente em sua subst ncia corp rea o mist rio impalp vel do universo O texto um pouco rebuscado mas o seu sentido simples de apreender a prosa mais livre do que o verso H por m um outro sentido de que vale a pena falar o facto da pr pria vida do sujeito po tico n o poder ser paradoxalmente um objecto po tico Quando lemos pela primeira vez este fragmento tivemos a imediata reac o de o ligar a um outro texto po tico de um escritor Alem o chamado Heinner M eller em que ele insistia n o ser um objecto po tico o que o deveria restringir apenas escrita de prosa Ora se Muller v a prosa como u
351. o exterior e n o do mundo interior Onde h apenas solid o n o h necessidade de tempo pois o tempo uma medida socializante da ac o algo que apenas existe quando n s pr prios existimos uns com os outros na realidade exterior N o h significados isto mesmo que nos diz o autor do Livro que passa a viver dentro da sua pr pria prosa porque a maneira do sonho se 225 Cf Livro do Desasocego Tomo p g 27 concretizar precisamente atrav s da prosa po tica O que ele nos relata neste longo texto n o ent o apenas uma vertigem po tica mas uma sensa o real do seu int mo algo que ele viveu e que para ele foi real O sonho para ele algo de real se bem que apenas interiormente Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo las horas de uma imperfei o vazia e t o perfeitas por isso t o diagonais certeza rect ngula da vida Horas imperiais depostas horas vestidas de p rpura gasta horas ca das nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas ang stias E do a nos gozar aquilo do a nos Porque apesar do que tinha de ex lio calmo toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo toda ela era h mida da pompa de um vago t dio triste e enorme e perverso como a decad ncia de um imp rio ignoto A futilidade do sonho assalta tamb m o sujeito po tico na medida em que existe ainda como o temos vindo a real ar a dolorosa oposi o entre a vida f sica
352. o pelas costas dobradas do S rgio que faz guias de remessa um pouco para al m de mim Tenho amor a isto talvez porque n o tenha mais nada que amar ou talvez tamb m porque nada valha o amor de uma alma e se temos por sentimento que o dar tanto vale d lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como grande indiferen a das estrelas 46 Esta passagem que j utiliz mos anteriormente refor a a ideia de que o autor do Livro algu m que continua a ter uma liga o com a realidade por mais t nue que ele seja Ele recolhe se ao escrit rio e diz mesmo que tem um amor a tudo isso ao ambiente formal e impessoal do emprego que o aceita sem querer saber quem ele realmente H um grande cinismo nesta afirma o claro Mas igualmente uma enorme solid o Trata se afinal de algu m que perdeu de certa forma a esperan a de se ligar a outra alma humana de forma sincera e profunda Este homem est profundamente desiludido com a vida ao ponto de a recusar em favor de uma outra vida imaginada Esta desilus o foi o princ pio da sua teoria embora no verdadeiro princ pio possa estar a sua pr pria juventude Que rela o tem ele ent o com o amor Curiosamente a palavra aparece muitas vezes no Livro Quase sempre com esc rnio Vejamos alguns exemplos Um amor um instinto sexual por m n o amamos com o instinto sexual mas com a pressuposi o de outro sentimento E essa pressuposi o com efeito j outro sentim
353. o contacto humano e prefere deambular sozinho do que propriamente ter obriga es sociais Em certa medida esta parece ser uma boa descri o embora linear do pr prio Fernando Pessoa que sabemos n o ter tido amigos pr ximos apenas conhecidos e ter vivido uma vida de solid o muitas das vezes em quartos alugados e sem chegar a formar fam lia Haver certamente uma rela o de causa efeito entre o que escrito por ele e a sua pr pria experi ncia de vida Ou seja n o propriamente a decis o racional de abordar a constru o da meta realidade que se imp e realidade exterior que causa o sentimento de aliena o e subsequente afastamento dessa mesma realidade e de tudo o que nela est contido mas sim o contr rio por se sentir partida alienado da realidade que o autor do Livro come a a construir a sua meta realidade enquanto justifica o racional do seu estado de solid o Como comum em Fernando Pessoa o combate a todos os seus medos acaba sempre por ser um combate racional embora haja muita emo o camuflada nessa racionalidade tentando se uma uma esp cie particular de salva o pela intelig ncia O ponto curioso n o propriamente que ele se tenha tornado num grande poeta e fil sofo por imperativos exteriores negativos afinal quantos grandes escritores n o sofreram o mesmo destino mas antes qual a progress o do efeito desses imperativos na sua obra H que explicar um porme
354. o da inadequa o mas sim pela racionaliza o da utilidade desse sentimento Foi isto mesmo que ele fez a transforma o de um afastamento exterior para uma aproxima o interior o tornar o menos fora num mais dentro este sentimento de estranheza intensa que faz do autor do Livro um verdadeiro transeunte da sua pr pria vida como se observa num outro fragmento Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde seja noite cedo gozo de errar sem pensar entre o que a cidade se torna e ando como se nada tivesse rem dio Agrada me mais imagina o que aos sentidos a tristeza dispersa que est comigo Vago e folheio em mim sem o ler um livro de texto intersperso de imagens r pidas de que vou formando indolentemente uma ideia que nunca se completa Que tenho eu a ver com a vida 176 O mundo enquanto livro de texto intersperso de imagens r pida traz nos uma met fora completa e sint tica sobre a tal atitude individual perante a realidade A conclus o ter de ser que essa sucess o de imagens r pidas um olhar fugaz pelas coisas fora de n s que n o chega ao pormenor de termos de saber o que essas coisas s o representa magnificamente a sensa o global de desamparo do homem perante um mundo que ele n o compreende Este desespero transforma se rapidamente em aliena o mas n o uma aliena o sem fundo isto porque o autor do Livro n o desiste da sua vida sem mais Como j vimos abundamentemente el
355. o de mim muito longe E tudo n tido inevit vel como na vida exterior mas est tica de Morte do Sol 209 O objectivo alto do Livro a teoriza o de uma vida plenamente est tica no sentido em que o ser um ser para si mesmo e simultaneamente um ser para o mundo Ontologicamente estas duas dimens es sobrep em se mas a primeira claramente a dominante No entanto e como bom de perceber imposs vel ter uma exist ncia puramente est tica n s existimos materialmente e expressamo nos materialmente Esse sonho de uma exist ncia puramente est tica no entanto presente em toda a obra de Pessoa e em certa medida o que ele pretende construir com a sua coterie de heter nimos e semi heter nimos e pseud nimos 206 N o h problema sen o o da realidade e esse insol vel e vivo Que sei eu da diferen a entre uma rvore e um sonho Posso tocar na rvore sei que tenho o sonho Que isto na sua verdade Op Cit p g 395 207 Irrealidade que se transporta at para os outros pois ele diz a certo ponto Os outros n o s o para n s mais que paisagem e quase sempre paisagem invis vel de rua conhecida Op Cit p g 380 208 Livro do Desasocego Tomo I p g 480 209 Livro do Desasocego Tomo I p g 35 IV Tendo abordado a quest o da import ncia do sonho e da maneira de nos educarmos a senti lo enquanto nica coisa verdadeira cheg mos conclus o de que o sonhador algu m que s
356. o existe fora das palavras que a enunciam A sua defini o e a sua pr xis dependem da forma como elaborada poeticamente Desde logo porque ela nasceu assim nasceu da necessidade de sonhar um mundo paralelo ao mundo exterior mas tamb m porque assim que ela depois de nascer se desenvolve Na sua base est a palavra e n o existe sem a palavra Podemos at considerar a palavra a base do pr prio sonho pois todos os sonhos s o desenvolvidos pela prosa como bem se comprova ao longo de todo o Livro do Desassossego Sonhar escrever sobre o sonho II A arte consiste em fazer os outros sentir o que n s sentimos Creio que um dos grandes problemas da filosofia do princ pio do S culo XX precisamente a prova da sua pr pria utilidade face a uma sociedade utilitarista e funcional A pergunta para que serve a filosofia sempre pairou desde que o homem come ou a pensar sistematicamente mas apenas na viragem do S culo XX que essa pergunta toma realmente propor es assustadores Por m podemos tamb m perguntar se qualquer filosofia nos verdadeiramente til H duas respostas Por um lado h a resposta contraposta de que a filosofia n o tem de ser til A filosofia pode simplesmente ser uma express o pura da nossa pr pria curiosidade intelectual da vontade humana de desvendar os segredos da nossa pr pria exist ncia Por outro lado podemos ver que a verdadeira utilidade da filosofia ter se di
357. o extremo E enquanto escrita solit ria dificilmente a poder amos considerar estruturada ao ponto de servir de manual de vida para quem a leia Claro que isso n o impede que o Livro continue a ser lido desta maneira mas n o essa a sua verdadeira natureza Ele n o foi escrito para servir de manual de regras existencialista Trata se simplesmente de um reposit rio de reparos Mas h que o dizer reparos de uma vida de algu m reduzido ou maximizado apenas a reparar a ter uma exist ncia plenamente est tica por incapacidade de viver de outra maneira Mais frente poderemos considerar a gravidade destas conclus es mas por agora devemos reflectir sobre o que afinal esta consci ncia a que o autor do Livro est condenado No ponto I fal mos da maneira como enquanto observador o autor do Livro estava numa posi o de afastamento em rela o a tudo o que via Apont mos na altura a raz o para isso a incapacidade de viver uma vida normal Sabemos que a op o pela decad ncia n o verdadeiramente uma op o apenas um resultado inesperado de ele n o conseguir ser feliz 15 Livro do Desasocego Tomo I p g 28 6 Livro do Desasocego Tomo I p g 40 na sua vida exterior Mas chegado a esse resultado teremos de analisar a que ponto ele foi importante no decorrer das suas investiga es Quanto dizemos investiga es devemos fazer um aparte e comentar que o Livro n o nos parece ser uma obra
358. o facto de ele nos dizer que a prosa serve de complemento contempla o est tica das coisas sendo in til enquanto ferramenta de ac o no mundo Retendo da ci ncia somente aquele seu preceito central de que tudo sujeito s leis fatais contra as quais se n o reage independentemente porque reagir elas terem feito que reag ssemos e verificando como esse preceito se ajusta ao outro mais antigo da divina fatalidade das coisas abdicamos do esfor o como os d beis do entretimento dos atletas e curvamo nos sobre o livro das sensa es com um grande escr pulo de erudi o sentida N o tomando nada a s rio nem considerando que nos fosse dada por certa outra realidade que n o as nossas sensa es nelas nos abrigamos e a elas exploramos como a grandes pa ses desconhecidos E se nos empregamos assiduamente n o s na contempla o est tica mas tamb m na express o dos seus modos e resultados que a prosa ou o verso que escrevemos destitu dos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade apenas como o falar alto de quem l feito para dar plena objectividade ao prazer subjectivo da leitura Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contempla es est ticas ser a daquilo que escrevemos Mas imperfeito tudo nem h poente t o belo que o n o pudesse ser mais ou brisa leve que nos d sono que n o pudesse dar nos um sono mais calmo
359. o intuito s o segredo dos Deuses conhece Hoje quando cheguei ao escrit rio um pouco tarde e em verdade esquecido j do acontecimento est tico da fotografia duas vezes tirada encontrei o Moreira inesperadamente matutino e um dos caixeiros de pra a debru ados rebu adamente sobre umas coisas enegrecidas que reconheci logo em sobressalto como as primeiras provas das fotografias Eram afinal duas s de uma daquela que ficara melhor Sofri a verdade ao ver me ali porque como de supor foi a mim mesmo que primeiro busquei Nunca tive uma ideia nobre da minha presen a f sica mas nunca a senti t o nula como em compara o com as outras caras t o minhas conhecidas naquele alinhamento de quotidianos Pare o um jesu ta fruste A minha cara magra e inexpressiva nem tem intelig ncia nem intensidade nem qualquer coisa seja o que for 28 Livro do Desasocego Tomo I p g 352 que a alce da mar morta das outras caras Da mar morta n o H ali rostos verdadeiramente expressivos O patr o Vasques est tal qual o largo rosto prazenteiro e duro o olhar firme o bigode r gido completando A energia a esperteza do homem afinal t o banais e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo s o todavia escritas naquela fotografia como num passaporte psicol gico Os dois caixeiros viajantes est o admir veis o caixeiro de pra a est bem mas ficou quase por tr s de um ombro do Moreira E o
360. o o Rei Lear levaria com remorsos toda a minha vida de depois Porque essa obra t o grande que enormes avultam os seus defeitos os seus monstruosos defeitos as coisas at m nimas que est o entre certas cenas e a perfei o poss vel delas N o o sol com manchas uma est tua grega partida Tudo quanto tem sido feito est cheio de erros de faltas de perspectiva de ignor ncias de tra os de mau gosto de fraquezas e desaten es Escrever uma obra de arte com o preciso tamanho para ser grande e a precisa perfei o para ser sublime ningu m tem o divino de o fazer a sorte de o ter feito O que n o pode ir de um jacto sofre do acidentado do nosso esp rito Se penso nisto entra com minha imagina o um desconsolo enorme Uma dolorosa certeza de nunca poder fazer nada de bom e til para a Beleza N o h m todo de obter a Perfei o excepto ser Deus O nosso maior esfor o dura tempo o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa alma e cada estado de alma como n o outro qualquer perturba com a sua personalidade a individualidade da obra S temos a certeza de escrever mal quando escrevemos a nica obra grande e perfeita aquela que nunca se sonhe realizar Escuta me ainda e compadece te Ouve tudo isto e diz me depois se o sonho n o vale mais que a vida O trabalho nunca d resultado O esfor o nunca chega a parte nenhuma S a absten o nobre e alta porque ela a que reconhece que a realiza
361. o para dentro de si pr prio s poder ser totalmente alcan ado se o indiv duo n o tiver a no o permanente da exist ncia dos outros enquanto almas isso ir pux lo para fora de si pr prio e para a conviv ncia em sociedade em detrimento da evolu o do seu mundo interior que dever ser plenamente imaginado De que maneira se evita o amor mas se reserva a presen a da mulher na imagina o muito curioso que a mulher continue a ser um elemento principal do Livro do Desassossego Curioso sobretudo porque muitos estudiosos da obra de Fernando Pessoa insistem na vis o da mesma como vazia do elemento feminino Poderemos ver que precisamente o oposto O elemento feminino essencial no Livro mas trata se de um feminino simbolizado de um feminino sem exterior O que dissemos pode ser ilustrado com v rias passagens do Livro Num primeiro fragmento intitulado Na Floresta do Alheamento o autor imagina se a passear numa floresta na companhia de uma mulher num cen rio em que toda a realidade normal abandonada A maneira como descrita esta viagem quase poderia ter sido escrita por Ricardo Reis Passe vamos s vezes bra o dado sob os cedros e as olaias e nenhum de n s pensava em viver A nossa carne era nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte D vamo nos as m os e os nossos olhares perguntavam se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilus o do amor Nenhum d
362. o para transportar a realidade exterior a mulher observada e inacess vel para a realidade interior onde ela se torna uma ideia pura que pode ser manipulada que pode mesmo ser amada sem quaisquer consequ ncias exteriores Neste caso nem o facto de a mulher ser uma mulher casada impede que ela possa ser sonhada porque no sonho irrelevante que ela seja casada porque ela idealizada E curioso que a mulher seja mesmo a ser comparada com a pr pria imagina o Ocorrem me com um brilho de farol distante todas as solu es com que a imagina o mulher o suic dio a fuga a ren ncia os grandes gestos da aristocracia da individualidade o capa e espada das exist ncias sem balc o 17 A figura masculina ao longo dos tempos associada sobretudo a ac es a actos concretos e agressivos enquanto que a figura feminina incorpora elementos mais passivos e contemplativos normal ent o que o pr prio Livro possa ser mais um livro feminino do que masculino porque cont m sobretudo ideias passivas e contemplativas Quanto figura feminina propriamente dita e ao amor a vis o final que nos fica uma vis o de completo desprendimento O autor do Livro quer ser um homem totalmente livre e ser livre n o ter compromissos n o o que o prenda e o que prende os homens a realidade exterior Em certa medida ele continua preso por um emprego e por uma rotina de sobreviv ncia mas idealizando a ele consegue libertar s
363. o porque o Livro sobretudo uma hist ria interior em que o exterior nos aparece muitas das vezes apenas enquanto contraposi o ou anti realidade perante a import ncia exponencialmente maior do mundo interior Da minha absten o de colaborar na exist ncia do mundo exterior adv m entre outras coisas um fen meno ps quico curioso Abstendo me inteiramente da ac o desinteressando me das Coisas consigo ver o mundo exterior quando atento nele com uma objectividade perfeita Como nada interessa ou leva a ter raz o para alter lo n o o altero E assim consigo O fragmento anterior ilustra a nossa afirma o enquanto observador puro o autor do Livro n o pretende alterar a realidade e isso permite lhe uma vis o desimpedida da mesma Julgo que deve ser nesta perspectiva que todos os seus textos sobre a cidade devem ser analisados N o s o textos puramente est ticos com o prop sito po tico de retratatar embora de maneira mais ou menos on rica e abstracta uma cidade que ele amava e que considerou sempre ser a sua cidade mas antes textos que marcam profundamente a oposi o entre realidade exterior e realidade interior entre o que visto e o que sentido Continuamente e ao longo de todo o Livro o autor desprende se de tudo o que humano De tudo menos das sensa es pois as sensa es acabam por se tornar tudo para ele Porqu Como vimos na Parte I as sensa es definem uma forma
364. odos os homens em rela o a todos os movimentos dos homens em que acaba por questionar a sanidade da exist ncia do pr prio mundo e dos seus rituais que ele identifica como mist rios As coisas quotidianas ro am mist rios por n s mas apenas quando nos esquecemos de viver a vida apetece dizer Porque quando ele se esquece de viver a vida que acede ao conhecimento evidente da exist ncia dos mist rios Este estado on rico n o ainda natural intuitivo S lo eventualmente na medida em que ele consiga construir o mundo interior com base nos s mbolos do mundo exterior e incorporar em si mesmo a no o da continuidade plena entre interior e exterior O sonho desempenha nos anos 10 um papel ainda embrion rio na sua teoria Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o len o que se tem na algibeira ou se quisermos como se possui a nossa pr pria carne Por mais que se viva a vida em plena desmesurada e triunfante ac o nunca desaparecem o do contacto com os outros o trope ar em obst culos ainda que m nimos o sentir o tempo decorrer 37 Porque aparece a no o da carne na discuss o da natureza do sonho neste fragmento Apenas porque a quest o singular e inicial como possuir o sonho de maneira real da mesma maneira como se possui algo fisicamente Apenas dessa forma se pode considerar substituir a vida pelo sonho o fora pelo dentro Esta quest o
365. omo p g 482 Ao longo deste n mero VII sempre que fal mos do homem superior poder amos substituir superior por sonhador Na verdade o sonhador considerado um homem superior porque substitui a vida real pela vida imaginada e porque desdenha a import ncia da vida real Ele pode usar o sonho atrav s da po tica para investigar o significado da vida e da realidade mas o sonho usado tamb m e simultaneamente como maneira de recusar a import ncia dessa mesma realidade e como forma de afirma o de uma vida diferente superior alienada do quotidiano PARTE IV Creio bem que em um mundo civilizado perfeito n o haveria outra arte que n o a prosa Deixar amos os poentes aos mesmos poentes cuidando apenas em arte de os compreender verbalmente assim os transmitindo em m sica intelig vel de cor N o far amos escultura dos corpos que guardariam pr prios vistos e tocados o seu relevo m bil e o seu morno suave Far amos casas s para morar nelas que enfim o para que elas s o in Livro do Desasocego Tomo I p g 324 I Tenho de escolher o que detesto Chegados a esta altura do nosso estudo s nos basta questionarmo nos da verdadeira fun o desta filosofia que temos vindo a anunciar e que tem no seu centro a nega o da vida exterior Em que medida novo o que o autor do Livro escreve Ou melhor em que medida novo aquilo que ele pr prio representa visto que el
366. onho de amor p lido e tr mulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate Tornar o desejo uma coisa in til e inofensiva no como que sorriso delicado da alma a s s consigo pr pria fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar se nem em dizer se Ao dio adormec lo como a uma serpente prisioneira e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar e no olhar da nossa alma nica atitude compat vel com ser est tica 58 A indiferen a um estado em que o sonhador retira de cada objecto apenas o que ele tem de sonh vel Isto quer dizer que o sonhador pode continuar a observar a realidade exterior desde que ele saiba o que deve retirar dessa observa o Ele n o se deve prender consist ncia dos objectos ou sentimentos antes ao que neles pode ser sonhado Est tica do artif cio A vida prejudica a express o da vida Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia descrever Eu pr prio n o sei se este eu que vos exponho por estas coleantes p ginas fora realmente existe ou apenas um conceito est tico e falso que fiz de mim pr prio Sim assim Vivo me esteticamente em outro Esculpi a minha vida como a uma est tua de mat ria alheia a meu ser As vezes n o me reconhe o t o exterior me pus a mim e t o de modo puramente art stico empreguei a minha consci ncia de mim pr prio Quem sou por detr s desta irrealidade N o sei Devo ser algu m E se n o busco viver
367. onho porque sonho mas n o sofro o insulto pr prio de dar aos sonhos outro valor que n o o de serem o meu teatro ntimo como n o dou ao vinho de que todavia me n o abstenho o nome de alimento ou de necessidade da vida 2 Mas a verdade que tal como acontece com os sonhos o vinho torna se mais do que apenas uma necessidade da vida transforma se ele pr prio numa abstrac o da vida numa maneira de tornar essa mesma vida em s mbolo enquanto forma de escape da realidade Cada qual tem o seu lcool Tenho lcool bastante em existir B bado de me sentir vagueio e ando certo Se s o horas recolho ao escrit rio como qualquer outro Se n o s o horas vou at ao rio fitar o rio como qualquer outro Sou igual E por detr s de isso c u meu constelo me s escondidas e tenho o meu infinito 122 Vemos pelo fragmento anterior que passa a haver uma confus o entre o efeito do alc ol e a exist ncia de sensa es interiores semelhantes ao torpor exterior que adv m do consumo do alc ol Como se o consumo exterior passasse a ser tamb m ele um consumo interior Como se a bebedeira passasse de f sica a sonhada Ter alc ol bastante em existir aqui toma o significado de que toda a realidade exterior consumida pelas sensa es origina uma bebedeira mental do esp rito sente se demasiado como se fica beb do com o alc ol em excesso As sensa es s o por isso mesmo um excesso f sico que se assemelha ao consumo
368. onhos mas n o o dom de sonhar O velho que visto na rua um s mbolo Vemos que sim quando o pr prio autor do Livro o diz Teve para comigo o dever visual de s mbolo acabou e virou a esquina A passagem daquele homem serviu para o transportar para dentro da realidade imaginada do observador distante transformando o de um homem num s mbolo puro para algo superior a sua atitude sonhadora 1 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 180 Devemos perguntarmo nos se na verdade qualquer observa o da realidade exterior tem este aspecto de tornar a mesma em s mbolo de algo interior Penso que sim mas em graus diferentes Observemos por exemplo este curto fragmento Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro O rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar 150 O que aparentemente apenas uma descri o da luz a incidir sobre a gua do rio pode ser analisado mais profundamente Ali s todas as descri es do autor do Livro pode ser analisadas nesta perspectiva ser que ele se limita alguma vez apenas a transcrever directamente aquilo que v Penso que n o H um rendilhado em torno da realidade percepcionada que a transforma atrav s de uma atitude art stica O que na realidade acontece que ele usa o sonho no modo como percepciona a realidade ou melhor percepciona a atrav s do sonho Assim todas as suas percep es s o fict cias mas igualmente simb licas daquilo que percepcionado
369. or atitude passiva que tem os mesmos efeitos pr ticos de uma atitude negativa O autor do Livro n o existe verdadeiramente no mundo exterior pois n o se compromete com ele n o deseja n o actua n o tem ambi es nem estabelece relacionamentos um p ria Um solit rio Ele reduz o ser para o mundo a uma mera m scara de si mesmo esvaziando o e substituindo a ac o pela inac o o acto pelo sonho do acto curios ssimo observar que esta falta de ambi es pode ter muito de budista de zen mas n o pretende reduzir o homem a um asceta Nada desejar um sentimento profundamente oriental mas n o conseguimos adivinhar que juntamente com esse sentimento o autor do Livro sonhe em isolar se realmente Ele ama o seu escrit rio as ruas que percorre e mesmo o seu quarto barato Seja onde estiver recordarei com saudade o patr o Vasques o escrit rio da Rua dos Douradores e a monotonia da vida quotidiana ser para mim como a recorda o dos amores que me n o foram advindos ou dos triunfos que n o haveriam de ser meus 1 curioso que defendendo acerrimamente a aboli o de todo o desejo pelo menos em termos das ambi es materiais o autor do Livro nunca se torna um recluso um ermita Ele continua a viver na cidade tem a sua rotina tem o seu emprego verdade que ele deixa de desejar pois n o quer ser mais do que apenas ajudante de guarda livros mas ele n o deixa de viver exteriormente ele n o vai para
370. or de todas as coisas sem agirem nelas a partir das sombras e dos cacos do sonho de lvaro de Campos que surge o grande cume do Livro Mas n o s Ele suportado por outros v rtices pela indiferen a e estoicismo de Reis pela disciplina e racionalidade de Pessoa e pela recusa e serenidade de Caeiro Todos s o focos da mesma luz dirigidos ao pico dourado que os reflecte para a dist ncia Todos eles servem de base a uma vida imposs vel que a vida de algu m que se constitui na sua pr pria obra e que usa essa obra como m scara absoluta perante o mundo Fernando Pessoa ele pr prio e ou demiurgo do heter nimo sem vida f sica que se deitou em sonho para dentro de um magn fico manual de instru es para quem quiser desaprender de viver Nada poderia estar no cume deste sistema se n o fosse menos absurdo Mas o absurdo desta teoria n o menos absurdo do que a realidade que ela pretende combater Se absurdo sonhar a vida n o pelo menos t o absurdo n o a sonhar limitando nos a apenas viv la Para Pessoa esta a pergunta final que deve ser feita pelo homem moderno pelo homem superior Se temos de desistir desistamos para dentro de n s pr prios Decidamos o nosso pr prio destino e revelemos dentro de n s pr prios todos os significados poss veis da nossa pr pria realidade 1 Cf Livro do Desasocego INCM p g 252 Lisboa 2010 Enfim se n o h universo que nos acolha e que se nos revele criemos o nosso pr
371. or maneira de manter a minha afei o O facto de Pessoa se confundir com a sua pr pria obra n o um acaso nem t o pouco um acidente de personalidade Muitos bi grafos analisam muito superficialmente este facto que ganha uma intensa import ncia agora que nos aproximamos cada vez mais do fim da sua vida Na realidade a posi o de que o poeta tem apenas a biografia que a sua pr pria obra veiculada vezes sem conta por repeti o da frase de Oct vio Paz deve ser liminarmente recusada Se Pessoa deixou de viver activamente para viver apenas em fun o dos objectivos da sua obra isso deve se sobretudo infelicidade de ele n o se ter adaptado vida exterior O facto de ele ter continuado durante muitos anos a dedicar se sua obra e n o recupera o da sua vida exterior deve se incapacidade pr tica de conseguir essa reviravolta E falo na perspectiva dos afectos claro que Pessoa n o era um recluso que se recusasse ao conv vio humano Sabemos muito bem como lhe era dif cil a rela o ntima com os outros e neste preciso aspecto que a sua obra aparece como um substituto f cil aos afectos humanos que lhe apareciam j t o distantes quase imposs veis de conquistar Em conclus o podemos ver como a poesia do sonho em ltima inst ncia catastr fica Trata se do ltimo degrau no incr vel e auto destrutivo caminho da aniquila o do ser para o mundo em favor do ser para si pr prio
372. or pompa o seu nome de rei e que pode ser ris vel como homem mas como rei superior assim o morto pode ser disforme mas superior porque a morte o libertou Fecho cansado as portas das minhas janelas excluo o mundo e um momento tenho a liberdade Amanh voltarei a ser escravo por m agora s sem necessidade de ningu m receoso apenas que alguma voz ou presen a venha interromper me tenho a minha pequena liberdade os meus momentos de excelsis Na cadeira aonde me recosto esque o a vida que me oprime N o me d i sen o ter me do do 28 Julgo que o Livro opera uma grande transforma o no seu autor Relembremos que o Livro n o dele ele claro que muito do Livro s o estados de alma mas preciso lembrar que s o estados de alma puros sem grande pensamento racional quase elaborados em estado de medita o transcendental embu dos de emotividade n o filtrada Mas talvez por vontade n o planeada o facto que o Livro acaba por estabelecer uma teoria coerente ao longo das suas muitas p ginas fragment rias E essa teoria uma teoria da morte do mundo real para o nascimento de um mundo ideal usando o sonho enquanto principal ferramenta Se o resto da obra de Pessoa escrita num estado realista o Livro escrito num estado idealista num estado de sonho ou de melancolia que se adapta melhor ao sonho O autor do Livro existe sempre neste estado fluido e inst vel num estado on r
373. oreira de entre para l das duas prateleiras do meu al ado Era uma troca de nomes que eu ia fazendo e acalmei os pulm es ao falar Ah disse o Moreira rapidamente e a paz poeirosa desceu de novo sobre o escrit rio e sobre mim 8 O mo o do escrit rio Ant nio Talvez a refer ncia pessoal em termos profissionais que feita no Livro seja a referente ao mo o do escrit rio ou mo o de fretes Ant nio Foi se hoje embora diz se que definitivamente para a terra que natal dele o chamado mo o do escrit rio aquele mesmo homem que tenho estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto como parte de mim e do mundo que meu Foi se hoje embora No corredor encontrando nos casuais para a surpresa esperada da despedida dei lhe eu um abra o timidamente retribu do e tive contra alma bastante para n o chorar como em meu cora o desejavam sem mim meus olhos quentes 94 Livro do Desasocego Tomo I p g 351 2 95 Livro do Desasocego Tomo I p g 196 96 Livro do Desasocego Tomo I p g 200 97 Livro do Desasocego Tomo I p g 276 98 Livro do Desasocego Tomo I p g 283 Cada coisa que foi nossa ainda que s pelos acidentes do conv vio ou da vis o porque foi nossa se torna n s O que se partiu hoje pois para uma terra galega que ignoro n o foi para mim o mo o do escrit rio foi uma parte vital porque visual e humana da subst ncia da minha vida Fui hoje diminu do J n o s
374. ormalmente til para a comunidade de indiv duos Quando o autor do Livro diz que ter consci ncia de si pr prio foi uma moral pensamos que ele se refere ao facto de mais uma vez se inverterem a prioridade entre sociedade de indiv duo aqui 76 Livro do Desasocego Tomo I p g 121 Livro do Desasocego Tomo I p g 149 o indiv duo o mais importante e a sua moral uma moral individual que se aproxima mais da tica do ethos Esta falta dos deveres sociais bem evidente num fragmento que reproduzimos de seguida Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral J a palavra dever para mim desagrad vel como um intruso Mas os termos dever c vico solidariedade humanitarismo e outros da mesma estirpe repugnam me como porcarias que despejassem sobre mim de janelas Sinto me ofendido com a suposi o que algu m porventura fa a de que essas express es t m que ver comigo de que lhes encontro n o s uma valia mas sequer um sentido 78 evidente o desacordo com a necessidade de actos morais em sociedade dos chamados actos c vicos ou em prol do bem comum Este um ponto de vista iminentemente individualista de algu m que n o acredita na humanidade como um todo mas antes no poder do indiv duo Mas isso n o quer dizer que ele n o continue a ter ju zos morais exteriores curioso verificar que em muitos fragmentos s o usadas express es como estatura moral ou m
375. ormente mas usando uma representa o simb lica de si pr prio Quem o conhece exteriormente n o o conhece Est tica do desalento Publicar se socializa o de si pr prio Que ign bil necessidade Mas ainda assim que afastada de um acto o editor ganha o tip grafo produz O m rito da incoer ncia ao menos Uma das preocupa es maiores do homem atingida a idade l cida talhar se agente e pensante imagem e semelhan a do seu ideal Posto que nenhum ideal encarna tanto como o da in rcia toda a l gica da nossa aristocracia de alma ante as ruidosidades e exteriores modernas o Inerte o Inactivo deve ser o nosso Ideal F til Talvez Mas isso s preocupar como um mal aqueles para quem a futilidade um atractivo O ltimo fragmento que citamos refere se ao desalento Esta parte da est tica tem a ver na nossa opini o muito mais com a express o de um sentimento do que propriamente com a constru o desta nova realidade O autor avisa nos para o perigo do esmorecimento do des nimo no processo longo e complexo de nos afastarmos do mundo e de n s mesmos Ao longo desse mesmo processo ele sugere a atitude aristrocr tica enquanto solu o para esse mesmo des nimo A refer ncia tamb m ela simb lica Ele quer apenas dizer que o aristocrata aprendeu a conviver com a realidade atrav s de um filtro o protocolo o ritual simples que lhe permite n o encarar a realidade frente a frente sem mais Ele
376. os homens na mesma mec nica doentia embora a controle Deus a alma dos brutos mas quase parece que Deus 66 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 269 enquanto l gica por detr s dos seus movimentos e da sua insconci ncia feito dessa pr pria inconsci ncia e preso por ela est limitado pela mesma pris o que cobre os homens que a vivem Esta vis o de Deus enquanto relojoeiro universal assim que o autor do Livro se refere a ele mais frente no mesmo fragmento n o nova nem impregnada de especial sentido metaf sico O autor do Livro chega conclus o da exist ncia de Deus apenas por instinto por ter conseguido separar se a si pr prio da realidade imanente ele v Deus porque v a pr pria realidade de fora esta vis o exterior que lhe permite o acesso a uma verdade por instinto A lus evidente que lhe revela esta verdade consequ ncia do seu afastamento do mundo por ele n o pertencer ao mundo que o compreende por dist ncia Podemos perceber que ele afastando se tamb m recusa em certa medida ser como os outros Ou seja ele acredita num Deus que mecaniza a exist ncia inconsciente dos homens deitados a uma organiza o doentia mas acredita nele pr prio enquanto afastado dessa necessidade ele ent o algu m que n o acredita em Deus dentro de si pr prio E poss vel acreditar em Deus mas apenas um Deus dos outros Penso que esta pergunta n o pode ainda ter
377. os objectos do mundo exterior afasta se tamb m da necessidade de ele ter de ser como eles como os outros homens com uma fun o definida que o ultrapassa e o desumaniza por completo H tamb m em seguimento o medo dos rituais que parece ser na verdade o medo da ac o Quando lhe apetece comprar as belas bananas amarelas ainda mais amarelas ao sol do dia ele pensa duas vezes tenho vergonha dos rituais dos s mbolos de comprar coisas na rua Podiam n o me embrulhar bem as bananas n o mas vender como devem ser vendidas por eu as n o saber comprar como devem ser compradas Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o pre o Mais vale escrever do que ousar viver Mais vale escrever do que ousar viver A distin o clara entre a consci ncia da vida pela escrita e a ac o propriamente dita na realidade exterior tamb m claro que poss vel pelo menos na mente do autor do Livro pensar a vida sem a viver ele faz expressamente essa distan o essa dicotomia entre pensar e viver certo que o medo dos rituais perpassa o tal medo da inadequa o que evidente em toda a escrita de Fernando Pessoa porque ele se torna um recluso de si mesmo sem grande actividade exterior que n o seja a interac o com algumas pessoas do seu c rculo restrito mas mais certo ainda que esse medo n o existe s por si H que ir mais al m e aceitar que algu m como Pessoa n o se ficaria pelo sentiment
378. os que me v em como a minha voz que tipo de figura deixo escrita na mem ria involunt ria dos outros de que maneira os meus gestos as minhas palavras a minha vida aparente se gravam nas retinas da interpreta o alheia N o consegui nunca ver me de fora N o h espelho que nos d a n s como foras porque n o h espelho que nos tire de n s mesmos Era precisa outra alma outra coloca o do olhar e do pensar Se eu fosse actor prolongado de cinema ou gravasse em discos aud veis a minha voz alta estou certo que do mesmo modo ficaria longe de saber o que sou do lado de l pois queira o que queira grave se o que de mim se grave estou sempre aqui dentro na quinta de muros altos da minha consci ncia de mim 10 109 Livro do Desasocego Tomo I p g 410 110 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 213 O autor do Livro diz nos que na nossa vida quotidiana comum n o vermos os outros enquanto almas mas apenas enquanto presen as f sicas externas Da mesma maneira n o nos costumamos ver a n s pr prios enquanto presen as f sicas mas sim enquanto almas Trata se em ess ncia de uma quest o de percep o individual Acontece que apenas em duas ocasi es este paradigma muda no amor e no conflito No amor e no conflito temos finalmente e excepcionalmente a percep o dos outros enquanto almas como outros eus E isto um perigo imenso para a afirma o individual do sonho Porqu O alheament
379. os sonhos se me erguem em coisas n o para me substitu rem a realidade mas para se me confessarem seus pares em eu os n o querer em me surgirem de fora como o el ctrico que d a volta na curva extrema da rua ou a voz do apregoador nocturno de n o sei que coisa que se destaca toada rabe como um repuxo s bito da monotonia do entardecer Passam casais futuros passam os pares das costureiras passam rapazes com pressa de prazer fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que s o donos das lojas Lentos fortes e fracos os recrutas sonambulizam em molhos ora muito ruidosos ora mais que ruidosos Gente normal surge de vez em quando Os autom veis ali a esta hora n o s o muito frequentes esses s o musicais No meu cora o h uma paz de ang stia e o meu sossego feito de resigna o Passa tudo isso e nada de tudo isso me diz nada tudo alheio ao meu destino alheio at ao destino pr prio inconsci ncia carambas ao desprop sito quando o acaso deita pedras ecos de vozes inc gnitas salada colectiva da vida 46 Se h um modo de atingir uma contempla o plena da vida esse modo exige naturalmente que o observador o contemplador ou reparador note as coisas enquanto coisas e n o enquanto sensa es que o afectam directamente a ele Parece haver uma distin o importante entre aquilo que visto e sentido enquanto coisa em si e tudo o
380. oss vel conseguir em acto ou palavras A consci ncia do trabalho perfeito a fartura da obra obtida suave o sono sob essa sombra de rvore no ver o calmo 2 Pensamos que o drama em gente tem por base o objectivo principal de simular um mundo interior em que tudo poss vel e sobretudo onde poss vel descobrir a verdade Fernando Pessoa constr i tr s personalidades principais atribui lhes biografias completas e divide se a si pr prio para lhes dar consist ncia real Cada uma dessas vidas um drama e todas elas entre si outro drama 68 Pessoa queria ser o maior dos poetas dram ticos para al m de Shakespear A maneira como o fez foi criando um drama real dentro de si pr prio o seu drama encarnou nas personagens que trouxe vida para fora do papel Shakespear teve de escrever pe as para encarnar os seus dramas Pessoa criou vidas inteiras Esta a diferen a essencial que ele coloca entre si e o Bardo e assim que ele se considera superior a ele A base do seu g nio a poesia mas a base da poesia um processo filos fico de desintegra o do eu em outros eu da dissolu o do ser em ser outros E a nica maneira de fazer isso atrav s do sonho e da pr pria dissolu o da realidade em outra realidade ineg vel que se encontra um sistema por detr s de obra Pessoana e que esse sistema um sistema filos fico Que sistema esse Demos lhe um nome chamando o de n o existencialismo no sent
381. ou bem o mesmo O mo o do escrit rio foi se embora Tudo que se passa no onde vivemos em n s que se passa Tudo que cessa no que vemos em n s que cessa Tudo que foi se o vimos quando era de n s que foi tirado quando se partiu O mo o do escrit rio foi se embora mais pesado mais velho menos volunt rio que me sento carteira alta e come o a continua o da escrita de ontem Mas a vaga trag dia de hoje interrompe com medita es que tenho que dominar for a o processo autom tico da escrita como deve ser N o tenho alma para trabalhar sen o porque posso com uma in rcia activa ser escravo de mim O mo o do escrit rio foi se embora Sim amanh ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida eu tamb m serei quem aqui j n o est copiador antigo que vai ser arrumado no arm rio por baixo do v o da escada Sim amanh ou quando o Destino disser ter fim o que fingiu em mim que fui eu Irei para a terra natal N o sei para onde irei Hoje a trag dia vis vel pela falta sens vel por n o merecer que se sinta Meu Deus meu Deus o mo o do escrit rio foi se embora Para al m do Vasques do Moreira do Borges e de todos os outros empregados o autor do Livro parace ter sido mais pr ximo pelo menos em esp rito do mo o de fretes talvez porque tal como ele a sua posi o era rasa na empresa sem grande import ncia A sa da daquele elemento da empresa
382. pa o e no tempo Pessoa j n o o consegue fazer pois a sua saudade n o tanto uma saudade de um lugar e um tempo espec ficos mas antes apenas de um tempo Nobre um exilado do mundo um expatriado Pessoa um exilado de si pr prio E isto que torna S um livro muito mais visceral do que o Livro do Desassossego Tudo o que concretizado e real no primeiro exponenciado a sentimentos e emo es puras no segundo Mas na ess ncia ambos se baseiam num sentimento de tristeza Recordemos novamente o papel e significado deste termo em Pessoa Eu n o sou pessimista sou triste 7 Pessoa n o considera a tristeza como sendo um estado emocional puro mas antes uma posi o determinada do sujeito face realidade Pode defender se que esta posi o uma posi o intelectual ou racional perante a tristeza e a saudade Seja como for f cil de ver como Pessoa poderia considerar a sua posi o como uma posi o superior de Nobre Sendo o seu livro mais triste do que o de Nobre isso teria tamb m o significado de a sua concep o de tristeza poder ser igualmente superior H que recordar igualmente a vontade que Pessoa tinha de se afirmar perante os seus pr prios mestres e respectivas obras H claramente a vontade de ultrapassar Ces rio Verde em Caeiro de ultrapassar Cam es em Mensagem at Whitman em Campos e Hor cio em Reis A obra heteron mica em conjunto pretendia em ltima inst ncia
383. padece Na vasta col nia do nosso ser h gente de muitas esp cies pensando e sentindo diferentemente Neste mesmo momento em que escrevo num intervalo leg timo do trabalho hoje escasso estas poucas palavras de impress o sou o que as escreve atentamente sou o que est contente de n o ter nesta hora de trabalhar sou o que est vendo o c u l fora invis vel de aqui sou o que esta pensando isto tudo sou o que sente o corpo contente e as m os ainda vaga mente frias E todo este mundo meu de gente entre si alheia projecta como uma multid o diversa mas compacta uma sombra nica este corpo quieto e escrevente com que reclino de p contra a secret ria alta do Borges onde vim buscar o meu mata borr o que lhe emprestara Penso que s poss vel entender o acto de observar ou reparar na natureza enquanto um acto instintivo de separa o entre o eu interior e o mundo exterior no momento em que nasce a consci ncia do mundo exterior que o eu pode tamb m ele come ar a ter consci ncia de si pr prio trata se por isso de um decisivo processo multifuncional em que tanto a consci ncia de si pr prio como a consci ncia do mundo se interligam e apenas funcionam nessa interliga o A prolixidade de si mesmos que o autor do Livro refere n o por isso mesmo parte de um poss vel fen meno de desmultiplica o de personalidade mas antes um fen meno da parti o de consci ncias por assim dizer
384. pados mera terra an nima do ch o de toda a parte minha irm porque a vossa insensibilidade minha alma um carinho e um repouso Conjunto ao sol ou sob a lua da Terra minha m e t o enternecidamente minha m e porque n o podes criticar me sequer como a minha pr pria m e humana pode porque n o tens alma com que sem pensar nisso me analises nem r pidos olhares que traiam pensamentos de mim que nem a ti pr pria confesses Mar enorme meu ruidoso companheiro da inf ncia que me repousas e me embalas porque a tua voz n o humana e n o pode um dia citar em voz baixa a ouvidos humanos as minhas fraquezas e as minhas imperfei es C u vasto c u azul c u pr ximo do mist rio dos anjos tu n o me olhas com olhos verdes tu se p es o sola teu peito n o o fazes para me atrair nem se te de estrelas o antefazes para me desdenhar Paz universa da Natureza materna pela sua ignor ncia de mim sossego afastado dos tomos e dos sistemas t o irm o no teu nada poder saber a meu respeito Eu queria orar vossa imensidade e vossa calma como mostra de gratid o por vos ter e poder amar sem suspeitas nem d vidas queria dar ouvidos ao vosso n o poder ouvir e v s sempre nos ouvindo dar olhos a vossa sublime cegueira mas v s a verdes e ser objecto das vossas aten es por esses supostos olhos e ouvidos consolado de ser presente ao vosso Nada atento como de uma morte definitiva para longe sem esperan a de outra vida pa
385. parece momentaneamente desmoronar a realidade exterior fixa na qual o autor do Livro se apoiava Isso emociona o ao ponto de haver mesmo o transbordar de um sentimento real para o exterior embora talvez ele estivesse mais emocionado pela queda do seu mundo fixo do que propriamente pela perda da companhia do seu colega ocasional de emprego H que ver que o mundo do escrit rio se forma numa esp cie de quadro familiar simb lico encimado pela figura do Vasques e com os sucessivos graus de parentesco simulado Um quadro que substitui uma outra realidade tamb m ela inexistente o pai e a m e mortos h muito tempo e a falta de amigos pr ximos O escrit rio substitui se completamente a esse universo familiar ausente Mas mais do que isso substitui se a toda a ac o exterior por parte do autor do Livro Devemos lembrar que este um homem recluso de si mesmo que passa grande parte do seu tempo a escrever sem rela es humanas relevantes A nica quebra no seu dia interior precisamente o momento em que sai para o emprego a perman ncia l e o seu regresso Podemos mesmo dizer que toda a sua vida exterior se resume vida de escrit rio e que o escrit rio assim resume para ele a realidade fora do seu pr prio quarto seja de maneira simb lica ou literal Sinal que essa substitui o ocorre a continuidade que ele d entre o seu quarto e o escrit rio porque ele acaba por escrever muito no escrit rio sobretudo quando fic
386. parigas de rapazes e de uns com outras deixam cair como esmolas da ironia na escola invis vel da minha medita o aberta E sempre a mesma sucess o das mesmas frases E ent o ela disse e o tom diz da intriga dela Se n o foi ele foste tu e a voz que responde ergue se no protesto que j n o oi o Disseste sim senhor disseste ea voz da costureira afirma estridentemente Minha m e diz que n o quer 1 Livro do Desasocego Tomo I p g 260 60 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 369 16l Livro do Desasocego Tomo 1 p g 226 Eu e o pasmo do rapaz que traz o lunch embrulhado em papel manteiga n o me convence nem deve convencer a loura suja Se calhar era e o riso de tr s das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que E ent o pus me mesmo diante do gajo e ali mesmo na cara dele na cara dele hein Z e o pobre diabo mente pois o chefe do escrit rio sei pela voz que o outro contendor era chefe do escrit rio que desconhe o n o lhe recebeu na arena entre as secret rias o gesto de gladiador de palhinhas E ent o eu fui fumar para a retrete ri o pequeno de fundilhos escuros Outros que passam s s ou juntos n o falam ou falam e eu n o oi o mas as vozes todas s o me claras por uma transpar ncia intuitiva e rota N o ouso dizer n o ouso diz lo a mim mesmo em escrita ainda que logo a cortasse o que tenho visto nos olhares casuais na sua direc
387. pebras de gato ao sol os movimentos da l gica da minha imagina o desprendida Vou sentindo sumirem se me os privil gios da penumbra e os rios lentos sob as rvores das pestanas entrevistas e o sussurro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos ouvidos e o vago perdurar de chuva Vou me perdendo at vivo Vou me perdendo at vivo uma express o especialmente intensa e marcante Como se a morte que adv m com a noite fosse uma morte renascimento em que na verdade o vivo do dia falso morre para a noite vivendo realmente verdadeiro Estar vivo contraditoriamente algo de desprez vel e comum noite que enquanto a inconsci ncia manda que os melhores sonhos podem nascer e onde a pr pria personalidade oculta e total se liberta sem os constrangimentos do quotidiano dos deveres sociais das obriga es profissionais ou de amizade O dia que nasce que o chama como a um tribunal p e a sua pr pria personalidade em cheque pois ele imagina a diferente durante a noite do seu sonho O dia a amea a vis vel aos seus sonhos que reinam na noite bom de ver que estas descri es da realidade j n o s o t o simples como no in cio do Livro e revestem se de um grau de complexidade novo e menos evidente Ele n o liga s s os seus sentimentos interiores realidade exterior por exemplo ligando a tristeza do dia de chuva sua pr pria sensa o de tristeza interior mas antes analisa a realidade
388. pecto primeiro lido de imposs vel n o f cil mas est longe de conter dificuldades para os industriados na mentira interior Mas eminentemente realiz vel E ent o conseguido isso que sabor a sangue e a doen a que estranho travo de gozo long nquo e decadente que a dor e o sofrimento vestem Doer aparenta se com o inquieto e magoante auge dos espasmos Sofrer o sofrer longo e lento tem o amarelo ntimo da vaga felicidade das convalescen as profundamente sentidas E um requinte gasto a desassossego e a dol ncia aproxima essa sensa o complexa da inquieta o que os prazeres causam na ideia de que fugir o e a dol ncia que os gozos tiram do antecansa o que nasce de se pensar no cansa o que trar o H um terceiro m todo para subtilizar em prazeres as dores e fazer das d vidas e das inquieta es um mole leito o dar s ang stias e aos sofrimentos por uma aplica o irritada da aten o uma intensidade t o grande que pelo pr prio excesso tragam o prazer do excesso assim como pela viol ncia sugiram a quem de h bito e educa o de alma ao prazer se vota e dedica o prazer que d i porque muito prazer o gozo que sabe a sangue porque feriu E quando como em mim requintador que sou de requintes falsos arquitecto que me construo de sensa es subtilizadas atrav s da intelig ncia da abdica o da vida da an lise e da pr pria dor todos os tr s m todos s o empregados conjunta mente quando uma do
389. pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza curioso lembrar o que representava a Natureza para os outros heter nimos Caeiro acreditava numa Natureza afastada do homem ou melhor de um homem cada vez mais afastado da Natureza em virtude de a querer compreender J lvaro de Campos identificava a Natureza sobretudo onde existiam homens e mecanismos a Natureza estava em todo o lado permeava todos os significados caoticamente Qual a Natureza do autor do Livro Devemos respeitar a no o de Fernando Pessoa que arruma os seus heter nimos em volta das sensa es do sensacionismo para definir a sua rela o com a realidade imanente Pesso diz nos que tanto Reis quanto Caeiro e Campos s o na base disc pulos da mesma vis o espiritual do mundo Apenas se distinguem pelo grau em que acreditam nela Caeiro seria o extremista com uma no o m stica da sensa o enquanto sensa o em si mesma Reis o pr tico sensato Campos o ritualista Se Caeiro se perde na Natureza Campos perde se nas sensa es Reis um pouco distanciado de qualquer compromisso acaba por ser o nico disposto a um caminho m dio O autor do Livro tamb m ref m das suas sensa es No in cio desta Parte II salient mos isso mesmo escolhando para a encimar um fragmento em que ele diz expressamente A nica realidade para mim s o as minhas sensa es Eu sou uma sensa o minha De certa maneira s seria poss vel que el
390. podemos diz lo um fundamento liter rio de uma filosofia Sen o como se explicariam afirma es deste g nero Princ pios do Sensacionismo 1 Todo o objecto uma sensa o nossa 2 Toda a arte a convers o duma sensa o em objecto 3 Portanto toda a arte a convers o duma sensa o numa outra sensa o 199 Fernando Pessoa P ginas ntimas e de Auto Interpreta o p g 168 1 A sensa o como realidade essencial 2 Aarte personaliza o da sensa o isto a substrac o da sensa o ser em comum com as outras 3 12 regra sentir tudo de todas as maneiras Abolir o dogma da personalidade cada um de n s deve ser muitos A arte aspira o do indiv duo a ser o universo O universo uma coisa imaginada a obra de arte 4 22 regra abolir o dogma da objectividade A obra de arte uma tentativa de provar que o universo n o real 5 32 regra abolir o dogma da dinamicidade A obra de arte visa a fixar o que s aparentemente passageiro 6 S o estes os tr s princ pios do Sensacionismo considerado apenas como arte 7 Considerado como metaf sica o Sensacionismo visa a n o compreender o universo A realidade a incompreensibilidade das coisas Compreend las n o compreend las 200 Ao dizer que todo o objecto uma sensa o nossa e que toda a arte a convers o duma sensa o em objecto Fernando Pessoa parece construir um manual para a desconstru
391. por certo houvesse fora um sol e um dia via se claramente para fim nenhum no sil ncio rumoroso da floresta 188 Julgo que a maioria dos textos similares ao que reproduzimos em cima revela precisamente essa aliena o relativamente ao mundo exterior que vai dominar todos os outros sentimentos sobretudo aqueles de proximidade com os outros homens Lembremos que este um afastamento do Mundo e dentro do mundo est o todas as outras coisas que existem para al m de n s pr prios e est o sobretudo os outros com quem falamos com quem partilhamos momentos e emo es os outros que amamos e repudiamos Essas rela es humanas ficam definitivamente em causa a partir do momento em que o autor do Livro repudia o Mundo Mesmo que ele continue a agir aparentemente da mesma forma a sua convic o mudou radicalmente ele deixou de acreditar na verdade do mundo e consciente dessa decis o n o vai conseguir ser sincero em nenhuma coisa exterior Cada desilus o apenas vai refor ar este sentimento de aliena o exterior e facilmente mais desilus es aparecem a partir do momento em que ele deixa de acreditar na validade do mundo exterior E como ele continua um observador necessariamente atento da realidade exterior e vai passar a n o conseguir participar dela minimamente porque a negou a sua dor vai aumentar na dimens o exacta do sacr f cio a que se prop s Sim Porque negar a realidade imanente a pior coisa que algum homem pode a
392. portante para a constru o deste sistema Um sistema que roda em volta do ser Ele pr prio nos disse O problema central da filosofia a filosofia que a si pr pria se p e como problema Por que precisamos de filosofia A id ia fundamental do ser ou da realidade ou da verdade eis o que procuramos na Filosofia A Filosofia a demanda do ser O que o Ser o que a realidade Este o problema da filosofia ss Vejamos 1 O problema central da filosofia o da sua utilidade 2 O que procuramos na filosofia a demanda do ser Coloquemos agora sobreposta a estes dois princ pios toda a Obra Pessoana O que temos Uma constru o dispersa po tica assente em bases fluidas mas bases fundadoras ontol gicas o que o Ser questionado por Pessoa na forma da sua constru o de personalidades m ltiplas O que a realidade questionado usando as cria es do ser essas mesmas personalidades m ltiplas Qual a forma que o poeta usa para fugir aos limites da l gica Usando a poesia enquanto cifra da sua teoria filos fica que fica plenamente escondida perante o mais comum dos observadores que v apenas poemas apenas textos po ticos desgarrados sem conseguir adivinhar a coer ncia por detr s deles poss vel que nem o Fernando Pessoa estivesse plenamente consciente deste plano como aranha presa a tecer dentro da sua pr pria rede era lhe certamente dificil sen o mesmo imposs vel ter uma v
393. poss vel entrar em pormenor na an lise das coisas pertencentes consci ncia interior indo muito para al m da simples assun o desta enquanto fen meno ineg vel ou mesmo n meno de um fen meno imanente de si mesmo O que pretendemos abordar simples como que este indiv duo que observa o exterior come a a explorar a sua pr pria exist ncia interior desligada que esta desse mesmo exterior 189 Livro do Desasocego Tomo l p g 403 1 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 406 Ele povoa se de v rios eus precisamente por esse acto de iminente solid o Ele tem de existir sozinho porque em ess ncia todos existimos sozinhos quando nos chega a consci ncia pesada da exist ncia em si mesma A vida em sociedade a vida dos homens comuns feita do oposto dessa consci ncia de si mesmo a inconsci ncia que a torna poss vel que a maximiza que a potencia Quanto maior a inconsci ncia se pr prio mais ambiciono o homem se torna mais ele se enreda nos fen menos da realidade exterior mais ele ama mais ele luta mais ele se esquece da ess ncia da sua pr pria exist ncia O esquecimento assim a base da exist ncia inconsciente Ora como vemos ao longo do Livro do Desassossego todos os seus fragmentos inclassific veis talvez em qualquer tentativa de os agregar s o por m categoriz veis como sendo lembran as constantes dessa consci ncia de si pr prio da necessidade de n o adormecer na inconsci ncia do mu
394. processo din mico de interac o entre ser e mundo A posi o ideal do observador uma posi o est tica e contemplativa Ser o pr prio autor do Livro a dizer nos isso mesmo Um dia 143 Livro do Desasocego Tomo I p g 160 1 Em vez de almo ar necessidade que tenho de fazer acontecer me todos os dias fui ver o Tejo e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei til alma v lo Ainda assim Viver n o vale a pena S olhar que vale a pena Poder olhar sem viver realizaria a felicidade mas imposs vel como tudo quanto costuma ser o que sonhamos O xtase que n o inclu sse a vida Criar ao menos um pessimismo novo uma nova nega o para que tiv ssemos a ilus o que de n s alguma coisa ainda que para mal ficava 144 Veja se como bvia a conclus o S olhar que vale a pena Esta posi o uma posi o de algu m que abdicou claramente da vida mas que n o pode abdicar completamente dela porque isso imposs vel neste paradoxo que a sua contempla o vive ancorada na necessidade dele pr prio existir e ter um quotidiano mas no objectivo proibido de se imaginar afastado desse princ pio mais b sico da pr pria exist ncia no mundo Embora seja pouco evidente como ele conseguir tornar poss vel uma s ntese de opostos com base nestas proposi es contradit rias a tentativa seguir por muitas centenas mesmo milhares de p ginas A sua vis o do mundo afasta s
395. quanto princ pio fundador da sua filosofia A pergunta fundamental por m saber o que acontece ao eu com a import ncia acrescida do corpo est tico A dimens o plenamente est tica da exist ncia exterior constitui se como um perigo paradoxal para a exist ncia da pr pria personalidade que como bem se compreende apenas deve ser para os outros A exist ncia normalmente entendida como uma exist ncia exterior n s existimos porque somos reconhecidos pelos outros pelo nosso ambiente e porque em ltima inst ncia reconhecemos a nossa pr pria exist ncia exterior Ora assim que o autor do Livro assume que a sua exist ncia n o uma exist ncia exterior ele p e em causa este princ pio Ele pretende apenas existir interiormente ou pelo menos existir verdadeiramente no interior sendo que o seu interior ser uma m scara de si pr prio o tal corpo est tico Mas qu Que h no ar alto mais que o ar alto que n o nada Que h no c u mais que uma cor que n o dele Que h nesses farrapos de menos que nuvens de que j duvido mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol j submisso Que h em tudo isto sen o eu Ah mas o t dio isso s isso que em tudo isto c u terra mundo o que h em tudo isto n o sen o eu 70 Embora o fragmento anterior tenha implica es mais vastas podemos ver como o autor do Livro considera que toda a realidade deve ser
396. que Posso amar sem me recusarem ou me tra rem ou me aborrecerem Posso mudar de amada e ela ser sempre a mesma E se quiser que me traia e se me esquive tenho s ordens que isso me aconte a e sempre como eu quero sempre como eu o gozo Em sonho posso viver as maiores ang stias as maiores torturas as maiores vit rias Posso viver tudo isso tal como se fora da vida depende apenas do meu poder em tornar o sonho v vido n tido real Isso exige estudo e paci ncia interior H v rias maneiras de sonhar Uma abandonar se aos sonhos sem procurar torn los n tidos deixar se ir no vago e no crep sculo das suas sensa es inferior e cansa porque esse modo de sonhar mon tono sempre o mesmo H o sonho n tido e dirigido mas a o esfor o em dirigir o sonho trai o artif cio demasiadamente O artista supremo o sonhador como eu o sou tem s o esfor o de querer que o sonho seja tal que tome tais caprichos e ele desenrola se diante dele assim como ele o desejaria mas n o poderia conceber sem justifica o de faz lo Quero sonhar me rei Num acto brusco quero o E eis me s bito rei dum pa s qualquer Qual de que esp cie o sonho mo dir Porque eu cheguei a esta vit ria sobre o que sonho que os meus sonhos trazem me sempre inesperadamente o que eu quero Muitas vezes aperfei oo ao traz la n tida a ideia cuja vaga ordem apenas recebera Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Idades
397. que o ltimo est dio da sua evolu o muitas vezes descrito como sendo uma liberta o uma quebra dos ciclos de reencarna es Embora os princ pios fundadores do budismo sejam princ pios de ac o relacionados com ac es entre indiv duos o objectivo final do budismo metaf sico e n o material a fuga ao sofrimento ou nirvana A novidade trazida por Pessoa no Livro um paradigma potencialmente revolucion rio Para fugir ao sofrimento n o temos de fugir do mundo material como Buda refugiando nos numa vida de ascetismo mon stico sem contacto directo com as ac es do mundo Basta que invertamos a import ncia do material pelo espiritual que substituamos as ac es pelo sonho o mundo real pelo mundo ideal efectivamente sonhando a nossa vida e passando a vivermos numa vida totalmente sonhada por n s O autor do Livro nunca fala da fuga da realidade Ele continua sempre a ser o ajudante de Guarda Livros com a mesma vida com a mesma rotina Ali s o mantra dessa rotina que o ajuda a sonhar melhor como se essa rotina o ajudasse a mergulhar nesse estado hipn tico de recusa da realidade em favor do sonho A tal vida nula n o assim necessariamente negativa Na realidade sem a nulidade da vida n o poss vel aceder plenamente vida sonhada A vida sonhada exige o esvaziamento da vida exterior em favor da vida interior Recordamos neste momento uma passagem muito famosa de u
398. quelas sensa es a que eu chamo minhas A verdade uma coisa exterior N o posso ter a certeza dela porque n o uma sensa o minha e eu s destas tenho a certeza Uma sensa o minha De qu Procurar o sonho pois procurar a verdade visto que a nica verdade para mim sou eu pr prio Isolar me tanto quanto poss vel dos outros respeitar a verdade in Livro do Desasocego Tomo I p g 495 I Reparava extradordinariamente para as pessoas Num texto do Livro indicado como pertencendo ao Pref cio e com data presumida de 1917 o autor do mesmo descrito por Fernando Pessoa que o encontra num restaurante de sobreloja nestes moldes Era um homem que aparentava trinta anos magro mais alto que baixo curvado exageradamente quando sentado mas menos quando de p vestido com um certo desleixo n o inteiramente desleixado Na face p lida e sem interesse de fei es um ar de sofrimento n o acrescentava interesse e era dif cil definir que esp cie de sofrimento esse ar indicava parecia indicar v rios priva es ang stias e aquele sofrimento que nasce da indiferen a que prov m de ter sofrido muito Jantava sempre pouco e acabava fumando tabaco de on a Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam n o suspeitosamente mas com um interesse especial mas n o as observava como que perscrutando as mas como que interessando se por elas sem querer fixar lhes as fei es ou detalhar
399. quest o da validade das sensa es Mas na verdade isso n o um impedimento Porqu Porque ao contr rio do que existe por exemplo no Cartesianismo o facto do mundo ser verdadeiro ou n o n o importante porque o sensacionista n o busca a verdade Se a realidade existe ou n o indiferente Ele pode comunica la mesma pode continuar a aceit la enquanto realidade falsa verdadeira A pr pria aceita o da filosofia enquanto arte parte do princ pio que n o interessa a verdade das coisas apenas as coisas em si mesmas como elas s o Aceitar a sensa o aceitar a necessidade de n o pensarmos 246 P ginas ntimas e de Auto Interpreta o tica 1966 168 247 Livro do Desasocego Tomo II p g 838 248 Pessoa In dito Lisboa Livros Horizonte 1993 136 o que a sensa o apenas que ela nos chega a n s e deve ser transmitida enquanto sensa o aos outros Qual ent o a estrutura desta filosofia sensacionista Fernando Pessoa responde nos com elevado pormenor 1 Todos os fen menos se passam no espa o As dimens es dos objectos n o est o neles mas sim em n s S o condi es de sensibilidade categorias de credibilidade 1 A nica realidade a sensa o 2 A m xima realidade ser dada sentindo tudo de todas as maneiras em todos os tempos 3 Para isso era preciso ser tudo e todos O sensacionismo a arte das quatro dimens es As coisas t m aparentemente mesmo na sua apar
400. r fica De certa forma isto poderia ser um grande eufemismo para a fuga do eu imposs vel fugirmos de n s pr prios e da nossa concep o do mundo tal como o percepcionamos e n o interessa realmente onde estejamos continuaremos a ser n s H que recordar a express o recorrente do universo na Rua dos Douradores Penso que finalmente esta express o chega ao seu significado completo H universo na Rua dos 172 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 297 Douradores como h universo em todo o lado e o mesmo universo Nada muda porque tudo visto pelos nossos olhos e n s somos os mesmos E se isto verdade at que ponto faz sentido insistir na ac o O autor do Livro indica nos a possibilidade de abdicar da ac o da viagem em favor de um mundo interior parado eterno feito do resumo inteiro das nossas percep es e idealizado dessa forma do mais perfeito modo Esta forma de ren ncia anuncia uma liberta o Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si meso J cruzei mais mares do que todos Se viajasse encontraria a c pia d bil do que j vira sem viajar Nos pa ses que os outros visitam visitam nos an nimos e peregrinos Nos pa ses que tenho visitado tenho sido n o s o prazer escondido do viajante inc gnito mas a majestade do Rei que ali reina e o povo cujo uso ali habita e a hist ria inteira daquela na o e das outras As mesmas paisagens as mesmas casas eu
401. r sentida imediatamente e sem demoras para estrat gia ntima analisada at secura colocada num Eu exterior at tirania e enterrada em mim at ao auge de ser dor ent o verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o her i Ent o me p ra a vida e a arte se me roja aos p s Tudo isto constitui apenas o segundo passo que o sonhador deve dar para seu sonho N o iremos debru ar nos demasiado sobre os tr s caminhos para a aus ncia do sofrimento visto que eles s o explicados pelo pr prio autor mas eu destacaria a forma como o segundo caminho nos pode anunciar uma poss vel explica o para o surgimento dos heter nimos em Pessoa Ser plenamente defens vel que o aparecimentos dos outros em Fernando Pessoa ter a ver directamente a ver com a projec o da dor numa figura outra que n o a do pr prio sujeito h aqui tamb m um afastamento mas de si pr prio na direc o contr ria ao do sofrimento interior 198 Ele diz tamb m no Livro A liberdade a possibilidade do isolamento s livre se podes afastar te dos homens sem que te obrigue a procur los a necessidade de dinheiro ou a necessidade greg ria ou o amor ou a gl ria ou a curiosidade que no sil ncio e na solid o n o podem ter alimento Op Cit p g 434 Ou ainda O dinheiro belo porque uma liberta o Op Cit p g 22 O terceiro passo o que conduz ao limiar rico do Templo esse quem que n o s eu o soube dar Esse
402. r como portugu s in Reincidindo II A guia 2 s rie n 5 Porto Maio de 1912 274 Ver o que dissemos a este respeito no nosso livro No Altar do Fogo nota 13
403. r condi o espiritual n o oferece o que escreve Escrever objectivar sonhos criar um mundo exterior para pr mio evidente da nossa ndole de criadores Publicar dar esse mundo exterior aos outros mas para qu se o mundo exterior comum a n s e a eles o mundo exterior real o da mat ria o mundo vis vel e tang vel Que t m os outros com o universo que h em mim 265 Escrever ent o uma necessidade Escreve se para escapar ao mundo e para construir um outro mundo alternativo interior objectivando sonhos dentro de um universo dentro de mim Devemos esclarecer que objectivar sonhos n o tornar os sonhos concretos ou imanentes mas antes realizar o imposs vel imanente pela imagina o o sonho a maneira de termos a verdade do mundo dentro de n s pr prios perante a falsidade do mundo exterior Dentro de n s podemos ter tudo podemos ser tudo isto a verdade interior e o sonho objectivado Escrever tamb m esquecer a vida Escrever esquecer A literatura a maneira mais agrad vel de ignorar a vida A m sica embala as artes visuais animam as artes vivas como a dan a e o representar entret m A primeira por m afasta se da vida por fazer dela um sono as segundas contudo n o se afastam da vida umas porque usam de f rmulas vis veis e portanto vitais outras porque vivem da mesma vida humana N o esse o caso da literatura Essa simula a vida Um romance uma his
404. r de um novo universo interior que depois preenchido de outros eus Parece ser um processo dram tico como Pessoa nos insiste sempre em dizer semelhante cria o de um romance vivo com personagens em tudo reais se bem que sem carne Parece me que Fernando Pessoa usa o processo do sonho ao extremo para a cria o de um mundo interior que vai para al m da mera representa o simb lica da realidade exterior Ele faz essa reprodu o simb lica mas tamb m vai povoar o seu novo universo com outras personalidades que ainda que sejam imagens reflectidas dele mesmo parecem ser outras pessoas reais com biografias e quotidianos diferentes do ser para o mundo Mas vejamos em pormenor as novas regras que enunci mos ainda agora A pulveriza o inicial da personalidade tem a ver com a desconex o com o mundo exterior O sonhador j o vimos algu m muito distanciado da realidade do quotidiano algu m que j se desligou desse mesmo quotidiano e que vive dentro de si pr prio Esta desconex o tem como efeito imediato o desconhecimento do ser para o mundo ou seja a falta da consci ncia da nossa pr pria fachada exterior da nossa m scara f sica N s somos para o bem e para o mal a reuni o de duas realidades uma realidade do int mo e uma realidade em que expressamos esse int mo atrav s das nossas ac es Ora o sonhador deixa de acreditar na necessidade de agir e em resultado o seu mundo ficar resumido realidad
405. r estarem ali Sinto ao senti la uma grande esperan a mas reconhe o que a esperan a e liter ria Manh primavera esperan a est o ligadas em m sica pela mesma inten o mel dica est o ligadas na alma pela mesma mem ria de uma igual inten o N o se a mim mesmo observo como observo cidade reconhe o que o que tenho que esperar que este dia acabe como todos os dias A raz o tamb m v a aurora A esperan a que pus nela se a houve n o foi minha foi a dos homens que vivem a hora que passa e a quem encarnei sem querer o entendimento exterior neste momento Esperar Que tenho eu que espere O dia n o me promete mais que o dia e eu sei que ele tem decurso e fim A luz anima me mas n o me melhora que sairei de aqui como para aqui vim mais velho em horas mais alegre uma sensa o mais triste um pensamento No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que h de morrer Agora luz ampla e alta a paisagem da cidade como de um campo de casas natural extensa combinada Mas ainda no ver disto tudo poderei eu esquecer que existo A minha consci ncia da cidade por dentro a minha consci ncia de mim Lembro me de repente de quando era crian a e via como hoje n o posso ver a manh raiar sobre a cidade Ela ent o n o raiava para mim mas para a vida porque ent o eu n o sendo consciente era a vida Via a manh e tinha alegria hoje vejo a manh e tenho alegria e f
406. r na inutilidade n o apenas tomar uma posi o ir nica perante a vida relevar a inutilidade da pr pria vida n o lhe prestando o tributo de ser vivido por ela Se nada se alcan a na vida a nica atitude nobre leia se consciente ter viver uma vida in til n o porque n o sejamos capazes de viver uma vida til mas simplesmente porque o conceito de vida til uma ilus o em si mesmo N o pode existir utilidade em algo que n o faz sentido e n o faz sentido precisamente porque falso porque n o temos acesso verdade ltima do mundo que habitamos e que conhecemos como nico Esta atitude ir nica muito presente no Livro do Desassossego assim facilmente revelada Ao lado dela existe tamb m uma atitude supersticiosa que muito favorecida por Fernando Pessoa Saber ser supersticioso ainda uma das artes que realizadas a auge marcam o homem superior 23 Ser supersticioso viver a tal inutilidade porque a supersti o um ritual sem sentido Mas num mundo que n o tem ele pr prio qualquer sentido preciso a supersti o ganha um relevo substancial uma atitude activa de um homem superior 231 In Pessoa In dito Livros Horizonte 151 232 Livro do Desasocego Tomo p g 95 233 Este fragmento n o consta da edi o cr tica de Jer nimo Pizarro mas consta de outras edi es do Livro 234 Teresa Rita Lopes Pessoa por conhecer Ed Estampa 13 235 Livro do Desasocego T
407. r sido t o vulvar na sua origem t o nojentamente parido Que nojo de n s n o punge a ideia da origem carnal da nossa alma daquele inquieto corp reo de onde a nossa carne nasce e por bela que seja se desfeia da origem e se nos enoja de nata Os idealistas falsos da vida real fazem versos Esposa ajoelham ideia de M e O seu idealismo uma veste que tapa n o um sonho que crie 112 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 13 14 Pura s tu Senhora dos Sonhos que eu posso conceber amante sem conceber m cula porque s irreal A ti posso te conceber m e adorando o porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada nem do horror de parires Como n o te adorar se s tu s ador vel Como n o te amar se s tu s digna do amor Quem sabe se sonhando te eu n o te crio real noutra realidade se n o ser s minha ali num outro e puro mundo onde sem corpo t ctil nos amemos com outro jeito de abra os e outras atitudes essenciais de posse Quem sabe mesmo se n o existias j e n o te criei nem te vi apenas com outra vis o interior e pura num outro e perfeito mundo Quem sabe se o meu sonhar te n o foi o encontrar te simplesmente se o meu amar te n o foi o pensar em ti se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor n o foram a obscura nsia com que ignorando te te esperava e a vaga aspira o com que desconhecendo te te queria Posso pensar te virgem e tamb m m e porque n o s de
408. ra al m dum Deus e da possibilidade de seres voluptuosamente nulo e da cor espiritual de todas as materias 4 Haver mais ocasi es onde o autor do Livro nos vai descrever os seus percursos pela cidade e nos quais ele dia a dia se sente cada vez mais inclinado a incluir a multid o nas suas observa es lhe dolorosa a exist ncia dos outros sim mas sobretudo a exist ncia dos outros enquanto multid es enquanto massa humana que continua a existir ao seu lado A sua compreens o simb lica de tudo leva o a um estado de alma altamente preocupante A necessidade de simbolizar tudo acaba por ser tamb m a necessidade de compreender tudo e nesse tudo est o os outros N o h maneira de ele fugir da exist ncia dos outros em seu redor porque eles fazem parte da cidade da realidade imanente que ele pretende transportar para o seu interior Ele acaba por compreend los inteiramente sobretudo na dimens o em que ele pr prio poder ser visto por eles a sua descri o deles decai inevitavelmente para uma teoriza o da sua pr pria exist ncia f sica Ent o a descri o pura da cidade passa a um desejo de identifica o com o seu anonimato grandes montes ao crep sculo ruas quasi estreitas ao luar ter a vossa inconsci ncia a vossa espiritualidade de Mat ria apenas sem interior Daqui adv m tamb m um sentimento de grande estranheza perante a vida um sentimento que passa por todo o Livro
409. ra no corpo est tico porque o corpo est tico toda a projec o exterior do autor do Livro Podemos agora dizer que essa projec o incorpora igualmente as regras morais necess rias para a sua vida exterior Isso mesmo nos confirmado por ele Sempre me tem preocupado naquelas horas ocasionais de desprendimento em que tomamos consci ncia de n s mesmos como indiv duos que somos outros para os outros a imagina o da figura que farei fisicamente e at moralmente para aqueles que me contemplam e me falam ou todos os dias ou por acaso J quanto aos ju zos morais exteriores existem algumas posi es curiosas e que parecem nascer dessa mesma convic o interior o que nos pode levar a consider las algo descabidas ou mesmo an rquicas leg tima toda a viola o da lei moral que feita em obedi ncia a uma lei moral superior N o desculp vel roubar um p o por ter fome desculp vel a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional se uma mera obra est tica n o vale o argumento Ter fome n o uma lei moral superior mas ter um fim civilizacional j bom de ver que se trata de um ponto de vista inquinado pela pr pria opini o pessoal mas podemos neste extremo propositado reconhecer sobretudo a oposi o entre posi o moral individual e comunit ria O motivo exterior de um indiv duo a fome n o
410. reflectir um pouco como Fernando Pessoa pretende abordar a miss o de desenhar um heter nimo ou semi heter nimo que funciona de maneira plenamente est tica retirado do mundo e n o pretendendo agir nele de maneira decisiva Desde logo h que definir o que a est tica O conceito de est tica um conceito filos fico contempor neo que se refere teoria da arte e do belo Na filosofia antiga seguindo Plat o a are identificava se com o seu pr prio objecto a poetica com a produ o propriamente dita enquanto o belo era uma qualidade das ideias E apenas na modernidade que ambos os conceitos se unem num s Curiosamente e de maneira mais ampla interessa nos sobremaneira reflectir sobre a forma como a po tica usada na constru o desta realidade plenamente est tica O autor do Livro n o fala muitas vezes no belo mas quando fala parece qualific lo mais enquanto qualidade de uma ideia aproximando se da filosofia antiga O in til belo porque menos real que o til que se continua e prolonga ao passo que o maravilhoso f til o glorioso infinitesimal fica onde est n o passa de ser o que vive liberto e independente Menos real ou seja mais pr ximo ao que seria uma ideia um ideal um conceito puro A beleza sobretudo reconhecida naquilo que n o se materealiza nisto possuindo alguma semelhan a com a vis o do autor do Livro sobre o pr prio amor e mais tarde como veremo
411. representando v rias pe as 43 A necessidade doentia de imaginar todas as vidas dentro de todas as casas que passam pela janela do comboio poderia ser vista enquanto uma atitude quase desiquilibrada de permanente desarranjo cerebral Mas este exagero propositado a que somos introduzidos representa simbolicamente aquela mesma fronteira entre a realidade e o sonho Temos de ter consci ncia de que este observador preenche a sua vida com a vida dos outros imaginando os em si pr prio Ele afastou se propositadamente ou n o da sua pr pria vida e ela tornou se completamente vazia este vazio que permite a incorpora o de elementos estranhos e pouco familiares que quase ocupam esse espa o um corpo que se enche com as mem rias e as experi ncias que n o s o realmente suas A pr pria cria o de personalidades segue este princ pio de aliena o pessoal O ser esvaziado de significado e enchido por outras experi ncias fingidas ou constru das exteriormente a si pr prio S o depois estes corpos falsos que vivem no mundo exterior que o experienciam e vivenciam as experi ncias humanas depois reportando ao seu demiurgo que fica para sempre nas sombras O horror ac o passa muito pelas descri es do Livro do Desassossego na exacta medida em que essa ac o mata o processo inventivo de cria o destas personas Todo o movimento volunt rio de quem observa mata o processo do pensamento transformando o em
412. resto que visto enquanto coisa que afecta quem v e sente Se nos textos de juventude o autor do Livro teria a tend ncia em colocar a realidade exterior ao mesmo n vel da realidade interior projectando nela os seus sentimentos ntimos e tentando reconhecer a presen a exterior dos mesmos de uma forma atabalhoada e impulsiva na sua fase mais tardia a tend ncia virar se para uma perspectiva isolada das duas dimens es do seu sentir H ainda a tend ncia aparente para prolongar o interior para o exterior quando por exemplo o vemos a descrever as ruas para depois dizer tudo tudo isso me conforta de tristeza se me insiro por essas tardes na solid o do seu conjunto Mas trata se de um processo completamente da forma como ele escrevia inicialmente Ele n o se identifica com a tristeza do cen rio que contempla antes se acha da mesma subst ncia interior em que elas est o mergulhadas N o uma identifica o interior exterior mas sim interior interior a forma dele achar no exterior um outro interior para depois partir para o objectivo final de tornar tudo fora e dentro s mbolos da mesma coisa com a mesma consist ncia e significado E neste sentido que n s lemos a passagem que diz N o h diferen a entre mim e as ruas para o lado da Alf ndega salvo elas serem ruas e eu ser alma o que pode ser que nada valha ante o que a ess ncia das coisas As pessoas que habitam a cidade e passam n o inter
413. revermos nem isso ser preciso Poderemos criar em segunda m o imaginar em n s um poeta a escrever e ele escrevendo de uma maneira outro poeta entretanto escrever de outra Eu em virtude de ter apurado imenso esta faculdade posso escrever de in meras maneiras diversas originais todas O mais alto grau do sonho quando criado um quadro com personagens vivemos todas elas ao mesmo tempo somos todas essas almas conjunta e interactivamente E incr vel o grau de despersonaliza o e encinzamento do esp rito a que isto leva e dif cil confesso o fugir a um cansa o geral de todo o ser ao faz lo Mas o triunfo tal Este o nico ascetismo final N o h nele f nem um Deus Deus sou eu 21 Intepretamos esta Maneira de bem sonhar como sendo implicitamente aplicada a todos os que s o como o autor do Livro Ele um metaf sico mesmo que diga que n o 220 Ou pelo menos o seu demiurgo um metaf sico Fernando Pessoa inegavelmente o autor deste fragmento porque s o vis veis nele as marcas da sua pr pria vida como veremos Primeira nota ele fala na cria o de um fil sofo dentro de si mesmo Parece claro que h nestas Maneiras de bem sonhar um m todo E esse m todo filos fico Mas uma filosofia muito particular abordada dist ncia e por intui o Penso ser esse o sentido da express o po tica que determina que o poeta o pajem que namora a filha do fil sofo
414. rial o autor do Livro viu a necessidade de assumirmos que n o por fugirmos do sofrimento que ele desaparece O Livro prop e em ltimo grau a assimila o do sofrimento como veremos no desenvolvimento da nossa an lise O homem continua a viver n o se afasta dos outros materialmente apenas se afasta da realidade material para dentro de si pr prio Para chegar a este est dio irredut vel o autor do Livro come ou por enunciar as raz es para renunciar vida e sobretudo s ac es na vida E que maior ac o h na vida do que a ac o de viajar A viagem como veremos de seguida o maior dos s mbolos relativos ac o VI A viagem na cabe a A viagem em Fernando Pessoa abordada de uma forma muito intensa e a maneira como ele escreve sobre as viagens deve ser analisada ao pormenor devido sua import ncia para a compreens o do resto da sua obra Desde logo vemos que a viagem aparece sobretudo em dois heter nimos Campos e no autor do Livro n o cabe aqui a discuss o se o autor na verdade um heter nimo ou apenas um semi heter nimo Para lvaro de Campos a viagem principalmente um escape emotivo ele quando viaja n o pode deixar de relacionar o movimento a ac o o exterior com o seu interior ao ponto de confundir os dois N o por acaso que o poema Opi rio central na obra de Campos sobre uma viagem do Ocidente para o Oriente Campos estar sempre em processo de via
415. rio mundo material Deus exclu do para esse reduto material para a iman ncia para tudo o que visto e sentido mas n o em tudo o que pensado Trata se de uma esp cie de revolta silenciosa contra a necessidade de Deus contra a pris o da mat ria assim que o autor do Livro se consegue libertar do mundo atrav s do sonho Libertar se mesmo a palavra correcta porque esta uma quest o de liberdade essencial da liberdade de uma pris o de mat ria para um campo infinito feito apenas de pensamento Pensamos ter conseguido provar que o mundo interior do sonho n o tem qualquer semelhan a ou sequer dependente de qualquer conceito religioso Deus poder continuar a existir pois a sua presen a tolerada mas indiferente ao mundo interior constru do pelo homem Esta poder parecer uma teoria demasiado depurada tendo em conta o que podemos ler no Livro e em certa medida isso verdade H que lembrar no entanto que a nossa an lise pretende retirar as melhores teorias do Livro de modo a poder interpret lo enquanto fonte de um m todo filos fico revolucion rio Nesta medida podemos ignorar de certo modo algumas passagens mais emotivas ou desesperadas porque se tratam naturalmente de passagens humanas sentidas profundamente sentidas pelo seu autor ignoramo las mas n o deixamos de afirmar a sua exist ncia H que refor ar finalmente o novo papel da morte a morte sempre foi vista sobretudo pelos existen
416. riores decidi por duas vezes elimin los pelo processo simples de os exprimir intensamente nisto que se baseia o que ser para v a viol ncia inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas e sobretudo no Epithalamium que directo e bestial se revela N o sei porque es crevi qualquer dos poemas em ingl s Outra explica o esta desnecess ria Os dois poe mas citados formam com mais tr s um pequeno livro que percorre o c rculo do fen meno amoroso E percorre o num ciclo a que poderei chamar imperial Assim temos 1 Gr cia Antinous 2 Roma Epithalamium 3 Cristianidade Prayer to a Woman s Body 4 Imp rio Moderno Pan Eros 5 Quinto Imp rio Anteros 260 Livro do Desasocego Tomo p g 132 O fragmento anterior tamb m faz parte dos fragmentos com o t tulo O amante visual Parece nos claro que a teoria que percorre os textos do Amante visual que n o chegaram a ficar completos uma teoria plenamente est tica em que o amante n o quer possuir o objecto amado mas apenas contempl lo A pura contempla o est tica uma marca ent o n o s do processo amoroso do Livro mas de toda a sua teoria do conhecimento que passa a ser uma teoria do conhecimento est tico n o se conhece sen o a sensa o das coisas ou seja a impress o que elas t m em n s e n s s podemos transmitir aos outros esta pr pria sensa o A compreens o completa do mundo a Verdade seria a i
417. rita ela pr pria a pr xis da sua pr pria exist ncia visto que ele pouco pode pratic la na realidade exterior Todas as correntes liter rias Pessoanos todos os seus ismos s o correntes interventivas s o maneiras de ele intervir na sociedade a partir das suas ideias dos seus conceitos Ora na base da sua corrente mais forte o sensacionismo est um particular entendimento da realidade e sobretudo da maneira como a realidade apreendida pelos sentidos e comunicada aos outros pela arte po tica N o dif cil de provar que para o autor do Livro tudo se torna em ltima inst ncia est tico At o amor se torna est tico O que pratica o sensacionista Uma vida privada de realidade exterior mas n o uma vida privada de sensa es advindas da vida exterior E assim que ele define o seu homem O sensacionista Neste crep sculo das disciplinas em que as cren as morrem e os cultos se cobrem de p as nossas sensa es s o a nica realidade que nos resta O nico escr pulo que preocupe a nica ci ncia que satisfa a s o os da sensa o Um decorativismo interior acentua se me como o modo superior e esclarecido de dar um destino nossa vida Pudesse a minha vida ser vivida em panos de arras do esp rito e eu n o teria abismos que lamentar Perten o a uma gera o ou antes a uma parte de gera o que perdeutodo o respeito pelo passado e toda a cren a ou esperan a no futuro Vivemos por isso
418. rmos dessa mesma exterioridade menos estaremos envenenados para usar a mesma express o do autor do Livro O sonhador deve desconhecer se exteriormente Depois desse passo o desconhecimento deve passar s sensa es Porqu Porque as sensa es tamb m nascem no exterior Novamente podemos dizer que isto est intimamente ligado plena no o do contraponto fora dentro Quando a exterioridade desaparece o pr prio ser para o mundo torna se uma personagem de si pr prio O autor do Livro v se a si mesmo como uma personagem de si pr prio e as sensa es tamb m s o vistas como alheias ele distancia se tanto de si pr prio enquanto exterioridade que tudo o que ele sente como se o sentisse por efeito de um intermedi rio Como n o h qualquer sensa o do exterior que seja reconhecida pelo eu tudo substitu do pelo sonho A alternativa seria o desespero e o suic dio As sensa es passam a ser mentais incorp reas 221 Livro do Desasocego Tomo I p g 104 Mas o autor do Livro vai mais al m como j referimos Ele toma o sonho e disseca o como processo filos fico Aplica o depois a um grande drama interior que n o tinha necessariamente de existir A prova final desse mesmo objectivo est no texto seguinte Com uma tal falta de literatura como h hoje que pode um homem de g nio fazer sen o converter se ele s em uma literatura Com uma tal falta de gente coexist vel como h hoje que pode um homem d
419. rmos um do outro mais do que a presen a apoiada de um bra o contra a aten o entregue do outro bra o que o sentia 224 Fernando Pessoa descreve assim este texto numa carta ao amigo Jo o Lebre Lima A prop sito de t dios lembra me perguntar lhe uma coisa Viu num n mero do ano passado de A guia um trecho meu chamado Na Floresta do Alheamento Se n o viu diga me Mandar lho ei Tenho imenso interesse que voc conhe a esse trecho o nico trecho meu publicado em que eu fa o do t dio e do sonho est ril e cansado de si pr prio mesmo ao ir come ar a sonhar se um motivo e o assunto N o sei se lhe agradar o estilo em que o trecho est escrito um estilo especialmente meu e a aqui v rios rapazes amigos brincando chamam o estilo alheio por ser naquele trecho que apareceu E referem se a falarem alheio escrever em alheio etc Aquele trecho pertence a um livro meu de que h muitos trechos escritos mas in ditos mas que falta ainda muito para acabar esse livro chama se Livro do Desassossego por causa da inquieta o e incerteza que a sua nota predominante No trecho publicado isso nota se O que em apar ncia um mero sonho ou entresonho narrado e sente se logo que se l e deve se realizei bem sentir se atrav s de toda a leitura uma confiss o sonhada da inutilidade e dolorosa f ria est ril de sonhar A nossa vida n o tinha dentro ramos fora e outros Desconhec amo nos
420. rna se ela pr pria um s mbolo de algo maior ele diz nos que desejava ser um observador n o s da realidade mas da Z pr pria vida Ser observador da vida afastar se dela sem ter de participar no seu decorrer 17 Livro do Desasocego Tomo I p g 289 90 como um estranho que chega cidade do interior algu m que v tudo de fora e que n o tem obriga es nem deveres O que acontece para este sentimento n o ser permanente Regressemos agora continua o do mesmo fragmento Soam devem ser oito as que n o conto badaladas de horas de sino ou rel gio grande Acordo de mim pela banalidade de haver horas clausura que a vida social imp e continuidade do tempo fronteira no abstracto limite no desconhecido Acordo de mim e olhando para tudo agora j cheio de vida e de humanidade costumada vejo que a n voa que saiu de todo do c u salvo o que no azul ainda paira de ainda n o bem azul me entrou verdadeiramente para a alma e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as coisas que por onde elas t m contacto com a minha alma Perdi a vis o do que via Ceguei com vista Sinto j com a banalidade do conhecimento Isto agora n o j a Realidade simplesmente a Vida Sim a vida a que eu tamb m perten o e que tamb m me pertence a mim n o j a Realidade que s de Deus ou de si mesma que n o cont m mist rio nem verdade que pois que real ou o finge ser algures exista fix
421. ro Ele acaba por n o ser nada Ele Este ele poder ter interpreta es variadas Ser o ele do eu O ele do ser para o mundo O ele do ser para si pr prio Provavelmente uma mistura de todos porque a sua identidade difusa A sua exist ncia dispersa porque ele para os outros uma coisa diferente do que para si pr prio Neste sentido ele vive numa dimens o m ltipla sem unidade aparente uma vida como dissemos imposs vel Ele pr prio a qualifica assim a amargura essencial desta vida estranha vida humana vida em que nada se passa salvo na consci ncia dela Melhor que n s ele qualifica a exist ncia enquanto uma esp cie de projec o em sonho da vida real uma vida em que nada se passa sen o na consci ncia dela pr pria O seu eu antigo esse desapareceu De tanto recompor me destru me diz nos Tornou se uma figura de livro uma vida lida Por influ ncia do processo de que fal vamos anteriormente da transposi o da vida exterior para a vida sonhada atrav s do uso da prosa po tica Ele parece nos algu m que apenas sobrevive exteriormente Toda a sua raz o de existir interna Mas h nele um grande conflito de identidade entre o fora biol gico que continua a gritar por aten o fisicamente inegavelmente e o dentro psicol gico que o apazigua mas ainda assim de maneira conflituante com o exterior questionando sempre o porqu do sonho n o ser rea
422. roso de o poder fazer desprezar a vida mas guardar a ideia de que ser bom viv la Tudo isto seria tremendamente contradit rio se n o junt ssemos o que j sabemos anteriormente a fun o do sonho trazer para o mundo interior todas as no es cristalizadas do mundo exterior O sonhador n o deixa de viver vive interiormente n o deixa de amar ama interiormente Continua a haver nele uma vitalidade inusitada pois ele passa a conhecer intimamente a natureza de todas as coisas e a domin las a seu belo prazer dentro do seu sonho delas Estes s mbolos guardados no interior s o depois expressos na prosa po tica e a desenrolados em verdadeiras paisagens interiores Muitas das cenas do Livro s o por isso mesmo cenas exteriores transformadas em cenas interiores cenas sonhadas portanto O autor do Livro pensa poder encontrar nestes racioc nios internos o verdadeiro significado das coisas a verdade em si mesma Para tal preciso passar por uma esp cie de ritual com o sonho preciso que o sonhador se abandone a si pr prio e nem tente usar sequer a ac o neste processo O abandono ser t o completo que implica o abandono de todas as sensa es f sicas mais importantes como a masturba o A masturba o poder ser aqui equiparada em import ncia viagem de comboio no que toca ao grau em que toca algo ligado ac o Negar a l bido ou pelo menos n o a fortalecer ao mesmo tempo fortalecer tudo aquilo que n o
423. rque simultaneamente pr xima e afastada V o enquanto principal opositor da sua pr pria maneira de ser O patr o Vasques um homem de ac o Mas ao mesmo tempo como uma das principais influ ncias na sua obra Se houvesse de inscrever no lugar sem letras de resposta a um question rio a que influ ncias liter rias estava grata a forma o do meu esp rito abriria o espa o ponteado com o nome de Ces rio Verde mas n o o fecharia sem nele inscrever os nomes do patr o Vasques do guarda livros Moreira do Vieira caixeiro de pra a e do Ant nio mo o do escrit rio E a todos poria em letras magnas o endere o chave LISBOA Porqu Porque muito simplesmente o ambiente do escrit rio uma parte integral dir amos negativa e origin ria do Livro por ele ser um pobre empregado do com rcio que ele tem acesso aos sonhos por n o desejar na vida exterior que deseja na vida interior por n o ser nada na vida que tudo no Livro O Patr o Vasques aparece como o primeiro nome de uma lista de influ ncias do escrit rio e compreende se bem o porqu Para algu m que n o procurava intensamente o reconhecimento ou a amizade dos outros a fixa o no s mbolo do patr o inevit vel o patr o representa ao m ximo o absurdo da vida comercial mas simultaneamente a forma como em tudo existe mesmo assim vida mesmo nas facturas e nas promiss rias ent o um misto de fasc nio e de horror criativ
424. s ter tamb m semelhan as com a maneira como ele aborda o sonho e a realidade A beleza tamb m identificada com o car cter permanente das coisas O ef mero in til porque se perde porque n o permanece Tudo o que real desaparece dissipa se enquanto as ideias o sonho a imagina o permanecem indistrut veis perante qualquer mudan a na realidade exterior Esta certamente uma filosofia do pormenor Ali s o texto que cit mos mesmo agora intitulava se Mil metros sensa es de coisas m nimas A filosofia do m nimo justifica se pela restri o do seu pr prio objecto Enquanto os outros heter nimos sobretudo Campos t m um vast ssimo campo de ac o mesmo Caeiro o autor do Livro apenas se baseia na sua pr pria observa o naquilo em que repara v supra o nosso ponto I neste livro A redu o dos objectos sens veis faz parte do processo de afastamento do mundo mas j um passo posterior a esse mesmo afastamento Temos de compreender que Fernando Pessoa pretende um homem afastado de si mesmo e n o apenas da realidade exterior porque o pr prio homem tem uma realidade exterior o seu corpo f sico Reparar nos outros nunca foi apenas uma maneira de o homem se afastar dos outros homens mas tamb m uma forma de ele se come ar a afastar de si pr prio come ando a desconhecer se enquanto possuidor de um corpo f sico muito importante real ar esta crescente estranheza consigo pr
425. s latos isto significa que quem 11 Livro do Desasocego Tomo I p gs 195 96 12 Observa se sobretudo em muitos textos de Ricardo Reis observa nunca v a realidade tal como ela inferindo dela necessariamente uma quantidade substancial de subjectividade Toda a observa o ent o subjectiva de certa forma falsa falsificada pelo pr prio acto de observar e dir amos n s pelo acto de existir a vontade desse acto Embora n o estejamos no reino da observa o qu ntica podemos certamente extrapolar esta l gica para a escrita do Livro pois o autor do mesmo algu m que n o faz mais do que observar 3 Devemos perguntar em que medida o observador do Livro algu m que interfere ou n o na realidade que v sua frente Para responder h que chamar novamente cola o o termo afastamento At que ponto o autor do Livro se consegue afastar da realidade E ser que ele se consegue afastar o suficiente para deixar de fazer parte dela Nas obras dos outros heter nimos Reis Caeiro Campos vimos como havia em todos eles um esfor o para compreender o mundo mas no fim eles acabavam sempre por se afastar dele Ora no Livro o autor come a de certo modo onde todos eles terminam ele come a afastando se No pref cio inacabado mas ainda assim um sinal evidente Pessoa diz nos que o que mais lhe chamou aten o no autor do Livro foi o facto daquele homem parecer olhar atrav s das pessoas que olhava Que quer
426. s ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alf ndega cessa toda a linha separada dos cais quedos tudo isso me conforta de tristeza se me insiro por essas tardes na solid o do seu conjunto Vivo uma era anterior quela em que vivo gozo de sentir me coevo de Ces rio Verde e tenho em mim n o outros versos como os dele mas a subst ncia igual dos versos que foram dele Por ali arrasto at haver noite uma sensa o de vida parecida com a dessas ruas De dia elas s o cheias de um bul cio que n o quer dizer nada de noite s o cheias de uma falta de bul cio que n o quer dizer nada Eu de dia sou nulo e de noite sou eu N o h diferen a entre mim e as ruas para o lado da Alf ndega salvo elas serem ruas e eu ser alma o que pode ser que nada valha ante o que e a ess ncia das coisas H um destino igual porque abstracto para os homens e para as coisas uma designa o igualmente indiferente na lgebra do mist rio 08 A fuga de que falava ter ent o de ser uma fuga entre dois mundos interiores a fuga de um sentimento de infelicidade em direc o a um sentimento de felicidade e n o uma fuga do mundo exterior que n o o satisfaz em busca de um outro mundo exterior mais satisfat rio Isto porque a realidade exterior para ele j fixa N o ser poss vel encar la enquanto cen rio de uma qualquer conquista ou objecto sequer de uma fantasia concreta Ele tornou a pr pria realidade exterior no s
427. s ser o outras e que as vendedeiras ser o outras e que os jornais ter o a quem se baixar para v los uma data que n o a de hoje Mas eles porque n o vivem duram ainda que outros eu porque vivo passo ainda que o mesmo Esta hora poderia eu bem soleniz la comprando bananas pois me parece que nestas se projectou todo o sol do dia como um holofote sem m quina Mas tenho vergonha dos rituais dos s mbolos de comprar coisas na rua Podiam n o me embrulhar bem as bananas n o mas vender como devem ser vendidas por eu as n o saber comprar como devem ser compradas Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o pre o Mais vale escrever do que ousar viver ainda que viver n o seja mais que comprar bananas ao sol enquanto o sol dura e h bananas que vender Mais tarde talvez Sim mais tarde Um outro talvez N o sei 7 gt recorrente dizermos nesta nossa an lise que a ac o do sonhador no Livro essencialmente uma ac o interior Conseguimos mesmo individualizar essa ac o interior dando lhe uma denomina o diferenciada Cham mo la de inac o Ao longo do Livro o autor vai dando consist ncia a uma atitude exterior ligada a essa consci ncia interior da ac o de certa forma isso seria inevit vel e trata se apenas de um reflexo natural das suas escolhas individuais Essa atitude sobretudo uma atitude de ren ncia da troca da vontade de poder pelo t dio da pr pria vida pelo pensamen
428. s vale na verdade o patr o Vasques que os Reis de Sonho mais vale na verdade o escrit rio da Rua dos Douradores do que as grandes leas dos parques imposs veis Tendo o patr o Vasques posso gozar o sonho dos Reis de Sonho tendo o escrit rio da Rua dos Douradores posso gozar a vis o interior das paisagens que n o existem Mas se tivesse os Reis de Sonho que me ficaria para sonhar Se tivesse as paisagens imposs veis que me restaria de imposs vel 3 3 Livro do Desasocego Tomo I p g 248 Livro do Desasocego Tomo I p g 353 V O ca ador de le es n o tem aventura para al m do terceiro le o S bio quem monotoniza a exist ncia pois ent o cada pequeno incidente tem um privil gio de maravilha O ca ador de le es n o tem aventura para al m do terceiro le o Para o meu cozinheiro mon tono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro at Benfica e se um dia vai a Sintra sente que viajou at Marte O viajante que percorreu toda a terra n o encontra de cinco mil milhas em diante novidade porque encontra s coisas novas outra vez a novidade a velhice do eterno novo mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas Chegados a esta altura temos j formada a imagem do autor do Livro Um emprego de com rcio normal como tantos outros Se o v ssemos passar na rua n o o distinguir amos da multid
429. sa es ao fim ao cabo trata se de experi ncias f sicas e simultaneamente de experi ncias filos ficas gnosiol gicas Veremos no decorrer da nossa an lise de que modo o autor do Livro se distingue dos seus insignes colegas Ser que ele consegue vencer onde todos os outros falharam N o nos restar sen o acompanhar a sua miss o porque se o Livro ele pr prio acaba por ser tamb m um di rio de bordo para a viagem que ele vai empreender sozinho para dentro de si pr prio O Desassossego acaba por n o ser mais do que essa t nue capacidade de observa o o instrumento que faz tremer a realidade para que ela possa ser acedida e analisada mas de forma t o fraca que a pr pria realidade n o pressente o observador que repara nela 13 ao ponto de dizer que quando n o observa n o existe H muito n o sei se h dias se h meses n o registo impress o nenhuma n o penso portanto n o existo Estou esquecido de quem sou n o sei escrever porque n o sei ser Por um adormecimento obl quo tenho sido outro Saber que me n o lembro despertar in Livro do Desasocego Tomo 1 p gs 396 II O cora o se pudesse pensar pararia Sabemo lo afastado dos outros mas quem realmente este autor do Livro e mais importante quais s o as suas convic es pessoais Uma resposta inicial encontra se num outro texto que foi escrito maneira de uma introdu o Nasci em um tempo em que a maioria dos
430. se na dist ncia que nos permitida hoje parece de longe a mais plaus vel amp Livro do Desasocego Tomo I p g 194 concord ncia de g nero como de n mero entre a voz substantiva e a adjectiva E terei dito bem terei falado em absoluto fotograficamente fora da chateza da norma e da quotidianidade N o terei falado terei dito A gram tica definindo o uso faz divis es leg timas e falsas Divide por exemplo os verbos em transitivos e intransitivos por m o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente e n o para como o comum dos animais homens o ver s escuras Se quiser dizer que existo direi Sou Se quiser dizer que existo como alma separada direi Sou eu Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma que exerce junto de si mesma a fun o divina de se criar como hei de empregar o verbo ser sen o convertendo o subitamente em transitivo E ent o triunfalmente antigramaticalmente supremo direi Sou me Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas Que prefer vel n o isto a n o dizer nada em quarenta frases Que mais se pode exigir da filosofia e da dic o Obede a gram tica quem n o sabe pensar o que sente Sirva se dela quem sabe mandar nas suas express es Conta se de Sigismundo Rei de Roma que tendo num discurso p blico cometido um erro de gram tica respondeu a quem dele
431. se mesmo absurdo O absurdo da vida facilmente incorporado no simbolismo do ritual sobretudo quando ningu m nos est a observar Acreditar no valor simb lico dos rituais acreditar que nada na vida pode ser verdade e que apenas a realidade interior pode imperar A pr pria forma da sua escrita denuncia estas duas vertentes que agora analisamos a falta de ambi o e o ritualismo Existe na prosa po tica do Livro uma grande e contradit ria falta de ambi o pois os fragmentos fecham se sobre si pr prios sem nunca darem continuidade a um simb lica que similar a uma n o ac o porque mesmo quando ele age ou interage f lo com recurso a um artif cio m scara de empregado de escrit rio 253 Livro do Desasocego Tomo I p g 356 254 Livro do Desasocego Tomo I p g 34 poss vel fio condutor de pensamento Por outro lado existe uma grande variedade de repeti es de rituais de escrita que se espalham e dissiminam ao longo dos fragmentos Uma das principais raz es para o Livro do Desassossego n o ser por exemplo um grande romance tem a ver precisamente com a falta de ambi o que leva a uma produ o liter ria desconexa e desconectada com a realidade imanente A ambiguidade dos textos nasce pensamos n s tamb m de uma sensa o de perda de totalidade de desnecessidade e incapacidade de sentir o todo que faria sentido obter num livro finalizado A presen a de um discurso incompleto feito d
432. se novo mundo incorpora em si mesma as intermin veis combina es para a arquictetura de uma nova realidade Sobretudo por ser uma prosa po tica que n o limitada pelos significados normais da linguagem e que pode colocar todas as perguntas sem medo de ser incongruente Pode haver em determinado ponto alguma semelhan a entre esta vis o de um novo mundo e uma vis o de um mundo espiritual religioso Teremos de esclarecer de seguida em que medida isto ou n o verdade XVI Deus a alma de tudo Se considerarmos o que foi dito at agora sobre o Livro do Desassossego evidente chegarmos conclus o que o autor do Livro desenha para si pr prio um mundo paralelo interior que se substitui ao mundo exterior A substitui o da realidade exterior pela realidade interior parece uma verdade ineg vel do Livro ao ponto de n o podermos apreciar esta obra sem tomar esse princ pio em conta sobretudo quando abordamos o papel do sonho na mesma Daqui a imaginarmos que esse mundo interior representa uma esp cie de c u na Terra poder ir uma muito curta dist ncia Afinal como outros poetas fil sofos n o seria arriscado dizer que Fernando Pessoa poderia ter tido a no o de um mundo ideal de uma sociedade ideal que reflectiria na realidade imanente princ pios apenas presentes no mundo ideal semelhan a por exemplo de Plat o ele poderia ter tido a inten o de com o Livro nos apresentar uma realidade i
433. se todos os homens se negassem a viver no mesmo instante A vida deixaria de ocorrer porque a vida um fen meno global constitu do pelas ac es individuais dos homens que a comp e e que lhe d o significado Como esta reac o seria imposs vel de ocorrer em simult neo resta o ponto de observa o de apenas um homem que se destaca da sociedade que continua a suportar a vida exterior bom de ver como esta teoria poder levar no o do sonho enquanto liberdade e ao sonhar enquanto ac o interior que despoleta essa liberta o Sonhar ser livre porque sonhar libertarmo nos da realidade que nos oprime e que nos vive sem nunca deixar que n s a vivamos 15 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 145 1 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 375 completamente No outro extremo o exemplo m ximo de um homem que se deixa viver pela vida o optimista um optimista como o Patr o Vasques por exemplo que como patr o simboliza perfeitamente a ac o no mundo algu m que quer atingir coisas materiais que quer vencer e ter rendimentos que pensa poder possuir e dispor do que possui II Se o sonho a procura de uma vida que n s vivemos como podemos ensinar nos a n s pr prios a viv la assim O Livro est cheio de conselhos de guias para que possamos aprender a negar a vida O primeiro grande guia o texto intitulado Educa o Sentimental Este grande texto provavelmente de 1915 tem um subt tulo curioso
434. sego dos ser es de prov ncia que me enternece da inf ncia que vivi neles a disposi o da mesa para o ch s o os vultos dos m veis em torno da casa s o as caras e os gestos f sicos das pessoas de quadros que tenho saudades Por isso tanto me enternece a minha inf ncia como a de outrem s o ambas no passado que n o sei o que fen menos puramente visuais que sinto com a aten o liter ria Enterne o me sim mas n o porque lembro mas porque vejo Nunca amei ningu m O mais que tenho amado s o sensa es minhas estados da visualidade consciente impress es da audi o desperta perfumes que s o uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo dizer me coisas do passado t o f cil de lembrar pelos cheiros isto de me darem mais realidade mais emo o que o simples p o a cozer l dentro na padaria funda como naquela tarde long nqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um al vio n o sei bem de qu E esta a minha moral ou a minha metaf sica ou eu Transeunte de tudo at de minha pr pria alma n o perten o a nada n o desejo nada n o sou nada centro abstracto de sensa es impessoais espelho ca do sentiente virado para a variedade do mundo Com isto n o sei se sou feliz ou infeliz nem me importa 80 O fragmento que citamos em cima parece descrever algu m que eminentemente anti social um p rea que se nega a
435. sejar aquelas melhoras por eu n o ter bebido sen o metade do vinho 0 O barbeiro fazia parte como os colegas do escrit rio do seu quotidiano di rio da imagem fixa da realidade exterior que servia de suporte sua realidade interior Fixa tamb m porque segura controlada por ele em todos os aspectos Mas a verdade que nenhuma realidade exterior pode ser controlada e isso ele viu amplamente numa das visitas ao barbeiro Entrei no barbeiro no modo do costume com o prazer de me ser f cil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas A minha sensibilidade do novo angustiante tenho calma s onde j tenho estado 106 Livro do Desasocego Tomo I p g 179 Quando me sentei na cadeira perguntei por um acaso que lembra ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pesco o um linho frio e limpo como ia o colega da cadeira da direita mais velho e com esp rito que estava doente Perguntei lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar ocorreu me a oportunidade pelo local e a Lembran a Morreu ontem respondeu sem tom a voz que estava por detr s da toalha e de mim e cujos dedos se erguiam da ltima inser o na nuca entre mim e o colarinho Toda a minha boa disposi o irracional morreu de repente como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado Fez frio em tudo quanto penso N o disse nada Saudades Tenho as at do que me n o foi nada por uma ang stia de fuga do tempo e uma doen a do mist rio da vida
436. siderar a obra de Pessoa a sua vasta e magn fica obra nada mais do que um subproduto dessa mesma condi o Na raiz de tudo est o que ele sentiu intimamente a sua reac o a luta da sua mente contra a forma como ele vivia a sua vida 4 Livro do Desasocego INCM II Tomos Lisboa 2010 Pessoa preferiu talvez sem grande hip tese em contr rio ou exemplo digno desse nome manipular a sua condi o no sentido de a apurar de a sublimar numa qualquer forma de verdade superior Viu a sua condi o enquanto uma oportunidade e n o como seria de esperar enquanto uma desgra a do destino neste sentido que se deve por exemplo interpretar esta sua c lebre passagem O meu destino pertence a outra Lei de cuja exist ncia a Ophelinha nem sabe e est subordinado cada vez mais obedi ncia a Mestres que n o permitem nem perdoams Mais tarde curiosamente tamb m a Oph lia acabando a rela o entre os dois Pessoa diz a minha vida gira em torno da minha obra liter ria boa ou m que seja ou possa ser Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secund rio h coisas naturalmente que estimaria ter outras que tanto faz que venham ou n o venham preciso que todos que lidam comigo se conven am de que sou assim e que exigir me os sentimentos ali s muito dignos de um homem vulgar e banal como exigir me que tenha olhos azuis e cabelo louro E estar a tratar me como se eu fosse outra pessoa n o a melh
437. smo sentido E que sentimento havia A impossibilidade de o ter o cora o desfeito na cabe a os sentimentos confundidos um torpor da exist ncia desperta um apurar de qualquer coisa an mica como o ouvido para uma revela o definitiva in til sempre a aparecer j como a verdade sempre como a verdade g mea de nunca aparecer At a vontade de dormir que lembra ao pensamento desapetece por parecer um esfor o o mero bocejo de a ter At deixar de ver faz doer os olhos E na abdica o incolor da alma inteira s os ru dos exteriores longe s o o mundo imposs vel que ainda existe Ah outro mundo outras coisas outra alma com que senti las outro pensamento com que saber dessa alma Tudo at o t dio menos este esfumar comum da alma e das coisas este desamparo azulado da indefini o de tudo 187 Nas descri es tardias presentes no Livro o autor estabelece crescentes muros entre o fora e o dentro Isto bvio nas transi es s bitas que lemos por exemplo no fragmento reproduzido em cima Depois de falar da n voa que indefine tudo subitamente aparece um E que sentimento havia Ao ler o texto completo temos a n tida sensa o de que a transi o entre o mundo exterior e o mundo interior abrupta precisamente porque existe uma dist ncia tamb m abrupta entre esses dois mundos e a escrita finalmente come a a traduzi la A aliena o continua depois na maneira como para al m da di
438. sonhador sem d vida algu m que de certo modo escolhido para sofrer que tem uma sensibilidade muito pr pria e que o distingue de todos em seu redor f cil de ver isso mesmo nos fragmentos seguintes A ac o uma doen a do pensamento um cancro da imagina o Agir exilar se Toda a ac o incompleta e imperfeita O poema que eu sonho n o tem falhas sen o quando tento realiz lo No mito de Jesus est escrito isto Deus ao tornar se homem n o pode acabar sen o pelo mart rio O supremo sonhador tem por filho o mart rio supremo 26 sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro ter experi ncia de todas as coisas de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos e sendo isto imposs vel a vida s subjectivamente pode ser vivida por inteiro s negada pode ser vivida na sua subst ncia total 227 Escuta me ainda e compadece te Ouve tudo isto e diz me depois se o sonho n o vale mais que a vida O trabalho nunca d resultado O esfor o nunca chega a parte nenhuma S a absten o nobre e alta porque ela a que reconhece que a realiza o sempre inferior e que a obra feita sempre a sombra grotesca da obra sonhada 228 226 Livro do Desasocego Tomo I p g 85 227 Livro do Desasocego Tomo p g 375 228 Livro do Desasocego Tomo I p g 80 nobre ser t mido ilustre n o saber agir grande n o ter jeito para viver 22 A ordem aleat ria como coloc mos os
439. ssa comunica o indirecta do emp rico ao metaf sico N o interessa realmente do que se fala 269 Livro do Desasocego Tomo I p g 117 270 Livro do Desasocego Tomo p g 77 porque nada do que se fala relacionado directamente com o mundo emp rico h entre falar e receber uma grande dist ncia e uma grande transforma o do que dito e experienciado A linguagem transforma se tamb m ela atrav s da arte e o que comunicado algo iminentemente art stico porque liter rio Esta filosofia assim tamb m uma nova corrente liter ria Necessariamente uma nova corrente liter ria N o bastava falar de uma nova maneira de viver era necess rio inventar uma nova maneira de comunicar aquilo que se v e vive Quanto a n s tudo isto significa que se deitam por terra as barreiras da chamada filosofia da linguagem e do empirismo l gico do in cio do S c XX que ainda hoje limita toda a filosofia enquanto ci ncia humana A linguagem n o faz sentido apenas na interac o humana mas na interac o art stica entre fonte e recipiente da comunica o verdade que as palavras continuam a ter um sentido dado pela comunidade social mas esse sentido n o limita a forma como n s as utilizamos atrav s da poesia A poesia ao destruir o significado imanente das palavras d lhes tamb m uma multiplicidade de significados que lhes restitui a verdade int ma e inicial A filosofia do Livro opera este maravilhoso regress
440. sse mesmo mundo O sensacionista continua a acreditar no mundo mas no seu mundo num mundo exterior que o meu mundo exterior sonhado por mim O slogan da Orpheu era sentir criar Pessoa queria dizer que o sentir deve substituir o pensar e que a sensa o deve substituir o pensamento Criar como Atrav s da arte po tica Portanto sentir criar arte po tica n o pensar Para qu pensar um mundo que falso Antes senti lo e compreend lo sem o compreender nas ant teses que encontramos um sentido obl quio para o pr prio sensacionismo enquanto filosofia dos opostos O seguinte fragmento datado precisamente da poca de Orpheu bastante claro a este n vel 1 A sensa o como realidade essencial 2 Aarte personaliza o da sensa o isto a substrac o da sensa o ser em comum com as outras 3 12 regra sentir tudo de todas as maneiras Abolir o dogma da personalidade cada um de n s deve ser muitos A arte aspira o do indiv duo a ser o universo O universo uma coisa imaginada a obra de arte 4 22 regra abolir o dogma da objectividade A obra de arte uma tentativa de provar que o universo n o real 5 32 regra abolir o dogma da dinamicidade A obra de arte visa a fixar o que s aparentemente passageiro 6 S o estes os tr s princ pios do Sensacionismo considerado apenas como arte 7 Considerado como metaf sica o Sensa
441. st ncia dos dois mundos se estabelece um desejo de um mundo melhor outro mundo outras coisas outra alma com que senti las Na verdade este desejo de outro mundo apenas uma consequ ncia directa do mundo que existe n o bastar por ser falso O que sabemos do mundo falso tamb m em continuidade Se a falsidade permeia todo o nosso conhecimento directo das coisas qual a solu o Talvez n o exista uma Por enquanto h que real ar apenas a forma como essa falsidade do mundo influi no contemplador E a forma como influi atrav s de uma sensa o que povoa todo o Livro o t dio O t dio um conceito muito forte em toda a filosofia Pessoana que tentaremos desenhar mas basta por agora dizer que este t dio nasce precisamente da incapacidade em considerar o mundo exterior enquanto verdade e ou continuidade do mundo interior Essa continuidade seria necess ria para que o contemplador pudesse p r em pr tica os seus sonhos interiores E essa continuidade exigia que n s soub ssemos realmente o que significa o mundo exterior N o o podendo saber resta nos uma sensa o que se aproxima da ang stia existencialista mas que vai para al m dela at um estado de nega o completa da realidade em favor de outra coisa O que essa outra coisa ser o que devemos descobrir na nossa leitura completa da obra de Fernando Pessoa e em particular do que ele escreveu no Livro do Desassossego Pela nossa parte intu
442. sta vis o da exterioridade enquanto coisa estranha separada de n s mesmos n o nova e tem ra zes profundas no pensamento budista Buda ensinou que a ra z da infelicidade o sofrimento e a ra z do sofrimento o desejo Ao cessar o desejo cessa o sofrimento Essa a teoria E a teoria diz nos que desejar o mesmo que viver exteriormente pois os nossos desejos embora nascendo interiormente tendem a realizar se exteriormente Ora se Buda ensina que devemos irradicar o desejo ele ensina nos a negar a pr pria validade do mundo exterior em favor do mundo interior O desejo a vida exterior em si mesma O budismo pode por isso ser entendido enquanto religi o que anula a realidade exterior em favor da realidade interior Claro que estamos a simplificar apenas para efeito demonstrativo o que queremos comunicar que o irradicar do desejo budista acaba por se identificar com este afastamento Pessoano S o uma e a mesma coisa Ao nos afastarmos do mundo irradicamos o desejo de o possuir e de nos concretizarmos nele N o pensamos no entanto que o objectivo do autor do Livro seja a ilumina o espiritual A sua busca uma busca por felicidade Por entre a casaria em intercala es de luz e sombra ou antes de luz e de menos luz a manh desata se sobre a cidade Parece que n o vem do sol mas da cidade e que dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende n o deles fisicamente mas deles po
443. stagna o no pr prio voo das gaivotas pareciam coisas mais leves que o ar deixadas nele por algu m Nada abafava A tarde ca a num desassossego nosso o ar refrescava intermitentemente Pobres das esperan as que tenho tido sa das da vida que tenho tido de ter S o como esta hora e este ar n voas sem n voa alinhavos rotos de tormenta falsa Tenho vontade de gritar para acabar com a paisagem e a medita o Mas h maresia no meu prop sito e a baixa mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que est ali fora e n o vejo sen o pelo cheiro Tanta inconsequ ncia em querer bastar me Tanta consci ncia sarc stica das sensa es supostas Tanto enredo da alma com as sensa es dos pensamentos com o ar e o rio para dizer que me d i a vida no olfacto e na consci ncia para n o saber dizer como na frase simples e ampla do Livro de Job Minha alma est cansada de minha vida 16s O t dio do autor do Livro est bastante distante do t dio tradicional dos existencialistas como j indic mos anteriormente A sua sensa o mais pr xima do verdadeiro cansa o com a vida ele est realmente a dizer nos que est cansado de viver e n o s cansado com o absurdo da vida A sua preocupa o ontol gica do ser e n o gnosiol gica do conhecimento O seu desespero nasce de um sentimento de desloca o face realidade exterior um sentimento de n o perten a a essa realidade que ele consegue ent o ver plenamente e
444. ste mundo A crian a que tens nos bra os nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre Nunca foste outra do que s e como n o seres virgem portanto Posso amar te e tamb m adorar te porque o meu amor n o te possui e a minha adora o n o te afasta 3 imposs vel imaginar uma mulher mais idealizada do que aquela que nos aparece como a Nossa Senhora do Sil ncio O pr prio t tulo dos textos impressionante no sentido que desenha uma presen a feminina apenas em contornos que n o fala nem age realmente que apenas existe para afirmar de certa maneira uma certa necessidade interior seja de companhia ou em ess ncia de confirma o de que esse mundo alternativo pode conter tudo o que o mundo exterior cont m mas num muito mais alto grau de serenidade e nobreza A figura da mulher reduzida e simultaneamente ampliada servindo de arqu tipo para toda as mulheres m es amantes irm s filhas A tal ponto ele despe a figura feminina do seu conte do concreto que chega a considerar que esse sonho de mulher quase n o nada Tu n o s mulher Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina quando falo de ti que as palavras te chamam f mea e as express es te contornam de mulher Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar como feminina Mas tu na tua vaga ess ncia n o s nada N o tens reali
445. t o intensamente propositada como outras de Fernando Pessoa um livro mais dormente menos intencional especialmente quando comparado com outros do poeta como por exemplo o Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro No Livro todos os pensamentos escorrem por impulso mas um impulso fraco n o vital como se o sonho povoasse toda a escrita que ali se encontra e assim retirasse dela toda a energia vitalizante das coisas das ideias das teorias Mas voltando consci ncia O afastamento do mundo leva o autor do Livro a considerar se isolado incapaz que de viver uma vida normal Surge depois a oposi o viver pensar imposs vel conciliar absolutamente estas duas dimens es sendo que o homem que vive a sua vida n o consegue ou n o admite sequer pensar nessa vida enquanto o homem que pensa na vida deixa de a puder viver normalmente Recorremos novamente a um ad gio para refor ar visualmente esta oposi o a centopeia que um dia come a a pensar na ordem pela qual deve colocar as suas pernas no ch o deixa de conseguir movimentar se O pensamento anula a ac o E o sonho o oposto da ac o Para algu m retirado da ac o na vida como o autor do Livro nada mais lhe resta do que optar pelo oposto da ac o o sonho Mas curios ssimo que depois de desistir da vida lhe seja dado o verdadeiro acesso consci ncia do mundo das coisas verdade que essa consci ncia existe mas para a acedermos temos de pagar
446. t ria do que nunca foi e um drama um romance dado sem narrativa Um poema a express o de ideias ou de sentimentos em linguagem que ningu m emprega pois que ningu m fala em verso 2 Escrever sobre algo de certa forma matar o que nisso h de ac o cristalizar a realidade exterior numa coisa diferente j interior por esta raz o que a escrita se torna t o importante enquanto ferramenta da filosofia do Livro pela prosa que o autor do Livro desenvolve o processo de matar a ac o e de sonhar objectivamente o mundo para dentro de si pr prio Ao escrever progressivamente esquece se Esquece se sobretudo do seu pr prio papel exterior na vida vida exterior Deixa de importar existir exteriormente porque tudo o que exterior passa a ser imaginado pelo sonho no acto de escrever que paradoxalmente se torna ele pr prio um acto de nega o de nulidade O t dio existencialista foi uma atitude negativa perante a vida que recusava enquanto fonte de verdade e por isso favorecia uma atitude de nada perante a ac o Mas o que existia para al m disso A filosofia do Livro oferece o passo seguinte atitude existencialista o mundo falso sim mas o mundo dentro de n s n o tem de ser falso pode ter a nossa verdade imaginada Todo o drama em gente deriva numa primeira fase deste princ pio simples 265 Livro do Desasocego Tomo p g 463 266 Livro do Desasocego Tomo p g 411 Se eu tivesse escrit
447. tas vezes ele colocava as suas diferentes personagens a vi i defender pontos de vista diametralmente opostos Mas ent o qual a posi o religiosa do autor do Livro Arriscamos dizendo que uma posi o mais pr xima do gnosticismo ou seja do conhecimento directo de Deus sem interm dio de uma religi o 27 Mas simultaneamente negando o papel de Deus na sua pr pria vida interior porque esta vida interior uma vida que decorre depois de uma morte cerimonial Devemos esclarecer este ponto muito importante Por defini o Deus a presen a intelectual infinita que rege toda a mat ria O conhecimento de Deus imposs vel ao homem no mundo material e ele muitas das vezes v se alienado de Deus sobretudo em fun o dessa mesma incapacidade o desconhecimento do plano divino que atira o homem quer para o desespero quer para o ate smo radical Este um homem preso mat ria e por isso mesmo preso a uma ideia de Deus que governa a mat ria visto que ele pr prio n o a consegue governar claro de ver que a ideia de Deus uma ideia de escape uma ideia necess ria a uma teoria do pensamento que n o consegue explicar a origem da ordem material Por isso mesmo a cren a nessa ideia uma cren a ela pr pria espiritual sem liga es mat ria E um salto de f sem consubstancia o racional Grande parte desta ansiedade nasce ent o do desafio de compreender a ideia do divino sem a
448. te a aristocracia interior aquela atitude de alma que mais se parece com pr pria atitude de corpo de um aristocrata completo 3 O Livro ele Quer isto dizer que algu m teve de escrever este Livro e escrevendo o escreveu a hist ria a exist ncia do seu pr prio autor Este super autor est na sombra misterioso mas ciente do que faz que est a criar uma dimens o interior a si pr prio sendo que meramente a deposita na presen a material mesmo que imaginada de um outro corpo de certa forma curioso pensar que o autor do Livro n o chega realmente a ter uma exist ncia f sica Mas se ele fala de imagina o de sonho h que contrapor este facto ao facto de existir uma exist ncia f sica intimamente ligada realidade do autor do Livro e essa exist ncia f sica a de Fernando Pessoa que o imagina inag vel que as figuras de Vicente Guedes ou Bernardo Soares existem por efeito intermedi rio de Pessoa que lhes empresta o seu corpo f sico Neste sentido o Livro realmente uma pura viagem na cabe a porque acontece todo em sonho A viagem pela pr pria vida de quem escreve o Livro num paradoxo interessant ssimo que nos revela desde logo que poss vel haver uma vida plena s em sonho de algu m que n o chega realmente a existir fisicamente S a exist ncia do Livro j uma confirma o desta realidade Trata se certamente de um livro estranho como o pr prio a
449. te a cidade de Lisboa distancia se dela isso vis vel no fragmento que copiamos em cima e no qual a descri o das sensa es rapidamente d lugar a um pensamento distanciador D i viver mas de longe Sentir n o importa A no o de que a dor de viver uma dor long nqua quer dizer que a inconsci ncia da vida apenas existe na proximidade das coisas materiais e n o na dist ncia relativamente a estas Novamente a realidade serve de fronteira entre o ser interior que vive a vida dist ncia e o ser exterior que a vive na proximidade Esta dist ncia reflectida no epis dio do mendigo o mendigo que ro a por mim pasmaria Porqu Porque quem conhece a exterioridade n o conhece a interioridade S o duas coisas t o distintas que o nico ponto de comunica o entre ambas mesmo o ser As duas dores da vida vivida e da vida contemplada servem igualmente de fronteira entre ac o e sonho Quem tem o seu trabalho e inconsciente o vive quotidianamente sente a sua dor pessoal mas uma dor diferente gozada na felicidade da inconsci ncia Para quem olha a vida de longe analisando e contemplando a d i viver mas de longe Para esses sentir n o importa porque a contempla o pura serve lhes de alimento ao intelecto Mas at que ponto que o autor do Livro consegue atingir um estado de contempla o pura 14 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 161 145 Livro do Desasoceg
450. te a quem recebe o que ele produziu Quando fala dele mesmo ela limita se tamb m a uma sensa o vaga do que ele Ali s o vago povoa todas as sensa es do Livro e n o s sendo mesmo uma constituinte substancial desta filosofia que uma filosofia do pr prio vago Dizer demasiado pensar sobre a realidade H que aceitar a falsidade da realidade e por isso mesmo a inevitabilidade de n o a compreendermos O pr prio ser n o tem nenhum significado sen o enquanto sensa o Quem sou eu para mim S uma sensa o minha O meu cora o esvazia se sem querer como um balde roto Pensar Sentir Como tudo cansa se uma coisa definida 247 Porque esta uma sensa o vaga Porque tudo feito de imperman ncia O dinamismo coloca o ponto de partida da sua artificializa o da sensibilidade no mundo externo no objecto a descrever ou a cantar seja qual for Ora como a condi o fundamental do mundo externo a imperman ncia a for a em cont nua ac o o Dinamismo interpreta tudo como fugitivo de passagem Para o abstraccionismo o ponto de partida j n o o objecto da sensibilidade mas o conceito mediato entre esse objecto e a pr pria sensibilidade E por isso sobretudo intelectual O Sensacionismo recua ainda mais o ponto de vista da artificializa o ele j n o est no conceito mesmo mas na pr pria sensa o inteiramente subjectiva 248 A nica coisa que parece poder sabotar o sensacionismo a
451. te de sonhar n o a arte de orientar os sonhos Orientar agir O sonhador verdadeiro entrega se a si pr prio deixa se possuir por si pr prio Foge a todas as provoca es materiais H no in cio a tenta o de te masturbares H a do lcool a do pio a Tudo isso esfor o e procura Para seres um bom sonhador tens de n o ser sen o sonhador pio e morfina compram se nas farm cias como pensando nisto queres poder sonhar atrav s deles Masturba o uma coisa f sica como queres tu que te sonhes masturbando te v que em sonhar talvez fumando pio recebendo morfina te embriagues da ideia do pio da morfina dos sonhos n o h sen o que elogiar te por isso est s no teu papel ureo de sonhador perfeito Julga te sempre mais triste e mais infeliz do que s Isso n o faz mal mesmo por ilus o um pouco escadas para o sonho 218 Juntemos mais algumas regras s que t nhamos sintetizado antes Guarda a ideia do que n o vai ter ou fazer Sonhar encontrarmo nos S passivo N o orientes entrega te a ti pr prio Foge a todas as preocupa es materiais Julga te sempre mais triste e infeliz do que s Z O in cio do fragmento especialmente pungente por demonstrar o tal lado doloroso de que fal vamos h pouco Vemos como o escape da realidade traz ainda os s mbolos dessa pr pria realidade N o respeitar nada mas guardar a vontade de respeitar n o amar mas guardar o desejo dolo
452. te passar por todas as fases vis veis desse m todo que se dividiu ele pr prio pelo n mero exacto dos heter nimos mais importantes dedicando uma obra de an lise a cada um deles Descobrimos em Caeiro o vazio essencial do mestre Buda que se aproxima da realidade para a negar vimos em Reis a nobreza est ica de aceitar o destino observando o de longe e sentimos de perto a terr vel ang stia de lvaro de Campos que afogado nas sensa es do mundo se refugiou delas para mais perto de si e para perto de Fernando Pessoa ele pr prio Cheg mos agora altura essencial ao cume da pir mide formada pelas quatro linhas base Caeiro Reis Campos Pessoa Esse cume dourado cimo s ntese de tudo o resto tem um nome mas tem sobretudo um t tulo visto que em ess ncia a obra se confunde com o s seu s autor es Livro do Desassossego N o nos interessa quem o autor do Livro se Vicente Guedes se Fernando Pessoa se Bernardo Soares Interessa nos apenas colocar em bandeira um dos seus fragmentos essenciais e a partir dele definir a ltima parte do sistema Pessoano Esse fragmento O sonhador que o homem de ac o Devemos partir para este fragmento vindos da ltima fase de lvaro de Campos Relembremos Campos e a maneira como ele falhou magnificamente nos seus esfor os Ele que era por defini o o homem de ac o e que no final queria apenas a paz que apenas reservada aqueles que observam o exteri
453. templa o por destino N o sabendo o que a vida religiosa nem podendo sab lo porque se n o tem f com a raz o n o podendo ter f na abstrac o do homem nem sabendo mesmo que fazer dela perante n s ficava nos como motivo de ter alma a contempla o est tica da vida E assim alheios solenidade de todos os mundos indiferentes ao divino e desprezadores do humano entregamo nos futilmente sensa o sem prop sito cultivada num epicurismo subtilizado como conv m aos nossos nervos cerebrais A viragem do s culo XIX para o s culo XX marcada por esse abandono de Deus em favor da ci ncia ou melhor da pr pria energia vital do homem De certa forma um mpeto ao regresso s origens substituindo a cren a metaf sica pela cren a num futuro desenhado pelos pr prios homens Eis o porqu da crescente import ncia da tecnologia da ind stria e das sucessivas inven es surgidas neste per odo a menor das quais n o ser a electrifica o em massa das cidades Norte Americanas e Europeias A mudan a do foco de Deus metaf sica para o Homem f sica marca o nascimento de um movimento filos fico denominado existencialismo cujo mantra essencial desenhado sobretudo depois da morte de Nietszche nos diz que cabe ao homem construir o seu pr prio destino com as suas pr prias m os Muitos estudiosos Pessoanos ligam a escrita do Livro a uma esp cie de pr existencialismo aparentemente impregnado de m ximas
454. timento do absurdo e da negatividade 2 por aqueles que agem perante esse sentimento Nesta medida ele teria dois p blicos que classificados Pessoanamente poderiam ser 1 os homens comuns que se limitem a sentir 2 os homens superiores que pensam 182 Negado categoricamente mas nem assim esquecido como demonstra um pequeno fragmento pouco mais tardio onde se diz Podemos morrer se apenas am mos p g 337 da edi o cr tica citada At que ponto tudo isto far sentido dentro de uma filosofia coerente algo que teremos ainda de considerar ao longo do nosso estudo mas julgo que estes princ pios basilares se apresentam de forma bastante clara no texto do Livro do Desassossego e mesmo explicitamente tamb m por estarem t o claros que n o podemos deixar de ficar espantados porque ainda ningu m os abordou como n s os estamos a tentar abordar neste estudo XVI Disse Amiel que uma paisagem um estado de alma mas a frase uma felicidade frouxa de sonhador d bil Desde que a paisagem paisagem deixa de ser um estado de alma Objectivar criar e ningu m diz que um poema feito um estado de estar pensando em faz lo Ver talvez sonhar mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar que distinguimos sonhar de ver De resto de que servem estas especula es de psicologia verbal Independentemente de mim cresce erva chove na erva que cresce e o sol doira a extens o da erva que cresceu ou vai
455. tmo ocasional de verso n o estorva a prosa um ritmo ocasional de prosa faz trope ar o verso Na prosa se engloba toda a arte em parte porque na palavra se cont m todo o mundo em parte porque na palavra livre se cont m toda a possibilidade de o dizer e pensar Na prosa damos tudo por transposi o a cor e a forma que a pintura n o pode dar sen o directamente em elas mesmas sem dimens o ntima o ritmo que a m sica n o pode dar sen o directamente nele mesmo sem corpo formal nem aquele segundo corpo que a ideia a estrutura que o arquitecto tem que formar de coisas duras dadas externas e n s erguemos em ritmos em indecis es em decursos e fluidezas a realidade que o escultor tem que deixar no mundo sem aura nem transubstancia o a poesia enfim em que o poeta como o iniciado em uma ordem oculta servo ainda que volunt rio de um grau e de um ritual Creio bem que em um mundo civilizado perfeito n o haveria outra arte que n o a prosa Deixar amos os poentes aos mesmos poentes cuidando apenas em arte de os compreender verbalmente assim os transmitindo em m sica intelig vel de cor N o far amos escultura dos corpos que guardariam pr prios vistos e tocados o seu relevo m bil e o seu morno suave Far amos casas s para morar nelas que enfim o para que elas s o A poesia ficaria para as crian as se aproximarem da prosa futura que a poesia por certo qualquer coisa de infantil de mem nic
456. to a n s ser definida enquanto uma poesia do afastamento Porqu Por duas raz es simples gt A reflex o sobre o exterior e a poesia Pessoana muito virada para a reflex o para o rac ocinio serve sobretudo para o autor dessa reflex o se separar do mundo em seu redor gt Oisolamento do sujeito que pensa a realidade leva o a sentir uma intensa deslocaliza o face realidade que observa como um Deus ausente que olha para baixo para um mundo que o seu mas que simultaneamente lhe completamente inacess vel A palavra deslocaliza o uma palavra chave para descodificar o Livro mas mais amplamente toda a obra de Fernando Pessoa Porque o sujeito po tico ao se colocar fora do mundo atrav s do seu racic nio anal tico ganha uma nova perspectiva desse mesmo mundo uma perspectiva inactiva e por isso amplamente radicada no sonho O sonho enquanto ferramente dessa perspectiva inactiva surge necessariamente como a nica forma que o sujeito po tico tem de compreender a realidade a que j n o pertence esta realidade vista de fora que cabe dentro do sonho Para o sonho a realidade vista de fora torna se a nica realidade que existe Assim podemos ver como todas as maquina es estranhas de Pessoa enquanto escritor fora de fase podem fazer sentido E apenas fazem sentido considerando que em ltima inst ncia a poesia que permite ao sujeito po tico encarar a an lise da real
457. to da vida No texto que reproduzimos em cima e que reproduzimos inteiro propositadamente vemos como o autor do Livro expressa uma atitude reflexo da inac o que pratica interiormente Come a por dizer que sai de casa para um grande fim que afinal s chegar a horas ao escrit rio N o penso que se trata de ironia antes o refor o da import ncia dos pormenores numa vida que se esgota exteriormente e onde as pequenas ac es podem tornar se grandes universos dentro de si mesmas A mera ac o de ir para o escrit rio pode ser maximizada em import ncia numa vida que em si mesma n o tem import ncia nenhuma Ao mesmo tempo que esta maximiza o das pequenas ac es refor a a import ncia do mundo interior ela diminui e relativiza a pr pria seriedade do mundo exterior enquanto amea a Se tudo no exterior puder ser encarado enquanto mero ritual num processo em que se retira toda a import ncia aparente das coisas o homem liberta se da pr pria press o de ter de viver porque a vida ela pr pria n o tem significado para ele H no autor do Livro j uma grande incorpora o instintiva destes princ pios pois ele ao ver a vida na sua ebuli o que envolve tudo pode j dizer Senti me feliz por n o poder sentir me infeliz H uma grande indiferen a na sua abordagem do mundo f sico que embora seja em grande parte um afastamento derivado da sua condi o pessoal passa a ser tamb m uma escolha individual
458. to que no cerne desta filosofia do Livro esteja uma est tica terrivelmente simples Ali s o pr prio conceito de est tica que manter esta filosofia aplic vel vida exterior e lhe permitir superar os desafios colocados a qualquer metaf sica Porqu Vejamos A filosofia do Livro uma filosofia de nega o da realidade imanente o autor do Livro diz nos que a verdade n o est ao nosso alcance e que por isso a realidade falsa Depois apresenta nos uma alternativa a constru o da nossa pr pria realidade com a nossa pr pria verdade ideia incorporada na m xima vive a vida n o sejas vivido por ela O conceito de est tica de grande import ncia para uma filosofia deste tipo Devemos refor ar que consideramos aqui a est tica n o enquanto ci ncia do belo mas antes enquanto uma ci ncia operativa do visual O que est tico visual se bem que o possamos considerar tamb m sensa o se bem que num momento posterior como iremos ver Antes de tudo uma impress o est tica uma exist ncia para o mundo no caso da individualidade consistindo numa m scara numa constru o pessoal consciente ou n o dirigida aos outros Tomando o fragmento anterior vemos como se aplicar este conceito O autor do Livro considera se progressivamente tomado pela in rcia ao ponto de se chamar de abdicador Ele abdicou do mundo mais propriamente da experi ncia do mundo enquanto ele pr prio At as
459. toda a realidade exterior deve ser transposta interiormente deixando o exteriormente apenas com um corpo est tico vazio que n o na realidade ele mas uma m scara uma testa de ferro para esta sua aventura ontol gica Os seus actos da vida real por perderem instantaneamente a sua import ncia j n o o vivem a ele mas s o vividos por ele de uma forma despreocupada Porqu Porque o que realmente interessa o verdadeiro mundo uma projec o interior incalcans vel pela ac o e onde ele n o tem de agir materialmente pois basta lhe imaginar para que tudo se torne verdadeiro de imediato Voltando um pouco atr s podemos tamb m ver como a prosa um passo essencial para atingir este grau de consci ncia do sonho a prosa que desencadeia a compreens o visual do mundo interior atrav s do sonho Tudo o que imaginado pode ficar nesse plano da imagina o em conceito n o escrito mas se for revelado pela prosa po tica ganha uma consist ncia muito pr pria mais perto da realidade exterior mas ainda assim afastado dela o suficiente para que n o corra o risco de se ver dilu do da sua ess ncia Todo o mundo interior ent o revelado pela escrita po tica sem que nunca se chegue a concretizar na realidade exterior a palavra escrita e cifrada pela poesia serve de intermedi rio intelectual entre o ser e o sonho f cil de ver que o sonhador ter a tend ncia a acreditar no pr prio acto da escrita co
460. trei senhor essa Porta Vaguei senhor por esse mar Contempleil senhor esse invis vel abismo Ponho esta obra de Descoberta suprema na invoca o do vosso nome portugu s criador de argonautas 2 ainda cedo para relacionarmos este fragmento com o espantoso projecto do Imp rio Espiritual Sebastianista mas podemos desde j insinuar a rela o Na verdade este ser um dos objectivos finais do Livro e da pr pria vida do autor do Livro Desde j este fragmento tem tamb m imensas semelhan as curiosamente com o famoso texto de lvaro de Campos a Tabacaria onde o Engenheiro escreve O mundo para quem nasce para o conquistar E n o para quem sonha que pode conquist lo ainda que tenha raz o Tenho sonhado mais que o que Napole o fez Tenho apertado ao peito hipot tico mais humanidades do que Cristo Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu Mas sou e talvez serei sempre o da mansarda O que leva a considerar a validade do mundo da imagina o d plice por um lado existe o pensamento o sonho as teorias por outro a implac vel no o de que essas teorias nunca poder o ser colocadas em pr tica Fernando Pessoa sentiu sempre esse abismo inultrapass vel entre a teoria e a pr tica entre o pensar e o existir Tanto assim que chegado a determinada fase da sua vida achou que faria sentido apostar plenamente num mundo que era o seu mesmo que 2 Livro do Desasocego Tomo 1 p g
461. tudo A monotonia de tudo n o por m sen o a monotonia de mim Cada rosto ainda que seja o de quem vimos ontem outro hoje pois que hoje n o ontem Cada dia o dia que e nunca houve outro igual no mundo S em nossa alma est a identidade a identidade sentida embora falsa consigo mesma pela qual tudo se assemelha e se simplifica O mundo coisas destacadas e arestas diferentes mas se somos m opes uma n voa insuficiente e cont nua O meu desejo fugir Fugir ao que conhe o fugir ao que meu fugir ao que amo Desejo partir n o para as ndias imposs veis ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo mas para o lugar qualquer aldeia ou ermo que tenha em si o n o ser este lugar Quero n o ver mais estes rostos estes h bitos e estes dias Quero repousar alheio do meu fingimento org nico Quero sentir o sono chegar como vida e n o como repouso Uma cabana beira mar uma caverna at no socalco rugoso de uma serra me pode dar isto Infelizmente s a minha vontade mo n o pode dar A escravatura a lei da vida e n o h outra lei porque esta tem de cumprir se sem revolta poss vel nem ref gio que achar Uns nascem escravos outros tornam se escravos e a outros a escravid o dada O amor cobarde que todos temos liberdade que se a tiv ssemos estranhar amos por nova repudiando a o verdadeiro sinal do peso da nossa escravid o Eu mesmo que acabo de dizer que desejaria a ca
462. ue esta filosofia implica um elevado grau de comprometimento maneira asc tica antiga nomeadamente pelo abandono de tudo o que antes era considerado essencial sobretudo no que toca experi ncia humana A vida dele torna se est tica e isso significa que para os outros ele continua igual uma m scara social porque na realidade tudo se constr i dentro dele mesmo Todo o seu mist rio uma coisa que n o partilhada apenas vivida interiormente H aqui uma enorme coincid ncia com o que foi a vida do pr prio Fernando Pessoa que nunca daria a conhecer exteriormente as suas preocupa es ou fraquezas interiores Para os outros ele era algu m de muito diferente do que ele consideraria realmente ser interiormente N o que ele tivesse interiormente uma imagem muito definida de si pr prio pelo contr rio o mais prov vel que ele n o tivesse esta objectividade antes uma falta propositada dela considerando ser poss vel n o se comprometer com nenhuma defini o de si pr prio ao ponto de todas as suas sensa es se dilu rem umas nas outras sem identidade final A est tica enquanto parte do seu plano filos fico revela se ent o como um passo necess rio na sua interac o social Mas n o s Ela n o serve apenas para o proteger dos outros reservando a sua intimidade apenas para si pr prio A est tica tamb m uma forma de ele entender o pr prio mundo que recusa Sen o vejamos por exemplo como
463. ue pensam que existe algum s tio para onde ir realmente A ternura que ele sente por eles ir nica porque na realidade ele sente pena por eles Pobres coitados sem saber que s o manipulados por uma realidade que lhes mente que os mant m adormecidos Falta lhes a consci ncia da inconsci ncia e sem isso s o apenas fantoches da realidade exterior N o importa se inteligentes ou est pidos porque a intelig ncia marca se apenas por quem reconhece a sua pr pria inconsci ncia da vida Na mente do autor do Livro ningu m poder olhar para ele da maneira como eles olha para os outros homens simplesmente porque os homens n o pensam nisso Eles apenas querem agarrar o quotidiano os prazeres materiais a realidade imanente a sua vis o dos outros que impede que os outros tamb m o possam ver a ele da mesma maneira por observ los que ele torna 5 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 196 7 imposs vel que algu m o observe a ele Ele pr prio reconhece perto de si estes exemplos maiores da insconsci ncia os seus colegas e os seus chefes no escrit rio Isto leva necessariamente a que o autor do Livro cultiva cada vez mais a sua solid o Para ele a companhia dos outros n o sen o uma intromiss o na sua pr pria vida interior todos os corpos se intrometem na sua pr pria exist ncia Porqu Porque a vida consciente uma vida que recusa a normalidade da vida inconsciente Entre os actos dessa normalidade est
464. uma decis o O seu t dio uma condi o psicol gica de afastamento completo do mundo exterior que lhe permite uma indiferen a completa face ao que v e percepciona Esse afastamento permite lhe lidar com os fen menos exteriores enquanto cenas do quotidiano que bem poderiam ser pintadas em vez de encenadas em tempo real pois elas pr prias se v o tornar maquinais insinceras quase fingidas perante a sua consci ncia de uma vida em que ele o nico portador de uma verdade inc moda O seu afastamento quase pode ser definido enquanto presen a paralela entre a sua consci ncia do mundo e a inconsci ncia do mundo por parte de todos os outros Bem sei que as bananas ser o outras e que as vendedeiras ser o outras e que os jornais ter o a quem se baixar para v los uma data que n o a de hoje Mas eles porque n o vivem duram ainda que outros eu porque vivo passo ainda que o mesmo 175 Livro do Desasocego Tomo p g 308 Ele agrupa as classes dos objectos inanimados bananas jornais com a classe dos que trabalham vendedeiras como se fossem uma e nica coisa E na verdade assim que ele os v porque tudo o que desempenha uma fun o restrita no mundo exterior representa uma mesma realidade imut vel que se repetir ad eternum O verdadeiro objectivo do homem que sonha a sua pr pria realidade ser porventura quebrar este ciclo infinito de repeti es sem sentido aparente O autor do Livro ao se distanciar d
465. uma realidade pensada que a pr pria realidade n o existe sen o quando pensada pelo observador A ren ncia exterioridade pura total Nada existe pelo menos com significado se n o for sonhado pelo observador consciente E a pr pria vida exterior inconsequente in til se n o for ela pr pria sonhada A preponder ncia do interior esmagadora ao ponto de nada existir fora do pensamento Este dom nio do racional perante o real uma forma de entendermos o mundo numa perspectiva em que o observador domina a realidade e pode pens la sua maneira Claro que a realidade exterior continua a ser a base do pensamento pois sem corpo f sico n o h pensamento mas o pensamento agora o centro do Universo o pensamento que domina a realidade mesmo que n o a possa modificar realmente ele pode transportar essa realidade ou uma c pia exacta dela para dentro de si mesmo e faz la existir sua maneira enquanto sonho Pode parecer algo despropositado dizer que ter um sonho construir uma nova realidade completa mas devemos pensar at que ponto n s sabemos se a realidade que consideramos como nica realmente nica Sobretudo depois dos existencialistas a filosofia foi tomada por uma sensa o de medo relativamente a esta quest o da verdade e dos significados Se somos n s os nicos respons veis pelo nosso destino vivendo num mundo exterior que nos ignora e que j n o governado por uma qualquer
466. uma resposta definitiva Mas desde j podemos aventurar nos a dizer que o Deus dos outros diferente do Deus do autor do Livro embora se possa falar at da mesma figura simb lica Talvez Deus possa ser mec nico para o mundo e significativo para o indiv duo Talvez apenas o indiv duo possa revelar Deus dentro de si pr prio enquanto que Deus no mundo apenas se revela pela ordem e a organiza o das coisas Existem no Livro do Desassossego in meros exemplos da maneira como esta estranheza e esta separa o se insinuam na vida e na escrita de Fernando Pessoa Ele v insistentemente a realidade exterior apenas enquanto observador puro sobretudo quando a realidade exterior entre em confronto directo com ele pr prio Quando mais pormenorizada a descri o da cidade maior o afastamento dele porque quanto mais se observa menos se vive A descri o vive em completa oposi o viv ncia das coisas e isto dolorosamente evidente em dezenas se n o mesmo centenas de fragmentos do Livro Este afinal o trajecto de algu m que progressivamente abandona a familiaridade com todas as coisas Ele permanece soci vel apenas na medida exacta das necessidade do escrit rio e da sua vida quotidiana Trabalha compra coisas passa pelas ruas observa lojas e fachadas outras pessoas mas a vida para ele como um filme projectado sua frente que ele n o consegue levar realmente a s rio O seu afastamento extremo terminal
467. undo e continuar vivo negando a validade da realidade exterior Mas negando essa realidade h que validar outra realidade qualquer que a substitua precisamente com este objectivo que ele nos desenha as descri es do Livro enquanto descri es simb licas da realidade N o pensamos que exista nada de sup rfluo no que ele escreve e a tradu o po tica do que os sentidos apreendem utilit ria iminentemente utilit ria no sentido em que ele se desprende da realidade atrav s da poesia N o 171 Livro do Desasocego Tomo 1 p g 290 1 necessariamente da realidade em si mesma mas da realidade exterior em favor da realidade interior Fernando Pessoa j nesta fase da sua vida algu m profundamente afastado da vida exterior sem liga es emocionais de relevo mantendo contacto pessoal com muitas pessoas mas invariavelmente sozinho no seu quarto noite sofrendo com ins nias e solid o Um homem profundamente s um homem profundamente afastado da realidade um observador perfeito dir se ia dessa mesma realidade nesta medida em que Pessoa poder por vezes encarar o seu c rcere a sua condena o a estar s enquanto uma esp cie de miss o levada a cabo para mestres superiores Enquanto outros poetas da sua altura escolheram o suic dio quando colocados frente a frente com esta esp cie de desespero existencial Pessoa escolhe enfrentar o mesmo e achar lhe uma utilidade por mais absurda porque afina
468. uperior que escapa ao comum dos mortais que acaba por julgar Deus pelos peda os isolados desse mesmo plano Esses peda os isolados podem mesmo ser vistos como puro mal mas segundo o autor do Livro acabar o por n o ser mais do que arritmias num ritmo metaf sico infinitamente superior que ningu m consegue perceber ou sequer intuir Isto serve para de certa forma justificar que a raz o divina superior raz o humana porque incompreens vel Mas e isso que importante ele n o se coloca numa posi o ate sta antes gn stica Sabemos que Fernando Pessoa tinha uma grande atrac o pelo lado oculto por uma vis o ritualista e l gica no acesso ao divino o que o aproximou por exemplo das teorias alquimistas e secretas curioso ent o ler o que diz o autor do Livro a este respeito Tive sempre uma repugn ncia quase f sica pelas coisas secretas intrigas diplomacia sociedades secretas ocultismo Sobretudo me incomodaram sempre estas duas ltimas coisas a pretens o que t m certos homens de que por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos sabem l entre eles exclusos todos n s outros os grandes segredos que s o os caboucos do mundo 26 xclui i us u i V Ele parece excluir o conhecimento secreto de Deus Parece recusar o conhecimento aventado pelas sociedades secretas as quais atra am tanto Fernando Pessoa Esta uma contradi o Fernando Pessoa visto que mui
469. utor assume Belo sim mas intrinsecamente in til porque nada ensina nada faz crer nada faz sentir Diz ainda dele na mesma passagem que temos vindo a citar E porque este livro absurdo eu o amo porque in til eu o quero dar e porque de nada serve querer to dar eu to dou N o devemos interpretar literalmente o que nos diz o autor A inutilidade do Livro aqui indicada apenas no sentido de ele n o ter realmente um uso pr tico uma praxis porque todo ele teoria todo ele sonho e imagina o Ser in til n o propriamente negativo Por defini o ele teria mesmo de ser in til visto que utilidade de algo subentende se a utilidade pr tica de algo Neste caso n o haver uma utilidade pr tica porque o Livro um manual de sonhos auto realizado na pessoa de quem o escreve Neste sentido o Livro tem um significado semelhante ao Livro do Desasocego Tomo I p g 149 4 As horas em que a paisagem uma aur ola de Vida e o sonho apenas sonhar se eu ergui meu amor no sil ncio do meu desassossego este livro estranho como port es abertos numa casa abandonada in Livro do Desasocego Tomo 1 p g 24 45 Livro do Desasocego Tomo I p g 24 que o Guardador de Rebanhos teve para Alberto Caeiro define o seu autor e ajuda o a compreender quem VII Tenho amor a isto talvez porque n o tenha mais nada que amar Desenh mos at agora a figura de um homem sem am
470. vai b bado vai sonhador Est atento ao inexistente talvez ainda espere 1 3 A familiaridade do escrit rio reveladora dessa continuidade emocional entre o quarto de casa e o ambiente de trabalho N o h uma quebra real entre os dois sendo que no mundo do autor do Livro ambos se complementam numa realidade em que o interior domina o exterior e em que esse mesmo exterior serve o interior 102 Livro do Desasocego Tomo I p g 368 103 Livro do Desasocego Tomo I p g 180 XIII O meu desejo fugir Fal mos um pouco no cap tulo anterior da vida de escrit rio enquanto elemento essencial para a compreens o da vida exterior do autor do Livro Mas falta nos ainda tocar em alguns elementos que embora dentro dessa vida exterior fogem de certa maneira ao escrit rio Isto porque existem alguns elementos rebeldes que nada t m a ver com o escrit rio onde ele trabalha mas que o afectam sobremaneira Vamos abord los de seguida pormenorizadamente Mas antes disso h apenas que introduzir uma pequena nuance Porque que o autor do Livro construtor assumido do seu pr prio plano de exist ncia interior mostra ainda sinais de grave desajustamento realidade exterior nomeadamente expressos em vastas passagens onde diz que deseja ter uma vida diferente Porque que o seu mundo ideal n o completa os seus desejos como seria de esperar Estou num dia em que me pesa como uma entrada no c rcere a monotonia de
471. ver sempre a aceita o desta miss o enquanto representativa de um esfor o nobre por parte de quem a empreende Nisto ela identifica se com uma certa nobreza de car cter numa esp cie especial de homem que recusa a facilidade que renega ao que f til e comum O mood do Livro do Desassossego alterna sempre entre uma esp cie de t dio e uma sensa o permanente de desprendimento e de des nimo com a vida Mas h nele tamb m uma aparente alegria relativa possibilidade do homem aceder a um est dio superior de felicidade N o h que esquecer que toda a obra de Pessoa dirigida a um objectivo simples esse objectivo alcan ar a felicidade n o propriamente coincidente com alcan ar a verdade embora possamos dizer que z a verdade pode muito bem ser sin nimo de felicidade A realiza o do corpo est tico apenas um dos passos no caminho para a felicidade na maneira como proporciona ao autor do Livro a hip tese plena de escapar dor ao sofrimento do mundo Budha falava da aniquila o do sofrimento em termos muito similares aos que encontramos no Livro sobretudo na maneira como ele insistia em que conhec ssemos a raiz do sofrimento para que nos pud ssemos livrar dele O budismo aconselha nos a esquecermos a paix o ou paix es a dominar a nossa ira aniquilar a vaidade e o conceito do eu de modo a atingirmos um estado superior de conhecimento De certa maneira podemos ver como isto s
472. vro Trata se de um sentimento de anula o da vida porque uma energia invertida uma vontade de nada que facilmente se torna numa ponte para o sonho que nada mais que a fase mais avan ada do tal sono A Morte o triunfo da Vida Pela morte vivemos porque s somos hoje porque morremos para ontem Pela morte esperamos porque s podemos crer em amanh pela confian a na morte de hoje Pela Morte vivemos quando sonhamos porque sonhar negar a vida Pela morte morremos quando vivemos porque viver negar a eternidade A Morte nos guia a morte nos busca a morte nos acompanha Tudo o que temos morte tudo o que queremos morte morte tudo o que desejamos querer Sonhar negar a vida diz o autor do Livro no fragmento que reproduzimos em cima Poder se ia ler igualmente com sentido semelhante Sonhar morrer ou Morrer sonhar Em todas estas afirma es h uma grande aus ncia de Deus s o afirma es de uma individualidade extrema radical radicadas numa decis o humana que n o necessita de interven o ou base divina Deus aqui pode estar ausente porque Deus curiosamente parece servir apenas ao mundo material Deus a base do exterior do homem e n o do seu interior Deus ser a alma de tudo sim mas o mundo interior um mundo para al m ou talvez aqu m desse tudo e por isso mesmo ignorado por ele Quase se consegue perceber a presen a exterior de Deus pesada como o pr p
473. vro n o consegue desassociar as duas coisas por estar j t o desligado da pr pria cidade e sobretudo da civiliza o que a suporta O afastamento dos outros uma aproxima o para si pr prio para uma condi o singularmente individual verdadeiramente individual porque ele deixa de se preocupar com o mundo exterior por estar afastado dos outros que ele tem instintivamente uma vis o original e descomprometida da realidade exterior Aquele j n o o seu mundo mas apenas um mundo em que ele for ado a existir para que possa construir um diferente para si pr prio A realidade passou a ter uma fun o de ferramenta para dar acesso a uma c pia de si mesma mas imaginada essa realidade a interior que lhe interessa realmente Vemos como importante distinguir esta atitude perante a atitude dos existencialistas O autor do Livro n o tem qualquer ambi o para a sua exist ncia f sica Apenas existe porque for ado a isso De resto tudo vai transitar para um outro mundo imaginado irreal fantasioso nesse outro mundo que ele vai expressar todo o seu desejo de liberdade IX H sensa es que s o sonos que ocupam como uma n voa toda a extens o do esp rito que n o deixam pensar que n o deixam agir que n o deixam claramente ser Como se n o tiv ssemos dormido sobrevive em n s qualquer coisa de sonho e h um torpor do sol do dia a aquecer a superf cie estagnada dos sentidos uma bebedeira
474. x lio que sou quanto fora melhor ser o ningu m de todos o feliz que tem ao menos a amargura real o contente que tem cansa o em vez de t dio que sofre em vez de supor que sofre que se mata sim em vez de se morrer Tornei me uma figura de livro uma vida lida O que sinto sem que eu queira sentido para se escrever que se sentiu O que penso est logo em palavras misturado com imagens que o desfazem aberto em ritmos que s o outra coisa qualquer De tanto recompor me destru me De tanto pensar me sou j meus pensamentos mas n o eu Sondei me e deixei cair a sonda vivo a pensar se sou fundo ou n o sem outra sonda agora sen o o olhar que me mostra claro a negro no espelho do po o alto meu pr prio rosto que me contempla contempl lo 7 H nos dois fragmentos anteriores a descri o horr vel da dissolu o do eu numa outra coisa qualquer A dolorosa perda da identidade com que todos nascemos que sacrificada no altar do sonho d origem a uma dor maior do que qualquer dor f sica que possamos imaginar O autor do Livro passa por um processo doloroso que na verdade nunca se parece concluir Sente se sempre a existir num intervalo de uma coisa qualquer que n o vida nem morte afinal aquilo de que fal mos antes um estado interm dio entre a realidade exterior e o sonho Vive num limbo imposs vel como um recluso solit rio mas no meio de uma grande cidade cosmopolita morto por fora mas ainda vivo por dent
475. xterior determina se a si pr prio enquanto filosofia do mundo exterior E nesta perspectiva que a corrente pretende definir um novo homem um homem que tem a liberdade de decidir o seu pr prio destino num mundo 156 Livro do Desasocego Tomo I p g 221 157 Livro do Desasocego Tomo I p g 222 23 158 Este livro foi publicado em 1938 portanto alguns anos depois das p ginas do Livro do Desassossego serem escritas mas j antes sobretudo em Nietzsche podemos encontrar o primeiro uso da express o n usea numa dimens o existencialista absurdo que o ignora Este homem abandonado por defini o o homem do existencialismo um homem que guarda em si mesmo todo o seu poder e toda a sua pot ncia em termos que ningu m melhor que Nietzsche definiu em diversas obras de grande vigor Ora o autor do Livro queixa se de uma n usea n o relativa aos objectos mas relativa sobretudo s pessoas e s pessoas na dimens o das vidas que levam e que s o paralelas exteriormente sua pr pria N o o vemos a queixar se de uma n usea objectificada a n o ser nas pessoas De resto a express o n usea que aparece trinta vezes no Livro do Desassossego refere se quase sempre vida Deixamos aqui apenas dois exemplos disso mesmo A vida pode ser sentida como uma n usea no est mago a exist ncia da pr pria alma como um inc modo dos m sculos A desola o do esp rito quando agudamente sentida faz mar s de longe no corpo e d
476. zes eu segredava ao seu ser sonhado Fa a o seu dever de nfora in til cumpra o seu mister de mera ta a Com que saudade da ideia que quis forjar me de si percebi um dia que era casada O dia em que percebi isso foi tr gico na minha vida N o tive ci mes do seu marido Nunca pensei se acaso o tinha Tive simplesmente saudades da minha ideia de si Se eu um dia soubesse este absurdo que uma mulher num quadro sim essa era casada a mesma seria a minha dor Possu la Eu n o sei como isso se faz E mesmo que tivesse sobre mim a mancha humana de sab lo que infame eu n o seria para mim pr prio que insultador agente da minha pr pria grandeza ao pensar sequer em nivelar me com o seu marido Possu la Um dia que acaso passe sozinha numa rua escura um assaltante pode subjug la e possu la pode fecund la at e deixar atr s de si esse rasto uterino Se possu la possuir lhe o corpo que valor h nisso Que n o lhe possui a alma Como que se possui uma alma E pode haver um h bil e amoroso que consiga possuir lhe essa alma Que seja o seu marido esse Queria que eu descesse ao n vel dele Quantas horas tenho passado em conv vio secreto com a ideia de si Temo nos amado tanto dentro dos meus sonhos Mas mesmo a eu lho juro nunca me sonhei possuindo a Sou um delicado e um casto mesmo nos meus sonhos Respeito at a ideia de uma mulher bela 16 A carta aqui parece surgir enquanto instrumento interm di

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